domingo, 4 de outubro de 2009

Os quatro cavaleiros do apocalipse

Apesar da chuva que nos entope as sarjetas e inunda de passeantes os centros comerciais, tenho andado a cismar na coragem física e política dos senhores doutores Albuquerque e Jardim. E já não tenho dúvidas: somos um povo com mais sorte que juízo. Porque temos ao leme um timoneiro que não vacila. E porque atrás dele há-de vir alguém da mesma igualha.
Conservo na retina as gratas imagens que me ofereceu o jornal televisivo de sexta-feira. Recordo, por exemplo, que uma simpática e solícita menina nos informou que a população havia rechaçado as manobras provocadoras de uma horda apostada em maçar a paciência dos senhores doutores atrás citados. Retenho igualmente a imagem impressiva do edil funchalense, qual Guevara da nossa celebrada modernidade, jurando intrepidamente que nunca se deixaria intimidar. Mas visualizo, sobretudo, o garbo do nosso presidente quando, num píncaro de galhardia, e depois de temerariamente dispensar a protecção policial, resolveu fazer frente à terrível provação que o ameaçava. Senti orgulho, podem crer. E não pude deixar de pensar que, com líderes assim, o futuro só pode ser bom.
Imagino que os maldizentes do costume começaram já a fazer pouco. E como lhes conheço a propensão para a maldade, até lhes consigo adivinhar os argumentos. Vale uma aposta? Então tomem nota. Em primeiro lugar, hão-de dizer que o nosso senhor presidente estava muito bem acompanhado por uma turba ululante de mais de uma centena de pessoas previamente arregimentada. Depois, vão jurar que, apesar da ordem dada, a polícia não arredou pé, não fosse o desvario colectivo descambar em guerra civil. E hão-de garantir finalmente, com óbvios requintes de contradita, que não houve ameaça nenhuma. Como se quatro cavalheiros empunhando uma tarja com uns dizeres oportunos pudesse algum dia ser coisa pouca. Ou como se a câmara de vídeo que um deles agitava não devesse ser considerada uma arma perigosa, estratégica, letal.
Receio bem que a nossa política de trazer por casa tenha resvalado de vez para o plano inclinado da confrontação física. Quando um exército de quatro (sublinho, quatro!) agentes subversivos decide perturbar a paz morna em que vivemos, acompanhando um acto público em espaço igualmente público, só podemos recear o pior. E se esse formidável exército de quatro belicosos samurais resolve juntar à expressão numérica que tem a utilização de tarjas e câmaras de vídeo (meu Deus, que refinada exibição de malvadez!), só podemos esperar que o terror se instale.
Felizmente, é com genuíno alívio que o digo, não foi isso que aconteceu. A pronta, democrática e tolerante acção popular (como quase nos disse a solícita menina do telejornal) conseguiu conter as primeiras arremetidas dos meliantes. Os senhores doutores no início referidos acabaram por fazer o resto. E se uns deram expressão física à ira legítima que os possuiu, os outros recorreram à contundência da coragem, da expressão e do verbo. O que vale, porém, é que todos se irmanaram na mesma histérica reacção. Unidos em fraterno abraço de preservação da ordem estabelecida. Abraçados no mesmo inflamado espírito de tolerância democrática. E os intrusos ficaram assim a saber que podem vir com quatro, com três, com dois ou com um. Nada conseguirá derrotar o ânimo desta singular aliança entre uma centena de dependentes arregimentados e o autocrático poder que temos. Nem tarjas. Nem câmaras de vídeo. Nem presenças impertinentes em actos públicos.
Bernardino da Purificação

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

A verdade revelada

Com a paciência dos crentes, o país deu ao presidente da República o tempo que sua excelência entendeu que precisava. Com a inquietação de quem se encontra à beira do desconhecido, a nação preparou-se para a hora da revelação suprema. Terá sido, porém, com a indignação dos enganados que percebemos que alguém com responsabilidades de Estado tem andado entretido a brincar com coisas sérias; que é muito maior do que pensávamos o lado paranóico da novela que alguém urdiu em Belém; que esta gente não tem, em suma, estatura adequada e bastante para a função que o nosso voto lhe deu.
Não exagero se disser que isto chegou segunda-feira ao ponto do absurdo. O Palácio anunciou-nos uma comunicação solene do presidente da República. O que nos ofereceu, todavia, não passou de um abstruso monólogo de um comentador político de quarta categoria. Fizeram-nos crer que nos dariam a chave reveladora da trama fandanga que nos impingiram. Só nos deram, porém, um espectáculo confrangedor e piroso de um presidente insolitamente atreito a dúvidas pueris e estados de alma preocupantes. Corrijo. Mais do que ao ponto do absurdo, chegámos, isso sim, ao cume do patético.
E que dizer das dúvidas angustiadas de sua excelência? Será crime, perguntou torturado o nosso dubitativo presidente, desconfiar da putativa existência de conspirações, vigilâncias, olhos escondidos na sombra, ouvidos indiscretos à escuta, ou outras malfeitorias quejandas? Claro que não, senhor presidente. Tranquilize-se. Nada disso é crime. Tal como o não é o medo do escuro. Tal como o não são os terrores nocturnos das almas atormentadas. Peço-lhe, portanto, que resista à inquietação e combata a angústia. Duvide as vezes que quiser. E procure, faça o favor, todos os fantasmas que o delírio lhe quiser deparar. Vai ver que lhe faz bem. Convém é que se abstenha de amplificar suspeitas tolas, ainda que por interposta pessoa. E, já agora, procure não cair na tentação de mandar publicar, mesmo que à socapa, os juízos caluniosos a que possam conduzi-lo os sobressaltos do espírito. Sabe, isso sim já pode ser considerado crime. Mesmo que o titular da acção penal se esteja nas tintas, se calhar por comiseração, para as embrulhadas em que nos possam colocar as dúvidas lancinantes do nosso supremo magistrado. Ou que se continue a fazer de conta que nada de anormalmente grave aconteceu.
O país ensandeceu, vociferou o dr. Jardim. Então não é que desta vez o homem tem mesmo carradas de razão?!
Bernardino da Purificação

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Nem alternativa nem oposição

Os socialistas madeirenses lá continuam alegremente a caminho da irrelevância absoluta. Como parecem deliciados com a proeza, faço votos de que façam boa viagem. E porque quase sempre me doem as penas alheias (ai, este espírito cristão!), espero que vão leves e não desesperem: por este andar, a excursão não há-de ser nem pesada nem longa.
Palavra que tenho dificuldade em compreender tamanha demonstração de insensatez colectiva. Os maus resultados sucedem-se, com a mimosa particularidade de serem cada vez piores. A influência do partido vai-se esvaindo, como se a hemorragia não tivesse cura possível. E, o que é pior, a fronteira entre a seriedade e a anedota parece ter sido irremediavelmente ultrapassada. Não obstante, as suas principais figuras assobiam para o lado. Agem como se apenas se preocupassem em controlar os movimentos uns dos outros. E deixam o campo aberto para que Serrões, Gouveias e Cardosos (sempre sabiamente acolitados por excelentíssimas hordas de ajudantes dedicados) engalanem os currículos pessoais à custa da falência do partido em que por acaso militam. Em suma, um prodígio. De fraternidade política. De solidariedade partidária. De apego às causas que juram defender.
Manda a prudência que não avance sem um breve parêntesis. Não me incomoda rigorosamente nada que o PS continue a perder eleição atrás de eleição. As vitórias e as derrotas são a cara e a coroa das democracias. Mesmo das asfixiadas. O que me incomoda é a percepção de que a inércia do voto do povo soberano decorre também de uma preocupante ausência de alternativa. Como se vivêssemos em permanente clima de falta de comparência. Ou como se no arco da governação não houvesse mais do que um partido institucional, que nos mexicaniza a vida e sufoca a democracia, acrescido de uma cada vez mais apreciável dose de indigência e irresponsabilidade. É esse, de facto, o meu único cuidado. Ninguém nos oferece a possibilidade real de um dia sermos tentados a ensaiar caminhos alternativos. Andamos expropriados de escolhas. E isso, queiramos ou não, empobrece-nos a vida, as perspectivas, o futuro.
Não desvalorizo, podem crer, as subidas registadas por alguns partidos da oposição. Congratulo-os pelos ganhos. Até pelo quadro de dificuldades políticas em que têm de movimentar-se. Espero, no entanto, que se compreenda que há uma diferença substancial entre fazer oposição e ser alternativa. Ora, o problema deste PS é que já não consegue ser nem uma coisa nem outra.
Bernardino da Purificação

terça-feira, 22 de setembro de 2009

A culpa sistemática do sistema

Creio não estar a ser precipitado ou radical. Mas ninguém me tira da cabeça que Belém precisa de fazer muito mais do que mandar para o limbo do degredo protegido um assessor apanhado a esconder a mão. Um Lima no olho da rua, por mais desonesto e conspirador que tenha sido, não resolve o problema criado. E um palácio presidencial aparentemente expurgado da presença tenebrosa de um alegado produtor de inventonas não pode esperar que simplesmente esqueçamos a novela rasteira com que nos tem andado a distrair. Goste-se ou não da ideia, o presidente da República está objectivamente ligado ao facto político mais grave de que pode ter memória a democracia portuguesa. E deve por isso explicações ao país. Mesmo que não tenha absolutamente nada para nos dizer.
Não vou aqui repetir a bateria de argumentos que nos últimos dias traz sobressaltada a pátria. Não é preciso. Já toda a gente percebeu que o chefe de Estado não tem desculpa ou escapatória possível: se o governo o traz ilegalmente vigiado deveria ter sido pura e simplesmente demitido; se, ao invés, não passa tudo de uma acusação paranóica e destituída de fundamento, estamos em presença de uma inaceitável conspiração. Não obstante, passada a surpresa inicial e a indignação que se lhe seguiu, até parece que andamos todos unidos em benevolente esforço de contenção. Como se fosse coisa de somenos ter ao mais alto nível do Estado gente louca ou criminosa. Ou como se a presidência da República pudesse andar sem consequências na chafurdice da política de sarjeta.
Há, no entanto, coisas que quase me divertem. A prodigiosa singularidade de haver culpas sem culpados é uma delas. Outra é a notória atrapalhação com que os comentadores oficiais interpretam o guião dessa rábula indecente a que os cínicos dão o desgraçado nome de estratégia de controlo de danos. Para não falar, já se vê, de todas as manobras de diversão que, com notória desvergonha, procuram centrar a origem da trama o mais longe possível do palácio de Belém e respectivas adjacências. Ou na cavalheira atitude de prudente descaso com que a Procuradoria-Geral da República vem acompanhando semelhante festim.
Um arraial, em suma. De cinismo. De tibieza. No fundo, de mal disfarçada cumplicidade.
Sabem. Tenho para mim que desta vez a culpa é mesmo do sistema. Por ser capaz de albergar e deglutir conspirações sem sobressaltos tontos nem estados de alma escusados. E por permitir que, ao arrepio dos avisos da nossa história recente, a República teime em manter-se fiel a essa notável construção político-institucional que dá pelo nome de semi-presidencialismo. Se o sistema se lembrasse de que todos os presidentes eleitos por sufrágio directo e universal se dedicaram, em certo período dos respectivos mandatos, à patriótica tarefa de mandar abaixo os primeiros-ministros com quem coabitaram, certamente recomendaria uma mudança de rumo. Mas como, pelos vistos, o sistema é cego, surdo e mudo, vamos continuar a fazer de conta que Soares não dedicou o seu segundo mandato à meritória proeza de liquidar a maioria absoluta de Cavaco (reparem que nem preciso de recuar ao tempo de Eanes); que Sampaio não correu com Santana só para contentar uma ou duas tribos do centrão mais ou menos ululantes; e que o verdadeiro problema entre Sócrates e Cavaco não radica no confronto entre duas agendas e mundividências distintas a que alegremente demos igual legitimidade. Não obstante, ninguém se quer dar à maçada de pôr o dedo na ferida. Curioso.
Bernardino da Purificação

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Para memória futura

É oficial: o dr. Jardim virou (politicamente falando, entenda-se). O social-democrata que afirma ser acaba de renegar a social-democracia. O estrénuo defensor do asfixiante Estado máximo (em pensamentos, palavras e obras) anda rendido agora ao magnífico esplendor do Estado mínimo. O político de ideias próprias e costumes liberais resolveu emprestar o nome, a vozearia e as mãos aos próceres anacrónicos do beatismo conservador. O intrépido porta-bandeira da Autonomia em que se arvora aceita sem um pio o descaso a que a dita é votada pela direcção nacional do seu partido. E, para cúmulo dos cúmulos, o denunciante que sempre foi de projectos políticos pessoais (dos outros, já se vê, que tudo tem o seu limite) acaba de converter-se ao depurativo plano de salvação da pátria que o cavaquismo urde a partir dos esconsos gabinetes de Belém.
Em suma, o cavalheiro mudou de campo. Seduzido eventualmente pela saborosa promessa de um prato de lentilhas qualquer. Ou, se calhar, derrotado pelo beco sem saída a que nos conduziu a sua política. Seja lá o que for, a cambalhota é vistosa. Ao ponto, imagine-se, de o vermos agora de mãos dadas com o liberalíssimo Pacheco Pereira, entretanto promovido a guru do garboso tandem que Cavaco e Manuela airosamente montam...!
É claro que sei que o dr. Jardim é um artista da pirueta. Do mesmo modo que não ignoro que, para sua excelência, as ideologias não passam de uma espécie de pronto-a-vestir a que cinicamente vai ao ritmo das conveniências do momento ou à medida das imposições sazonais. Ainda assim, confesso: arrepia-me o descaro. Assinar por baixo, ainda por cima sem rir, um programa político situado nas antípodas da prática governativa de que se orgulha e defende só pode ser obra da falta de pudor. E mandar às urtigas todos os textos pretensamente doutrinários que usa dar à estampa não pode ser senão decorrência em linha directa da falta de vergonha na cara. Ou do desespero, vá lá a gente saber. Ou do maquiavelismo à moda da ilha, vá lá a gente adivinhar...
Ok. Sabe-se que, em geral, os políticos têm uma relação atribulada com a rectidão das linhas direitas da coerência e dos princípios. Ainda assim, impressiona ver o dr. Jardim rendido à pacóvia sonsice cavaquista que sempre execrou; custa admitir que o súbito apoiante do endividamento tendencialmente zero e do orçamentalismo puro e duro que agora pretende ser é o despesista sem critério nem medida que sempre foi; faz duvidar que o nacionalista impenitente que faz de conta que é seja o mesmo indivíduo que tem como principal arma de combate a ameaça separatista; e faz lamentar que o autonomista estridente que sempre quis ser tenha publicamente aceite (sem uma nota de distanciamento ou reserva) partilhar o colo central-cavaquista com quem sempre viu na Autonomia uma excentricidade ou um luxo (já repararam que, ao contrário do que diz o dr. Jardim, a dra. Manuela não proferiu uma única palavra de compromisso com o aprofundamento autonómico na próxima revisão constitucional?).
Rejubilemos, no entanto. A partir de agora, é-nos ainda mais legítimo exigir ao novo dr. Jardim que deixe de asfixiar a nossa cada vez mais engasgada democracia. E que aceite diminuir o peso tentacular do estado, em cujas alturas se senta, em benefício das empresas, dos indivíduos, dos cidadãos. Isto, claro, se a coerência do dito cujo não passar de uma batata.
Bernardino da Purificação

sexta-feira, 3 de julho de 2009

A autonomia dos padrões rasteiros

Vamos a ver se consigo parar antes de cair no precipício moralista. Sabem. Abomino o discurso beato aplicado à análise dos comportamentos. E tira-me do sério a hipocrisia que faz habitualmente o seu curso paredes-meias com a sonsice da crítica lamecha. Não obstante, considero que a dialéctica política tem limites de decência que não devem ser diminuídos. Do mesmo modo que tenho como óbvio que há uma diferença abissal entre rebaldaria de taberna e confronto democrático urbano.
Falo, como se percebe, do caso político da semana. O ex-ministro Pinho perdeu a compostura no Parlamento. Entrou no terreno perigoso onde se misturam a intolerância, a falta de sentido de estado, a descortesia institucional e a falta de respeito pelos adversários. E acabou obviamente demitido. Como é evidente que deve acontecer sempre que alguém diminui a imagem pública da posição que ocupa no estado. Como é claro que só pode acontecer quando alguém rebaixa, por natureza ou por lapso, a dignidade da função que em nome do povo lhe está confiada.
Em suma, o ministro Pinho actuou como não devia e teve a sorte que mereceu. Ele próprio, honra lhe seja, prontamente o reconheceu. O primeiro-ministro soube de imediato traçar a linha que separa a responsabilidade pública dos imperativos da solidariedade política. E o presidente da Assembleia da República, a despeito da sua filiação partidária, soube colocar as coisas nos seus termos devidos.
Houve, no entanto, exageros que não posso deixar de registar. Para além, como é evidente, de algumas gritantes e significativas omissões. Por exemplo, foram a meu ver despropositadas, para além de obviamente oportunistas, certas tentativas de conferir uma conotação partidária a um caso evidente de exclusiva responsabilidade pessoal. Assim como me pareceu exagerado que o presidente da República se tivesse dado ao trabalho de, um dia depois de consumado e resolvido o incidente, descer das alturas que habita para rasgar em público as vestes na severa condenação de um episódio pontual já entretanto sanado. Sua excelência quis, pelos vistos, também molhar a sopa. O problema é que se esqueceu de todas as caldeiradas a que tem assistido com a passividade das esfinges e o alheamento das múmias.
Não tenho a intenção de fazer chover no molhado. Mas, com franqueza, a honra do parlamento nacional tem uma bitola de avaliação superior à que deve medir a dignidade da nossa assembleia regional? A pergunta, como se calcula, é meramente retórica. Porque é evidente que, resultando ambas da emanação da vontade popular, e mau grado as precedências que as separam na hierarquia das instituições políticas do país, a dignidade da primeira é exactamente igual à dignidade da segunda. Independentemente dos silêncios comprometedores do dito presidente de todos os portugueses. Bem como do insuportável atestado de menoridade que esses silêncios necessariamente comportam.
É claro que sei que somos nós os culpados da ofensiva indulgência com que o país lida com o achincalhamento permanente das instituições regionais. Ao ponto de, para nossa desgraça, ter sido necessária a ajuda de um incidente lamentável na Assembleia da República para nos darmos conta de como são aviltantemente baixos os nossos níveis de exigência, e de como são rasteiros os padrões de comportamento com que alegremente convivemos.
Bernardino da Purificação

sábado, 27 de junho de 2009

Os aventais da política doméstica

O dr. Jardim adora as histórias de aventura e mistério. A Trilateral povoa-lhe os sonhos. Com a Maçonaria tem uma relação de amor-ódio. E o clube de notáveis que alegadamente aspira governar o planeta e respectivos arredores exerce sobre ele fascínio idêntico ao da luz que se esconde por detrás das trevas. Reminiscências, presumo. Dos seus verdes anos de operacional de secretária. Ou, melhor dito, herança dos tempos em que, fujão, trocou a carreira de tiro que defendia para os outros pelas manobras arriscadas da acção psicológica. Acreditem. É de tal modo intensa a sua queda para o oculto que é nela que nascem e desaguam muitas das decisões políticas que toma. E assim não precisa de prestar contas a ninguém.
Querem um exemplo? Pois cá vai.
Era uma vez um presidente de Câmara acidental caído de pára-quedas na função. Para sua eterna desgraça, o acaso que lhe indicou o caminho da política omitiu-lhe que teria de partilhar os Paços do concelho com os olhos e ouvidos de quem tudo pode. Um safado, como veremos, o dito acaso! Acresce que, ingenuamente alheado de tão ameaçadora circunstância, o fortuito presidente atribuiu-se, ainda por cima, o direito de achar que poderia nomear para chefe do seu gabinete alguém da sua confiança pessoal. De modos que um dia, sem olhar a sério para o terreno minado que pisava, resolveu sacar um nome do seu rol de relações. E talvez porque cumprisse um destino trágico, decidiu fazer seu lugar-tenente o motivo futuro (só mais tarde viria a sabê-lo) da sua presente desgraça.
Importa salientar que olhos e ouvidos de quem tudo pode não passa de um modo eufemístico de dizer outra coisa. Em bom rigor, há bastante mais anatomia envolvida no caso. Porém, percebam. Não gosto de imiscuir-me nas histórias cor-de-rosa de ninguém. Até porque sei, de ciência certa, que as conhecidas razões que Pascal desconhecia conservam ainda, nos dias de hoje, a razoabilidade que as celebrizaram. É-me impossível, no entanto, deixar de convocar aqui tão delicada e pessoal matéria. Por uma razão simples, que passo a exprimir com a máxima elegância que a inspiração me dá: é público e notório que uma componente importante da política regional passa pelo leito clandestino dos serôdios arrufos presidenciais.
Importa, do mesmo modo, avançar algumas notas da biografia não pública do cavalheiro que o nosso improvável edil entendeu nomear seu acólito. Garante quem sabe (e a Quinta Vigia tem a certeza que sabe) que o cavalheiro em questão é dado ao esoterismo de certas práticas discretas. Usa avental, em suma. Obviamente fora das suas actividades profanas. E evidentemente à margem das suas obrigações profissionais. Mas, como se sabe, na Madeira é assim. Um maçon é, por definição, um suspeito. E se, ainda por cima, se dá ao desplante de se travar de razões com a mais-que-tudo da única pessoa importante da ilha, de suspeito passa de imediato à condição de condenado.
Ora, para desgraça do futuro ex-autarca vicentino, foi exactamente assim que as coisas se passaram. O seu chefe de gabinete desentendeu-se com a notária da Câmara. Esta bateu com a porta e foi a correr chorar no ombro amante do nosso capo di tutti capi. E este, furibundo e de coração dilacerado, accionou de imediato os mecanismos de punição. Num primeiro momento, mandou despedir o aventalado chefe de gabinete, a pretexto da sua putativa condição de maçon. No seguinte, despachou o ingénuo presidente da Câmara, por não ter percebido que, na Madeira, há uma política de travesseiro que se sobrepõe à política institucional. E assim foi feita justiça. E assim se vai escrevendo a política.
Há, no entanto, algo que não consegui perceber ainda. O que é que terá sido tratado, no mês de Março passado, no cordial (fraterno?) e secreto encontro que Jardim manteve na Quinta Vigia com o Grão-Mestre da Maçonaria Regular portuguesa? Alguém poderá elucidar-me? Ou será este mais um dos mistérios que tanto animam o ócio do presidente?
Bernardino da Purificação

segunda-feira, 22 de junho de 2009

A inevitabilidade do regresso

Regresso. Estimulado pelo doce contentamento que se tem quando se volta. Estarrecido, porém, com os estados de alma que surpreendi em boa parte dos comentários que li. Abreviando, a coisa mais parece uma montanha-russa. Com píncaros de incenso que de todo não mereço. Entremeados por chibatadas depressivas na alarve retoiça de um pelourinho que não esperava. Um retrato, em suma, da vidinha que levamos. Que me faz lamentar não ter percebido antes que fazer um blogue é o mesmo que aceitar o jugo de um contrato leonino (logo eu, que não escondo a minha militante condição de lampião empedernido..!) que só me traz obrigações. E que me leva a suspeitar que há por aí muita intolerância escondida por debaixo de um estaladiço (valha-nos isso!!!!) verniz democrático.
Se bem entendi, há quem tenha passado a exigir de mim a aceitação do ritual diário da escrita e o cumprimento de uma agenda política qualquer. Como se me fosse negado o direito de escrever o que simplesmente me apetece. Ou como se alguns dos meus estimados seguidores reivindicassem para si o direito de me expropriarem de um espaço que eu próprio aceitei voluntariamente partilhar. Ignoro, como é evidente, onde é que esta gente vai legitimar semelhante conduta. Temo, no entanto, que os catecismos onde se inspiram possam ser versões usadas das cartilhas que dizem condenar.
Não é meu propósito tornar demasiado pesado o fim deste interregno. Até porque ainda respiro os fumos da Makumba (assim mesmo, com kapa e maiúscula, numa para mim deliciosa private joke) que me levou ao retiro. Porém, não posso deixar de afirmar que ando farto dos penduras que aqui se instalaram de armas, rancores, bagagens e ressaibos. Cabem cá todos, como é evidente. E aqui ninguém é superior a ninguém. Mas já que falamos de estados de alma, concedam-me o direito de expressar também o meu.
Em suma, meus ilustres amigos, regresso para tentar ser o que sempre fui: um observador independente da política madeirense; um comentador de políticas e de condutas políticas; um homem livre que não cede a chantagens nem abdica do seu exercício diário de liberdade. Quando escreve e quando não escreve. E quem pensa que algum dia eu possa cair na tentação de ceder aos bruderes ou a outros cavalheiros quejandos bem pode esperar sentado. De preferência, sem chatear.
Agradecido.
Bernardino da Purificação

terça-feira, 19 de maio de 2009

O povo superior

Para não variar, a histeria passou depressa. Jardim disse o que disse. Mas dois dias bastaram para que se esvaziasse o balão do descontentamento. Ainda bem que na Madeira é assim. As ofensas duram horas. E aos insultos mal se liga. Creio que neste particular o dr. Jardim tem carradas de sorte e de razão. Somos de facto um povo superior. Dotado de uma capacidade de encaixe virtual e virtuosamente ilimitada. Alegremente acomodado à frenética produção regional de ameaças e vitupérios. Olimpicamente condescendente com o sistemático atropelo da decência e das regras.
Os empresários do sector hoteleiro foram os alvos mais recentes dos humores incertos de sua excelência. Deram-se ao inenarrável desplante de almoçar com o primeiro-ministro do seu país. Terão mantido com ele um diálogo civilizado e eventualmente útil. E chegaram ao ponto de posar sorridentes para os flashes das câmaras dos fotógrafos. Um verdadeiro despautério, em suma. Que deixou o dr. Jardim de cabelos em pé. E lhe permitiu perceber uma realidade estarrecedora. A seguinte: na sua generalidade, os empresários estão muito mais interessados em olear a economia em que actuam do que em envolver-se na política politiqueira que não leva ninguém a lado nenhum. Hoje com o dr. Jardim. Amanhã com o engenheiro Sócrates. Depois de amanhã com quem lhes assegurar bons negócios e liberdade de acção.
Compreendamos, pois, o homem. Qualquer um no lugar dele reagiria como ele reagiu. Desde que, como é evidente, tivesse da democracia, do exercício do poder e da intervenção do estado na sociedade a concepção que ele manifestamente tem.
Bernardino da Purificação

domingo, 17 de maio de 2009

Impressões de uma viagem

Ando preocupado com o dr. Jardim. Esbraceja de modo inquietante e patético. Aceita desaforos com a passividade de quem perdeu a razão, a vontade ou o fôlego. E, muito pior, assiste cabisbaixo aos acontecimentos em que participa com a humildade forçada de um actor de quarto plano. Estará doente (lagarto, lagarto, lagarto), o nosso venerando líder? Ou estará simplesmente farto da evidente inconsequência de muitas das guerras que inventa?
Reparem. O senhor Pinto de Sousa passou por cá. Distribuiu cumprimentos e espalhou sorrisos. Entregou magalhães e seduziu empresários. E teve ainda tempo de assumir de peito aberto, e sem tíbias meias-tintas, as suas conhecidas divergências com o senhor da ilha. Uma goleada, em suma. Diante de um valoroso adversário temível a falar de longe. Que só deu nas vistas por ter mantido a boca calada. E que assistiu, roído de raiva e escondido algures, ao passeio tranquilo do seu mais recente ódio de estimação. Peço desculpa se estiver a ver mal. Mas não creio que o Jardim atropelado que vimos seja o mesmo que se afadiga no diário propósito de demonstrar-nos que só ele tem o poder de mandar e desmandar, de fazer e desfazer, de dizer assim ou assado apenas porque lhe apetece.
Certo. Só uma rematada burrice daria ao senhor Sócrates a Marinha Grande que nesta altura tanto jeito lhe dava. E Jardim, não custa reconhecê-lo, pode ser tudo menos burro. Mas daí à embaraçada complacência com que viu a presuntiva fonte de todos os nossos males passados, presentes e futuros fazer gato-sapato da sua principal bandeira eleitoral (a famigerada lei de Finanças Regionais) vai a distância que separa a falta de comparência da derrota honrada. E bem pode esfalfar-se agora escrevendo e gritando que o primeiro-ministro faltou à verdade. O simples facto de o engenheiro Sócrates ter cá vindo serenamente dizer o que pensa tem um peso que obviamente abala a estratégia de um político que, pelos vistos, só sabe fazer-se ouvir a partir da casota. Até porque agora ficou aberto o caminho para que todos possamos perceber que a culpa de uma lei, que também eu considero injusta e errada (porque errados são os seus pressupostos), reside nesta nossa jardinista e cunhista mania de propalarmos aos quatro ventos, seja na Europa, seja no país, uma riqueza que estamos longe de ter. Ora, foi esse um dos méritos da visita. A partir de agora, o dr. Jardim vai ter de explicar melhor que raio de milagre é este que nos põe tão ricos nas estatísticas nacionais e europeias, mas tão pobres, afinal, na realidade. A menos que a oposição (e, em particular, o PS regional) não saiba aproveitar a boleia de uma visita tranquila de um primeiro-ministro que o dr. Jardim não ousou enfrentar.
Bernardino da Purificação

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Mistérios de campanha

Gosto do ambiente festivo das campanhas. Não há depressão que resista a umas quantas toneladas de cartazes. Não há crise que não ceda perante a força assertiva da frase criativa. É disso que gosto. Da imaginação à solta. Da cor berrante sem rédea. Do arraial apelativo do bacalhau a pataco.
É claro que a democracia era bem capaz de dispensar grande parte das pequenas fortunas que nestas alturas se gastam. Se houvesse imaginação e decoro, creio bem que partidos e candidatos seriam capazes de estabelecer um contacto com os cidadãos não necessariamente mediado por um sem número de frases dispendiosas com escasso ou nenhum sentido. Porém, compreenda-se. Há uma pequena indústria que não vive sem o lado cénico da política. De modos que o mais certo é que ninguém pretenda agravar os males importados ou endémicos desta perpétua crise nossa de cada dia.
Permitam-me no entanto o atrevimento de um desabafo. Ando maçado com a falta de qualidade daquilo que vejo. Já que as campanhas nos custam os olhos da cara, acho ter o direito de exigir que os partidos façam mais do que cumprir calendário. Dizendo coisas que a malta entenda. E tendo a decência de não se apartarem da realidade. Ora, em geral, o que se vê é o contrário disso.
O PS, por exemplo, exibe o dr. Vital acompanhado de uma frase enigmaticamente inacabada. "Nós, europeus" é tão só o que diz a curiosa sentença. Sem o favor explicativo de um verbo. Sem a graça qualificativa de um complemento. Um problema sintagmático, em suma. Que me deixa perplexo. Que quase me exaspera de dúvidas. Que me faz abrir a boca de espanto perante a densidade esotérica do marketing político.
Já o PSD é mais palavroso. A frase que acompanha o cavalheiro-que-está-no-lugar-que-era-para-ser-do-dr.-Sérgio (desculpem, mas não lhe fixei ainda o nome) sentencia que somos cada vez mais europeus. Mais do que exaltar a clareza da mensagem, rendo-me à sua evidente oportunidade. Porque, pelos vistos, a percepção da nossa identidade tem andado um tanto à deriva. Se calhar, do mesmo modo que temos tido o futuro ao sabor do vento. Mas pronto. As nossas dúvidas existenciais estão agora esclarecidas. É verdade que o cartaz laranja (o tal que era para ter o dr. Sérgio, mas que transporta, ao invés, um substituto que os eleitores um dia destes hão-de ter o privilégio de conhecer) nada nos diz sobre as razões de tão súbito reforço dessa nossa magnífica condição. Aposto, no entanto, que neste caso o mistério é filho da modéstia. Acreditem. A verdade-verdadinha é que nós passámos a ser mais europeus no preciso dia em que o dr. Jardim tomou a decisão de passar metade do seu tempo em Bruxelas, ou em outras cidades afins, fazendo sabe-se lá o quê.
É dos livros que um povo há-de ser aquilo que for o seu líder. Humilde, no entanto, o dr. Jardim finge que não é nada com ele. E assim dribla a maçada de explicar-nos aquela coisa indecorosa do PIB empolado e pantomineiro que ele usa em seu proveito na Europa, mas que na realidade nos vai penalizando o desenvolvimento, a economia e os bolsos.
Bernardino da Purificação

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Manobras de diversão

Não custa reconhecer que o homem é um verdadeiro ás. Dispara cortinas de fumo com a precisão dos atiradores de secretária. Inventa manobras de diversão com o rigor militar das casernas que nunca frequentou. E arremete contra os inimigos que imagina com a valentia desenvolta de um verdadeiro Quixote. Um cabo de guerra, em suma. Um general. Com pança. Rodeado de sanchos. E devidamente montado em cavalgaduras dóceis.
O último prodígio que lhe conhecemos ganhou a forma ondulante de meia dúzia de bandeiras da independência que ninguém quer. E Lisboa ficou a saber que a Madeira está por tudo. Até, veja-se a ousadia (!), para o atrevimento de fazer subir ao mastro cimeiro do resquício colonial o símbolo já extinto da libertação sonhada.
A avaliar pela controvérsia, é de presumir que o Terreiro do Paço tenha tremido. O Conselho de Estado deve ter-se reunido a toque de caixa, obviamente amputado da presença do comandante Jardim. Os ministros, sitiados em São Bento, deverão ter-se desmultiplicado em cenários de catástrofe e em planos de contingência. A tropa, GNR incluída, terá entrado em estado de alerta. A protecção civil, transida, mergulhou com certeza no bunker das situações de emergência. E, muito provavelmente, até o herdeiro da lusa coroa deve ter entrado em agonia perante o cenário doloroso de mais um braço da pátria indivisível e una ameaçando apartar-se.
Julgo saber que a população da ilha não deu um mínimo de importância ao caso. Não admira. Tivessem antes hasteado a bandeira da autonomia e mais amplificado e politicamente conseguido teria sido com certeza o efeito alcançado. De modos que os menos esclarecidos nem deram conta da acontecência. Os razoavelmente informados ouviram falar dela mas não lhe passaram cartão. E os que, apesar de tudo, ainda ligam alguma coisa à política tiveram mais que fazer do que perder tempo com tolices.
Há, no entanto, uma leitura política que vale a pena ser feita. A avaliar pelo episódio, a política madeirense travestiu-se de paródia. O desemprego dispara, mas quem manda gasta o tempo a agitar utopias que ninguém quer. A dívida galopa, mas o poder trata dela com a atitude desbragada de um carnaval trapalhão. E a crise global ameaça, mas o nosso governo próprio consome-se em disparatadas congeminações que nem sequer atenção merecem.
Julgo que não erro se disser que nos dava muito jeito um governo. Com um presidente residente. E com responsáveis sectoriais politicamente responsáveis. Só que em vez disso temos uma nada esforçada comissão administrativa. Formada por funcionários travestidos de políticos. Que pouco ou nada planeia. E que se limita ao expediente que vem da véspera. Porém, nota-se que se divertem. Inventam inimigos. Brincam à política e às guerras. Mandam hastear bandeiras. E dizem enormidades.
Aqui vai mais uma. Na esteira flamejante da onda abandeirada que o mais-importante-da-ilha para sua diversão decretou, vem agora a estrepitosa sentença: "se ficasse à espera da republica portuguesa, a Madeira nunca teria dado o salto que deu". Para sermos justos, não se pode dizer que a frase tenha um conteúdo cem por cento separatista. Percebe-se, no entanto, que a ideia está lá. O que Jardim quer dizer é que a Madeira se basta a si própria. Esquecendo, no entanto, que as carradas de milhões que vieram da Europa só cá chegaram por sermos uma região politicamente autónoma mas juridicamente integrada num país europeu. Ora, já que as suas motivações pátrias parecem ser puramente mercantis, faça o cavalheiro o favor de pôr os olhos, por exemplo, em Cabo Verde, e veja lá se é capaz de manter as provocações separatistas que tanto gozo lhe dão. A menos que o seu problema seja mesmo com a forma republicana de governo que o país adoptou. Se é isso, paciência, nada a fazer. Cada um cultiva as nostalgias que entende. Acho, porém, lamentável que pretenda passar uma esponja sobre o ponto em que nos deixou o estado novo da sua permanente saudade. É que se agora damos saltos, nesse tempo nem um passo conseguíamos dar. E muitos mais daríamos se a autonomia que temos nos providenciasse um governo de verdade.
Bernardino da Purificação

quinta-feira, 30 de abril de 2009

Obrigado, senhor presidente

Tenho andado a cismar com a descoberta do Tribunal de Contas sobre as viagens do dr. Jardim. Sabem. Pesa-me na alma a ideia de que o nosso venerando líder possa andar confrontado com uma ameaça terrorista. Ao ponto de me sentir quase culpado. Nós aqui no bem-bom do conforto dos nossos lares, enquanto ele se obriga a passar a vida em aeroportos, quartos de hotel, automóveis com motorista e reuniões importantes de conclusões secretas. Tenhamos vergonha. Ninguém tem o direito de pedir a um governante o seu sacrifício pessoal. E nenhum de nós merece que alguém em nosso nome se imole na fogueira do desconforto, no ardume da solidão, no negrume que esconde o perigo.
Chamem-me tremendista. Mas em parte nenhuma do mundo um presidente mantém em segredo, depois de fazê-las, as viagens que faz. É verdade que o dr. Jardim não é um presidente qualquer. Ele é, digamos, um presidente-viajante. Que se ausenta semana-sim-semana-não. Que estoicamente se obriga a procurar o sustento da terra que ama nas lonjuras esconsas dos corredores da Europa. Que dá literalmente o corpo ao manifesto em benefício da região que representa. Os outros, os presidentes não-viajantes, podem dar-se ao luxo da imprudência. Refiro-me aos obamas deste mundo, aos sarkozys que por aí andam, aos browns e às merkels que também nos mandam, bem como a outros demais líderes de estirpe semelhante. Esses, como sabemos, permitem-se divulgar com quem e onde estiveram. E vão até ao ponto, imprudentes e vaidosos que são, de nos revelarem os resultados concretos das escassas viagens que fazem. Como se não tivessem, também eles, o direito ao segredo. Como se as ameaças que certamente também enfrentam pudessem ser negligenciadas. Ou como se andassem todos a reboque de um impulso imprudente e louco de prestação de contas. Deviam olhar para o nosso dr. Jardim, é o que é. E assim ficariam a saber como deve actuar um presidente no mundo de ameaças várias em que os governantes, desgraçadamente para eles, têm de movimentar-se.
É claro que eu próprio gostava de saber o que faz o dr. Jardim nas constantes viagens que em nosso benefício efectua. Compreendo, no entanto, que sua excelência nada nos diga. Segredos são segredos. E se o homem decidiu não mexer nem remexer nos nossos sentimentos de culpa é porque sabe que nos sentiríamos esmagados pela monumentalidade das coisas a que se vem sujeitando em nosso nome e para nosso proveito. Respeitemos, pois, a opção de sua excelência. E, sobretudo, sintamo-nos gratos. É este o apelo sentido que daqui me atrevo a lançar. A jornais e jornalistas agora histéricos depois de anos cúmplices de descaso e silêncio. E a partidos e políticos da oposição que, pelos vistos, adiaram até agora a indignação a que sempre tiveram direito. E olhem que quem vos fala (este vosso humilde criado) é alguém arrependido. Vai fazer a 1 de Junho precisamente um ano que, com manifesta insensatez, deixei aqui no Terreiro as seguintes palavras:
"...todos temos o democrático direito de saber o que é que o presidente do governo anda afinal a fazer nas suas andanças quinzenais. Não em virtude de qualquer curiosidade mais ou menos voyeurista. Mas porque ao nosso democrático direito de saber que passos dão em nosso nome aqueles que nos governam, corresponde o dever igualmente democrático desses governantes nos prestarem contas. Seja por sua vontade expressa, seja por intervenção e iniciativa dos media. De maneira que, não havendo explicações, teremos de concluir que sua excelência andará certamente a passear, posto que nada de relevante tem para nos dizer depois das suas cada vez mais frequentes saídas. A menos que prefira que pensemos que se está positivamente nas tintas para nós."
Sinto-me envergonhado, podem crer. Mas, que querem?! Há um ano não tinha percebido que os segredos presidenciais eram segredos de segurança. E lamento que tenha sido necessária a intervenção do Tribunal de Contas para finalmente conseguir enxergá-lo (não há pior cego...). É com este sentido de arrependimento que escrevo estas linhas. Mesmo sabendo que o desconforto do nosso venerando líder é mitigado pelo aconchego solidário de um assistente permanente que ninguém, todavia, tem a dita de conhecer. Para ele também a minha gratidão.
Bernardino da Purificação

domingo, 26 de abril de 2009

O elogio da acção directa

Deve ser coisa do espírito de Abril, do cepticismo em que milito, ou do cúmulo de semelhantes entidades. Mas por uma qualquer razão que pode ser tudo menos estranha apetece-me escrevinhar qualquer coisa sobre o estado a que isto chegou. Admito que o tema é rebarbativo, quase deprimente. De modos que solicito a indulgência e estoicismo de vosselências, cujos, estou certo, não me serão negados.
Então, é assim. Já toda a gente percebeu que vivemos numa democracia consolidada apenas nos seus aspectos formais. Elegemos periodicamente umas centenas de representantes que abusam do mandato que têm. Andamos com a vida envolvida num embrulho de palavras de um dialecto, o politiquês, que temos dificuldade em compreender. Os eleitos sacam-nos o voto com miríficas promessas, depois utilizam-no como muito bem querem e entendem. A política produz novas e luzentes fortunas, em obediência a uma singular e muito exclusiva interpretação do papel distributivo do estado. Os partidos atiram-se às eleições com o único e patriótico propósito (autonómico, no nosso caso) de acederem ao dinheiro do erário. E se alguém se atreve ao protesto, é certo e sabido que tem pela frente uma desagradável lista de rótulos que, por pudor, me dispenso de reproduzir. Não obstante, e em abstracto, a política é uma actividade nobre. Os partidos são instituições basilares das democracias. E as eleições são, em simultâneo, um exercício individual de cidadania e um momento de afirmação da nossa vontade colectiva.
O quadro geral descrito tem cores mais carregadas na Madeira. Na concepção de quem manda, somos um povo ao serviço das causas do chefe. Se ele tira o chapéu, é conveniente que façamos o mesmo. Se o cavalheiro berra, jura que o faz em nosso nome. Se nos envergonha é porque em nosso interesse se imola. Se persegue quem não o atura é porque se tem como zelador dos bons costumes que não desiste de nos continuar a impor. Em suma, o cavalheiro é a única pessoa importante da terra. Que manda em tudo, menos no desemprego que sobe. Que tudo governa, menos a economia que se engasga. Que tem receitas para tudo, menos para nos dar uma vida política normal e decente. E que se eterniza no poder porque dispõe como quer dos milhões do nosso orçamento.
É claro que não ponho em causa a legitimidade democrática do senhor supremo da ilha. Ele vai a votos. O povo ao seu serviço dá-lhe a graça do poder. E como a vida democrática da terra se cristalizou nas periódicas vezes em que vamos às urnas, tudo parece (e está) de acordo com os preceitos da democracia representativa.
Ora, é precisamente aqui que quero chegar. No plano formal, e no estreito ponto de vista do funcionamento dos mecanismos de representação política, a nossa democracia funciona. Porém, no plano substantivo deixa muito a desejar. E isso, a meu ver, remete-nos tanto para a perversão de quem manda como para a necessidade de reforçarmos a dimensão participativa que a democracia supõe.
Acho, com efeito, que temos um défice de participação. Por alheamento. Por falta de hábitos. Mas também por força da atitude governamental de sistemática diabolização de todas as formas de intervenção cívica que possam escapar ao controlo do poder. É por isso que não fazemos os referendos que devíamos fazer. É também por isso que o chefe supremo da ilha vai aos arames cada vez que se fala em acções populares. E é igualmente por isso que praticamente não há movimentos de cidadãos actuando politicamente fora do quadro partidário. Por impossibilidade legal? Bem pelo contrário. A nossa lei fundamental acolhe e estimula o direito de participação directa dos cidadãos na direcção dos assuntos políticos do país. E a generalidade de quem estuda estas matérias considera que a utilização dos mecanismos que legalmente estruturam a democracia participativa não só moraliza a administração como ajuda a formar a consciência colectiva dos povos. É por isso que não há acções populares em ditaduras. E há-de ser também por isso que os poderes que se presumem absolutos diabolizam e perseguem todas as formas de intervenção dos cidadãos, para além das que formalizam a democracia representativa. O mais que consentem é um voto ritualizado de quatro em quatro anos. E assim preservam a importância que lhes incha o umbigo e afaga o ego.
Bernardino da Purificação

sexta-feira, 24 de abril de 2009

A queda para o fora de jogo

É um fastio ter de falar do PS-Madeira. Porém, o equilíbrio exige que o faça. A agenda mediática também. E o patético desfile de uns quantos arrivistas tolos é suficientemente luzidio para atrair atenções. Mas o tédio, meus senhores, é mais que muito. Sabem. Aquilo não é um partido. É antes um grupo de aventureiros. Não é uma formação política. É sim um bando de umbigos à solta.
O líder, já se viu, é a personificação da indigência política. Nada diz que se retenha. E tem um sentido de oportunidade que até dá arrepios. A última vez que o vi perorar perante as câmaras de televisão, o cavalheiro falava de eleições. Como vão disputar-se três nos próximos seis meses, dei por mim, quase incrédulo, a segredar aos meus botões: querem ver que o homem acertou finalmente na agenda?!
Um esclarecimento antes de prosseguir com o relato. As minhas dúvidas sobre o sentido das prioridades do dr. Gouveia não resultam de qualquer má vontade da minha parte. Assentam nos factos. O indivíduo é useiro e vezeiro em trocar debates parlamentares de orçamentos, contas e programas de governo por querelas paroquiais na assembleia municipal onde também se senta. Lidera o maior partido da oposição, mas já confessou a ambição de ser um dia presidente da câmara de São Vicente. Queima bandeiras da flama quando escassíssimas pessoas na faixa dos trinta ou quarenta anos sabem sequer o que isso é. E dispara para dentro do partido, ao arrepio do calendário eleitoral, e com todo estrondo que pode, apesar do adversário estar obviamente lá fora.
Fim de esclarecimento. Adiante com o relato.
Recapitulo, pois. Estaria o cavalheiro finalmente a compasso com a agenda? Os meus botões quedaram-se mudos. Até porque a resposta à minha exclamada interrogação foi dada de imediato pelo próprio dr. Gouveia. As eleições que interessam ao PS não são as próximas. São, isso sim, as que vão disputar-se em 2011. Nessa altura, gaguejou, o PS há-de estar em condições de retirar o poder ao PSD.
A sentença, como imaginam, nem merece comentários. Estou convencido, aliás, de que o dito dr. Gouveia falou das eleições de 2011 como poderia ter falado das de 2015 ou de 2019 (isto, claro, se sua eternidade, o dr. Jardim, não voltar a fazer a maldade de nos baralhar as contas dos anos eleitorais). O que ele verdadeiramente queria era despachar a bola para a frente. Só que o fez com tanta força que ela foi parar à bancada, levando atrás de si a bota, o pé e o dr. Gouveia himself, em mergulho vistoso em direcção ao estatelanço do fora de jogo.
Sabem. Politicamente falando, o fora de jogo é o crónico destino do dr. Gouveia. Tanto pelos seus incontáveis méritos. Como pelas ajudas que ocasionalmente recebe do lumpen que o aconselha. A recente entrevista de um tal Agostinho Soares é um hino ao disparate. O modo amigo e fraterno como publicamente se trucidam uns aos outros faz corar o próprio dr. Jardim. A total ausência de um discurso com um mínimo de sentido remete o PS-M para o domínio do exemplo de como não se deve fazer política. E a impressionante incapacidade que o partido revela em travar esta alegre e tola caminhada em direcção ao abismo é um verdadeiro case study. Mas, enfim. Como cada um sabe de si, eles certamente saberão o que é que pretendem da vida...
Bernardino da Purificação

quinta-feira, 23 de abril de 2009

O grande mestre do nosso xadrez

Até pode ser que o dr. Jardim esteja inocente. Mas conhecendo a sua propensão para a mania da traição florentina, ele há-de compreender que a gente desconfie. Adivinharam. Falo de Sérgio Marques e do processo que levou ao fim da sua comissão de serviço no parlamento europeu. Para insistir na ideia de que terá havido no caso a aplicação de uma rasteira das antigas. Ou para admitir com esforço que, a não ser assim, isto é capaz de ter sido coisa do demo ou dos astros.
Recuperemos alguns factos. Não há muito tempo, Jardim levou a leilão o lugar que Sérgio Marques ainda ocupa. O facto ocorreu na solenidade sombria de uma reunião do politburo do partido. E, segundo rezam as crónicas, quase toda a gente foi apanhada de surpresa. Não admira. Semanas antes, tanto o partido como a opinião pública tinham como adquirida uma nova candidatura do deputado Marques.
As mais benignas interpretações conspirativas feitas na altura convergiram num único sentido: Jardim tinha a intenção de substituir Sérgio Marques para poder jogar com o seu nome no tabuleiro das autárquicas. O verdadeiro alvo da manobra seria, como é evidente, o demasiado independente Miguel Albuquerque. E o beneficiário exclusivo da dita seria o fantástico tandem formado pelo inefável dr. Cunha e pela sua notável chefe de gabinete.
Manda a verdade que se diga que em certos círculos se aventaram outras hipóteses. Em homenagem ao maquiavelismo pindérico do dr. Jardim, houve quem admitisse a possibilidade de estarmos perante um cenário ainda mais retorcido. O seguinte. O nosso crónico líder anda com o delfim Cunha pelos cabelos. A irracionalidade divisionista do dito ameaça pôr o partido em estado de sítio. E como o PSD nunca esteve tão à beira de se escaqueirar por dentro como depois da ascensão do inenarrável Cunha às alturas do mando, o peão Sérgio Marques poderia ser o nome certo para, de uma assentada, pôr em sentido o presidente do Funchal e o vice-presidente da Madeira.
Sabem. A incrível facilidade com que o dr. Jardim sabe jogar com os apetites alheios é já quase mítica. De maneira que não excluo nenhuma das hipóteses precedentes. Mas dada a forma como as coisas evoluíram, parece claro que o dr. Jardim se esqueceu de um pequeno pormenor. Não abriu o jogo com Sérgio Marques. E o resultado está à vista. Este não foi em cantigas. Resolveu ficar de fora do saco de pulgas em que o PSD se transformou. E lá se perdeu mais um putativo delfim às ordens submissas do chefe. Para alegria de Cunha. Para contentamento de Albuquerque. Para regozijo desse petit richelieu que aparece em todas e dá pelo nome de Guilherme Silva. Porém, para furioso embaraço de quem, já por vício, vai mexendo e remexendo os cordelinhos. Faz-se assim a política da terra. Com esta elegância. Com esta categoria. E o grande líder lá vai saltitando de jogada em jogada.
Bernardino da Purificação

domingo, 19 de abril de 2009

Totalitarismo à moda do vice

O vice do chefe da ilha anda agastado com o valor excessivo dos impostos municipais. E como não é pessoa de calar o que sente, fez o favor de, em seu e em nosso nome, puxar as orelhas às câmaras, que é como quem diz aos presidentes das ditas. Estou-lhe grato. Gostei de saber que há por aí um vice preocupado com as contas que pagamos ao estado.
É verdade que apreciaria bastante mais que o dito cujo se abespinhasse, mesmo que fosse só em nosso nome, com os impostos que dele dependem e nos abocanham os rendimentos. Porém, compreendo que não lhe apeteça fazê-lo. É sempre mais fácil apontar o dedo aos outros.
Acontece, no entanto, que as leis democráticas que nos organizam a vida conferem ao poder local uma autonomia plena. Os responsáveis autárquicos subordinam-se apenas à vontade soberana de quem os elege. Não têm outra tutela que não seja a que decorre do império da lei. E têm o seu quadro de competências legalmente protegido da interferência de qualquer outro ente político. Para o dr. Cunha, no entanto, isso não passa de uma bizarria qualquer. Ele é vice-presidente do governo, logo pode botar sentença sobre tudo e mais alguma coisa. Mesmo ao arrepio do dever de contenção que os políticos a sério habitualmente respeitam.
Certo. Para além de político, o dr. Cunha é também cidadão. E foi nessa qualidade, há-de dizer sua excelência, que se permitiu dizer umas quantas verdades aos albuquerques e baetas instalados nas câmaras.
Pois. Compreendo o argumento. O Cunha-cidadão está contra a política municipal do partido do Cunha do governo. De modos que, sendo pessoas distintas, podem dizer o que querem, que ninguém há-de acusá-los do que quer que seja. Nem de safadeza. Nem de deslealdade. Nem de hipocrisia.
É claro que a gente percebe a verdadeira natureza das nobres preocupações do dr. Cunha. Como estamos em ano de autárquicas, é preciso suprir a falta de uma oposição a sério. Até porque senão os albuquerques ainda voltam a disparar nos votos, coisa obviamente terrível para o futuro político do nosso vice dr. Cunha, bem como para os interesses patrimoniais do cidadão que também é.
Mas o que verdadeiramente me preocupou nos três miseráveis pontinhos que hoje li do vice do chefe foi o argumento que utilizou. Diz ele que as câmaras devem reduzir as tabelas de impostos, dado que têm contratos-programa celebrados com o governo - no fundo, uma forma mais ou menos retorcida de sugerir que quem paga manda. Ora, não percebo por que razão deixou o argumento a meio. Se tivesse agitado um pouco mais as meninges levaria certamente mais longe a profundidade do raciocínio. Propondo a fixação administrativa (pelo governo, já se vê) das tabelas municipais de impostos e taxas. E acabando com essa fantasia que dá pelo nome de poder local autónomo. Uma dúzia de delegados do partido do governo bastariam para resolver a coisa. Em nome da democracia e dos interesses do dr. Cunha.
Bernardino da Purificação

Totalitarismo à moda da casa

O degredo político aguarda a chegada do dr. Sérgio Marques. A decisão está tomada. E o processo já está em marcha. Depois do incenso, da exaltação e das loas, o purgatório há-de ser a etapa seguinte. Em nome, claro está, dos superiores interesses do partido, do futuro da Região, das conveniências de quem manda.
Acreditem. Isto não é leninismo. É apenas jardinismo no seu estado mais puro: todos ao serviço do partido; todo o partido ao serviço do chefe. Sem lugar para o luxo da dignidade pessoal. E sem margem para a mania do pensamento autónomo. É fácil de perceber. O sistema sobrepõe-se ao indivíduo como as engrenagens transcendem as peças. O todo é a única finalidade. As pessoas não passam de comparsas menores de valor coisificado e instrumental. E a encimar tão prodigiosa construção, existe apenas a excelsa e caprichosa vontade da única pessoa com direitos de personalidade - o nosso querido líder! Ora digam lá se a coisa não está bem concebida...
O dr. Jardim não sabe. Mas a sua força é simultaneamente a sua fraqueza. Ela só vale enquanto à sua volta só houver cunhas perversos e sonsos. À medida que se for descobrindo que o purgatório é suportável e que a dignidade vale mais do que o elogio de consumo instantâneo, há-de começar a perceber-se que o chefe não passa (ele também) de uma peça (apenas mais uma) da cada vez mais insuportável engrenagem que nos governa. Dispensável como todas as outras. Descartável como as demais. Os sistemas totalitários são assim: depois de implantados, sobrepõem-se até aos seus próprios criadores. E até o dr. Jardim há vir a percebê-lo um dia.
Não custa admitir, dito isto, que o dr. Jardim só faz o que lhe dá na gana porque o partido, virgílios e sérgios incluídos, lhe permite que ele faça apenas o que lhe dá na gana. Todos lhe dão carta branca. E nunca ninguém se atreveu a balizar a discricionaridade da sua vontade. Pois o resultado aí está. Desta vez sob a forma de caso Sérgio Marques. Da próxima envolvendo outro nome qualquer, num processo que há-de depender, como é bom de ver, da intriga palaciana que nesse momento vingar.
Concordo com o que diz hoje o dr. Cunha nos três pontinhos que no Diário escrevinha: a política regional anda estranha. E nada como quem sabe do que fala para nos lembrar que a política madeirense é um terreno pouco sadio de jogadas subterrâneas e intriga permanente, onde impera a ausência de escrúpulos e o apetite desenfreado dos que se sentam à direita do chefe. Sérgio Marques vai senti-lo agora. Só espero é que tenha a arte de trocar as voltas aos que pretendam fazer dele um caso exemplar de punição da dignidade atrevida. Sabem. Resistir é também um bom exemplo. Sobretudo para os que possam não ter ainda descoberto que há muito mais vida para além da cada vez menos recomendável política oficial do nosso totalitarismo doméstico.
Bernardino da Purificação

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Queridos inimigos

O DN anda em guerra com o dr. Jardim. Como a qualidade dos entes se mede em grande medida pela estatura dos inimigos que têm, é de presumir que estão bem um para o outro. O dr. Jardim adora, como se sabe, o papel de vítima putativa dos azedumes ocasionais de alguma comunicação social. E o DN anda, pelos vistos, com umas súbitas maldades entaladas na garganta. Resultado: nem as amêndoas pascais adoçaram a relação de tão queridos e inseparáveis inimigos; e nem a leve circunstância de o dr. Jardim ter sido durante anos o melhor director de marketing do "independente" cá do burgo teve o condão de suavizar o, salvo seja, morticínio que todos os dias se anuncia.
Uma vez que o terreno escorrega, e porque o seguro morreu de velho, deixem-me esclarecer desde já o que penso do leitmotiv alegado de tão belicosa refrega. Entendo, sem margem para dúvidas, que a EDN tem razão. É injusto que o poder político distorça, ainda por cima em seu exclusivo benefício, as regras da concorrência. É imoral que um governo se permita interferir no mercado publicitário ao sabor da discricionaridade das suas conveniências. É perverso o poder que asfixia sem pestanejar tanto a imprensa que tutela como aquela que não controla. A social-democracia não é isso. O papel regulador do estado também não. A função supletiva do sector público muito menos.
Acho muito bem, portanto, que a EDN reaja. Emitindo os comunicados que considere oportunos. Denunciando a violência de que está a ser vítima. E levando o caso a todas as instâncias que lhe parecerem capazes de acabar com o desmando.
Há, todavia, uma perplexidade que me aflige. As razões da EDN são velhas de vários anos. A intervenção do governo no JM é um processo que vem de longe. E a utilização perversa da publicidade como meio de pressão política é uma prática com mais de duas décadas. Não obstante, nunca o protesto da administração do DN foi tão audível, tão radical, tão veemente. Como se só agora tivesse despertado para o problema. Ou como se as velhas fórmulas (inocente eufemismo das negociatas promíscuas de certas traficâncias político-jornalísticas) com que sempre lidou com ele tivessem de repente perdido a eficácia.
Reconheça-se. O caso dá que pensar. E eu, acreditem, gostava que um dia me explicassem o que é que, afinal, mudou assim tanto na relação tantas vezes cúmplice, e quase sempre lucrativa para ambos, entre a EDN e o dr. Jardim. Não é por nada. Mas tenho o péssimo costume de gostar de perceber as coisas.
Como não gosto das meias-tintas, permito-me ainda uma nota final. Compreendo, como disse, a justeza das razões da administração da EDN. Verifico, no entanto, que a expressão do seu protesto vem contaminando a orientação editorial do Diário. E assim há-de ser até à celebração de mais um armistício (outro eufemismo). Não me sinto, nem mesmo ao de leve, incomodado com o facto. Suspeito, no entanto, que o dr. Jardim agradece a gentileza. Uma imprensa hostil às vezes dá jeito. Quanto mais não seja para justificar atitudes e branquear o faz-de-conta da democracia que temos.
Bernardino da Purificação

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Instabilidade com pré-aviso

Curioso. Três dias depois, e nada. Nem uma palavra. Nem um comentário. Nem um rumor. Jardim assobia para o lado. A Rua dos Netos limita-se a observar. Os comentadores oficiosos nem deram pelo assunto. As araras da Quinta Vigia esganiçam silvos despreocupados. E, barricado na cidadela do seu gabinete, o dr. Albuquerque espreita e espera. Entretanto, cá fora, a malta comenta. É o pobre do dr. Jardim que deixou de ter mão mão no partido. É o presidente da Câmara que sem os votos das autárquicas fenece politicamente. E é o folhetim da sucessão que vai erraticamente marchando ao sabor dos impulsos dos candidatos irrequietos.
Seja lá o que for, a verdade é que o dr. Jardim foi encostado à parede. Com um simples título de jornal, Albuquerque trocou-lhe as voltas. E a gestão política do processo de preparação das autárquicas deixou de ser exclusiva do crónico dono da estratégia laranja.
Tenho como certo que Jardim não tem outro remédio senão engolir a afronta. A menos, claro, que lhe surja o milagre de uma ajuda externa. Não vejo, porém, que os ganhos da manobra política de Albuquerque possam ir além da sua já quase inevitável candidatura. É verdade que ao permitir-se torpedear a estratégia eleitoral do líder do partido a que pertence, o actual presidente da Câmara do Funchal conseguiu pôr em evidência a relativa autonomia dos seus objectivos políticos. O problema do episódio é que se calhar acrescentou mais uma mossa ao relacionamento politicamente distante que se sabe existir entre ele e o chefe da agremiação a que ambos pertencem.
Não nos iludamos. O dr. Jardim é muito capaz de fingir entusiasmo quando um dia destes vier a público oficializar a recandidatura de Miguel Albuquerque. Mas como não é político de ficar a remoer desaforos em casa, é certo e sabido que depois vamos ter festa. Como aconteceu no tempo de Virgílio Pereira. E como há-de acontecer sempre que alguém tiver o atrevimento de colocar uma agenda pessoal, por mais legítima que seja, à frente da estratégia do presidente do partido.
A sorte de Albuquerque, de Jardim e do PSD é que a oposição é curta. Porque neste quadro de circunstâncias não há mais-valia política no facto de a Câmara do Funchal e o governo da Região virem a ter novamente a mesma cor partidária. Bem pelo contrário. O cenário mais provável é que o relacionamento entre os dois executivos venha a ser difícil e pontualmente crispado. Tanto pelo que atrás ficou dito, como pelo facto de ser público e notório que Jardim não quer Albuquerque nas contas da sucessão. Ora, como a corda se rompe sempre pelo lado mais fraco, está-se mesmo a ver a festarola em que andaremos daqui a alguns meses.
Se ao menos houvesse uma oposição a sério...
Bernardino da Purificação

sexta-feira, 3 de abril de 2009

A casa em desordem

1. Albuquerque fartou-se do tabu à moda de Jardim e passou ao ataque. Ainda ninguém lhe disse que sim ou que não, mas ele já sabe que é candidato a um novo e último mandato da CMF. Não tem assento no órgão do partido com poder deliberativo sobre a matéria, mas já decidiu que vai a votos com a equipa que actualmente o acompanha. Quanto ao dr. Jardim, ele que vá dar uma voltinha, mais a sua estratégia de gestão do silêncio e do tempo, que ele, Albuquerque, tem mais que fazer do que ficar eternamente dependente de caprichos ou planos alheios.
Decididamente, as coisas no PSD já não são o que sempre foram. A vontade soberana do chefe já teve melhores dias. E agora das duas uma: ou o dr. Jardim engole a afronta, procurando integrar o voluntarismo de Albuquerque na estratégia do partido, ou abre uma brecha na pretensa unidade do dito. Juro que não é por maldade. Mas dá-me um certo gozo imaginar o dr. Jardim furioso e à rasca, sem saber se deve dar um murro na mesa, ou se deve fazer de conta que o assunto não é com ele. Sabem. As lideranças eternas têm às vezes percalços assim. Instalam-se no tempo, e acabam por esquecer que tudo na política tem um prazo de validade. Até a eternidade.
2. Consta que os sócios do Marítimo autorizaram a direcção a prosseguir os trabalhos com vista à transformação do estádio regional dos Barreiros em arena futebolística verde-rubra. Achei graça à notícia. Meia dúzia de cavalheiros resolveram decidir sozinhos um assunto que os ultrapassa. Como se a Madeira e o Marítimo se confundissem. Ou como se a assembleia-geral de um clube tivesse direitos de representação de todos os madeirenses.
Insisto nesta ideia. Para mal dos nossos pecados, somos todos sócios à força e contribuintes líquidos obrigados de uma sociedade anónima desportiva. Não obstante, as decisões que nos dizem respeito são-nos literalmente subtraídas por um órgão em que não participamos. Como sou leigo em leis e parco em ideias, já me perguntei se uma providência cautelar ou uma acção popular poderiam contribuir para pôr esta gente na ordem. Mas como a ignorância nada me responde, atrevo-me a pedir a algum dos meus solícitos leitores a graça de uma resposta.
Compreendam. Por um lado, maça-me profundamente que o senhor Pereira-presidente-do-Marítimo, em quem nunca votaria para coisa nenhuma, entenda que tem o direito de usar e abusar dos meus direitos de cidadania. E aborrece-me solenemente, por outro, que se pretenda confinar à assembleia-geral de um clube de bola, por mais respeitável que seja, uma decisão potencialmente lesiva dos interesses paisagísticos, ambientais e urbanísticos da capital da Região.
Pode ser que esteja a ver mal o problema. Mas acho que chegou a altura de explicar a esta malta que até na Madeira há muito mais vida para além dos interesses da bola e dos caprichos de quem manda.
Bernardino da Purificação

domingo, 29 de março de 2009

O novo evangelho segundo Jardim

Salve, dr. Jardim. Vosselência acaba de inscrever o seu ilustre nome no restrito rol de políticos com pretensões moralizadoras. Há trinta e não sei quantos anos que lhe andavam a sentir a falta. Dizendo, imagine-se o peso da injuria, que se tresmalhara em definitivo. E jurando, vejam só a injustiça dos homens, que são políticos da sua estirpe que dão mau nome à política. Eu sempre soube que não era assim. Algo me dizia que, na hora da verdade, o guardião da virtude que habita em si se libertaria das grilhetas que o aprisionaram durante mais de três décadas. É com um misto de alegria e orgulho que verifico que não me enganei.
Para quem não sabe, aqui fica a grata novidade: o dr. Jardim acaba de defender que políticos suspeitos de corrupção deveriam ser pura e simplesmente postos a andar. Mesmo que não tenham sido acusados de nada por quem de direito. Ou que nunca venham a ser formalmente acusados de coisa nenhuma. Bem haja, pois, dr. Jardim. O moralismo pátrio está-lhe grato. E a seriedade acaba de contrair uma dívida que não há-de pagar tão cedo. A política, estou certo, não voltará jamais a ser como dantes.
Presumo que sabem do que falo. A voz justiceira do novo campeão da ética governativa acaba de pedir a cabeça do engenheiro Sócrates. Numa democracia a sério, sentenciou o nóvel paladino dos bons costumes - honni soit... -, primeiro-ministro suspeito é primeiro-ministro despedido. E como as democracias a sério devem ser o farol das que não passam de um reles faz-de-conta, está-se mesmo ver onde vai desaguar esta nova e inesperada tese ético-política do nosso dr. Jardim: ao justicialismo da praça pública; ao veredicto sem contraditório da vox populi; à mimosa inversão do ónus da prova. Essa dispensável coisa esdrúxula que dá pelo nome de sistema formal de justiça deixa de contar para o que quer que seja. E as provas a ter em conta passarão a ser os justiceiros decibéis que o berreiro popular em cada momento produza.
Gosto da ideia, dr. Jardim. Ainda bem que alguém teve a coragem de verbalizar tão expedita tese. É verdade que vosselência não a enunciou em toda a espessa essência que tem. Mas não foi preciso. O simples facto de ter pedido a cabeça do primeiro-ministro a pretexto do caso freeport diz tudo sobre a sua adesão ao tele-evangelismo político nacional. E, como estou seguro de que a sua nova teoria não há-de aplicar-se em exclusivo ao caso concreto do engenheiro Sócrates, percebi com júbilo que, não tarda nada, vamos ficar todos a conhecer as contas e os financiadores da Fundação Social-Democrata; não tive dúvidas de que nunca mais assistiremos ao espectáculo indecoroso das suas manifestações públicas de solidariedade política a presidentes de câmara formalmente acusados de actos ilícitos; tive a certeza de que vosselência vai mandar investigar e punir os súbitos enriquecimentos que toda a gente conhece; fiquei certo de que as derrapagens de milhões em praticamente todas as obras públicas vão, enfim, ter consequências; foi-me dado entender que passarão a ser punidos com o olho da rua, em processo sumário de qualquer denúncia pública, todos os titulares de cargos políticos que omitam deliberadamente dados sobre a evolução do seu património quando preenchem as declarações que o Tribunal Constitucional exige; ganhei a convicção de que as "negociatas" em tempos denunciadas hão-de ter, todas, o desfecho devido; e sorri perante a visualização do cabisbaixo desfile de deputados-empresários em direcção à porta da rua.
Vosselência, dr. Jardim, devolveu-nos a esperança. Era mesmo do que andávamos a precisar. De maneira que nem vou cometer a deselegância de lhe falar da quinta do Brasil que um dia se disse que o meu ilustre amigo possuía. Até porque sei que o processo que instaurou a quem teve a ousadia da acusação foi mais tarde benevolamente retirado. Olhe, isso são águas passadas. Tal como as coisas obscuras do porto do Funchal. Tal como os negócios sinistros da Empresa de Electricidade da Madeira. Tal como aquela "estória" das actas do seu governo que, ao que se ouve dizer, ficam assinadas e abertas durante o largo período de um ano.
Compreenda-se. Ninguém há-de querer saber de miudezas perante a conversão de vosselência à bondade objectiva da justiça popular. Até porque, como é sabido, o céu regozija-se mais com a conversão de um pecador do que com as esperadas boa acções dos justos. Ora, se é assim no céu...!
Bernardino da Purificação

quinta-feira, 26 de março de 2009

A mundividência de quem manda

Consta que se encontra na Madeira uma delegação político-empresarial das ilhas Canárias. E está-se mesmo a ver que os jornais de amanhã vão dedicar ao facto o relevo que ele merece. As fotografias da praxe hão-de registar para a posteridade o nosso empreendedor vice tratando de assuntos sérios com o seu homólogo da vizinhança que nos fica a sul. Em lugar de destaque estará com certeza também o ex-keeper Grisaleña que, mercê dos serviços prestados ao Marítimo, goza de uma espécie de dupla indentidade insular. E, para compor a solenidade laboriosa do quadro, lá teremos fatalmente o brilho dos jovens acólitos do voluntarioso dr. Cunha.
Não há, podem crer, nenhum segredo ou mistério por detrás deste aparente exercício de adivinhação ou prognose. Um curto exercício de memória revela-nos que o ritual se repete sempre que dá jeito transmitir a ideia de que o dr. nosso vice trabalha afincadamente na definição de um quadro de cooperação entre a Madeira e Canárias. Ora, como as circunstâncias se puseram novamente a jeito do dr. Cunha, lá vamos tê-lo a apontar novamente a bússola do futuro para um sul qualquer que, pelos vistos, há-de fazer escala em Las Palmas. É natural. Se calhar, não conhece muito mais mundo do que esse.
É claro que me rendo à proactividade diligente do magno gestor da nossa economia. A Madeira necessita, de facto, de multiplicar os contactos com o exterior, nomeadamente com as áreas que lhe são contíguas. E só tem a ganhar com o reforço da cooperação institucional e económica com parceiros feridos de problemas semelhantes aos nossos. Devo observar, no entanto, que a África também nos é próxima. E ninguém levará a mal que acentue o enorme potencial que se esconde por detrás de certos processos regionais e sub-regionais africanos de integração económica. De modos que me incomoda pensar que a preguiça apressada do dr. Cunha pode levá-lo a sentir-se aliviado da responsabilidade de encontrar soluções externas para os males endémicos da nossa atravancada economia por via de uns encontros mais ou menos festivos e cheios de lugares-comuns com os sulistas nuestros hermanos.
Dirão os crentes - os genuínos, os convertidos e os de conveniência - que não é justo ser preso por ter cão e encarcerado por não ter. Têm razão. Juro que hei-de fazer penitência pública quando um dia verificar que esta aproximação natural a Canárias é capaz de render mais do que palavras, champanhe e croquetes. Mas compreendam. O cadastro do dr. Cunha neste domínio específico da procura de saídas para a economia da RAM até dá arrepios. Basta lembrar que, por manifesto descaso, a Madeira e as suas associações empresariais têm andado sistematicamente arredadas dos encontros que o governo português promove com as delegações ministeriais e empresariais que a seu convite nos visitam. Impõe-se recordar igualmente que temos uma Casa da Madeira em Lisboa (uma embaixada, imagine-se!) que nem uma simples informação nos faz chegar sobre o tráfego mensal de empresários à procura de parcerias, e de governos de países com dinheiro necessitados de tecnologia, capacidade empreendedora e competências várias. Do mesmo modo que, à cautela, convém recordar também a caríssima festarola de reservadíssimo consumo interno que o dr. Cunha promoveu há uns anos atrás a pretexto de uma iniciativa europeia pensada para a promoção externa das regiões da UE.
Enfim, cada um sabe de si, do mundo que conhece e das prioridades que tem. Mas como as acções do passado constituem uma boa grelha de antevisão do futuro, receio bem que venhamos um dia a descobrir que temos andado prisioneiros de uns ilustres cavalheiros para quem o mundo das oportunidades económicas se resume ao local onde passam as férias.
Bernardino da Purificação

segunda-feira, 23 de março de 2009

O embuste da santa aliança

É evidente que a culpa só pode ser minha. Cada um é como é. E eu, pobre de mim, nasci pobre de compreensão. De uma forma sumária, o meu problema formula-se assim: não percebi, não percebo, e tenho a certeza de que nunca hei-de perceber, qual a utilidade da visita institucional do inefável dr. Gama às latitudes africanas desta belíssima parcela pátria. Não é embirração minha, acreditem. É mesmo incapacidade. Por mais voltas que dê, não consigo enxergar qualquer efeito prático dos devaneios turístico-políticos do senhor presidente do parlamento nacional. Independentemente do empenho que parece estar a pôr neste indizível papel de kissinger luso de uso doméstico. Ou dos pungentes apelos que o dr. Jardim finge que faz com as reservas mentais conhecidas. E a razão é devastadoramente simples: sua excelência, até me dói a alma dizê-lo, não manda rigorosamente nada.
Não tenho a mais pequena intenção de apoucar tão subida figura do Estado português. Porém, convenhamos. O presidente do parlamento tem uma reduzidíssima capacidade de influenciar o curso da vida política nacional. Dirige os trabalhos de um parlamento comandado pela vontade de dois ou três directórios partidários. E substitui ocasionalmente o presidente da República se as ausências deste fizerem mergulhar o país na depressão da orfandade. Ora, como é bom de ver, e pedindo desculpa pela talvez excessiva simplificação, o facto confere a sua excelência a condição, salvo seja, ou de um mestre de cerimónias ou de um suplente escassamente utilizado. O que parecendo muito é, reconheçamo-lo, praticamente nada.
Não nos iludamos, pois. O dr. Gama só é a segunda figura da hierarquia do estado para efeitos de protocolo. Para quase nada mais. Tem influência porque frequenta os bastidores. Mas, em bom rigor, a sua vontade vale pouco mais do que coisa nenhuma.
Já que vou embalado, atrevo-me a ir um pouco mais longe. A influência do dr. Jaime Gama no curso da política portuguesa é muito mais tributária da sua conhecida condição de figura referencial de uma das sensibilidades do partido do poder do que do lugar que ocupa no protocolo de Estado. Aí, de facto, ele move-se bem e tem peso. O que me faz pensar que a sua visita à Madeira tenha sido ditada por egoístas razões partidárias e não por altruístas preocupações de Estado.
Explico. É vital para o dr. Gama não permitir que o poeta Alegre polarize todas as franjas de descontentamento que se sabe que existem no seio do PS relativamente ao líder Sócrates. E, na falta de melhor terreno de demarcação, encontrou no tapete vermelho que o dr. Jardim lhe estendeu o espaço que precisava para afirmar a autonomia do seu posicionamento estratégico.
Ou seja, estou perfeitamente convicto de que o dr. Gama veio à Madeira muito mais preocupado com Sócrates, e com a preservação do seu espaço no interior do partido, do que com essa novela de faca e alguidar que tem por sujeito o azedume crónico das relações entre os governos da Madeira e do país. Ele sabe muito bem que rigorosamente nada pode decidir nesse domínio. E tão bem ou melhor do que ele, sabe-o igualmente o dr. Jardim. Porém, ao líder madeirense deu jeito exaltar a putativa capacidade de intervenção do dr. Gama. Porque, fazendo-o, aumentou o valor do seu mais recente troféu de caça. Ao mesmo tempo que deu rédea solta à ideia de que a culpa das más relações com o continente reside em exclusivo na intransigência do primeiro-ministro.
Temos, pois, em marcha uma curiosa aliança entre dois ilustres e despudorados cavalheiros que não sentem qualquer problema em servir-se dos cargos institucionais que ocupam para juntarem mais um tijolo às estratégias político-pessoais que desenharam. A menos, claro, que o dr. Gama tenha aceite sacrificar por momentos a sua imagem de estadista em nome da meritória tarefa de tentar negociar com o dr. Jardim o lugar de recuo que ele tanto procura mas que um Sócrates azedo nunca lhe dará. Mas isso são coisas para verificarmos mais tarde. Para já, o que se retira do embuste de uma visita institucional que nunca valeu o que dela se tem dito é que o dr. Gama, consciente e deliberadamente, tirou mais uma vez o tapete aos seus correlegionários locais. Mas, pelos vistos, a alta política desenvolve-se assim.
Bernardino da Purificação

quinta-feira, 19 de março de 2009

Sai um pacote para a mesa do canto

Deixem-me ver se percebi. Afinal, e ao contrário do que pensávamos, temos crise. Apesar do trabalho de casa do dr. Cunha. E a despeito da excelência da governação que temos. Uma crise, imagine-se! Confesso que ainda estou mal refeito do choque.
Podem crer que se não fosse o dr. Jardim a anunciar tão devastadora novidade eu não lhe daria o mínimo crédito. Como se sabe, o homem não mente. E se veio a terreiro desmentir o seu vice é porque a coisa é séria. Arrepiemo-nos, pois. E confiemos mais uma vez na sorte.
É verdade que o dr. Jardim procurou tranquilizar-nos com o anúncio solene de um pacote de medidas. Quarenta e uma, mais precisamente. Creio, todavia, que a ênfase posta no número torpedeou-lhe os intentos. Ninguém pode ficar tranquilo quando são necessárias tantas medidas para combater uma crise.
Tenho para mim que o dr. Jardim foi levado ao engano pelos seus colaboradores próximos. O dr. Cunha, prudente, zarpou para o Porto Santo. Uma vez que nega a crise, é evidente que nunca se daria ao desfrute de aconselhar um número jeitoso ao chefe. De modos que deixou essa tarefa aos outros. Os mais tímidos alvitraram a modéstia da meia dúzia. Os mais ousados sentenciaram que um pacote de verdade há-de ter no mínimo duas ou três dezenas de bem esgalhadas medidas. O Machadinho, solícito, sacou do exagero e pespegou com o quarenta em cima do tampo da mesa. E o reflexivo dr. Brazão alertou os presentes para a seca redondeza de tal número. Não o disse, mas há-de ter pensado em qualquer coisa do tipo "ali-Jardim-babá e as suas quarenta medidas".
Enfim, a qualidade dos contributos fez entrar em cena o próprio dr. Jardim. Quarenta mais um, decretou então sua excelência. Porque é um número bonito. Porque assenta bem à gravidade da situação. E, ademais, porque tem o mérito de rimar com a situação da Madeira e com os trinta e um que já levo desta vida. E assim nasceu o pacote com que o dr. Jardim nos quis devolver a esperança.
Consta que a discussão sobre o número terá sido muito mais dura do que a selecção das medidas. É natural. Umas pázadas de programas em curso para usufruto dos privilegiados do costume seria suficiente para estruturar a coisa. Depois, compor-se-ia o ramalhete com a possibilidade de os interessados somarem mais dívida à dívida que têm. Mas para não haver dúvidas quanto à modernidade da coisa, foi dado um retoque final com duas arengas que ficam sempre bem. Uma respeitante à modernização das empresas. E outra apontada para a necessidade de conter o desemprego.
Não desvalorizo as intenções presidenciais. Questiono, porém, a seriedade de um suposto plano de contingência cheio de medidas requentadas. Por uma razão óbvia e simples. Se, ao contrário do que supôs o senhor vice, elas não nos defenderam da crise, como poderão agora combatê-la?
O episódio teve, no entanto, o mérito da revelação. Trouxe à evidência que o modelo económico mantido não tem almofadas para situações de emergência. Revelou que não sobraram recursos do obreirismo louco que fizeram abater sobre nós. Demonstrou que em trinta e um anos a nossa economia só tem navegado à vista. Mostrou-nos a todos, em suma, que o actual paradigma está morto, porém, ainda não devidamente enterrado. E é pena. Porque o sector público não pode continuar a absorver a quase totalidade dos nossos escassos recursos (ainda por cima em obras que apenas acrescentam despesa à despesa). Porque há problemas de competitividade da economia que não se resolvem com o embuste dos pacotes de conjuntura. Porque há um mundo lá fora carregado de oportunidades a que por qualquer motivo recusamos aceder. E porque, sem prejuízo do seu carácter evolutivo, há uma autonomia política que tem de passar da fase da conquista para a fase do exercício responsável.
É preciso, em suma, mudar de vida. Que a crise nos faça, ao menos, perceber a urgência dessa inevitabilidade. Sem desmerecer, claro está, o carácter profundamente didáctico do pacotinho do dr. Jardim.
Bernardino da Purificação

quarta-feira, 18 de março de 2009

O trabalhinho do dr. Gama

Os maldosos vão ter de engolir a desconfiança. Pensavam, se calhar, que o dr. Jaime Gama viria este ano ao Chão da Lagoa. Enganaram-se. Redondamente. Ele vem, sim senhor, mas agorinha já que mais tarde era capaz de dar um bocado nas vistas. Que diabo. O dr. Gama tem um pingo (aposto que é mesmo só um) de vergonha na cara. Se viesse ao Chão da Lagoa cairia certamente o Carmo e a Trindade. Vindo agora desarma os maldizentes. Ora digam lá se isto não é mesmo coisa de gente esperta.
O dr. Jardim disse há dias que do continente só era bem vindo quem viesse trabalhar. Como já sabia da visita do sócio número um do seu cada vez mais restrito clube de fãs, tenho como certo que o dr. Gama vem preparado para dar o corpinho (salvo seja) ao manifesto. Compreenda-se. O dr. Jardim está cada vez mais exigente. De tal modo que onde antes se resolviam as angústias do inquilino das ditas com meia dúzia de elogios, agora é necessária uma visita, uma mão cheia de recepções, as primeiras páginas que forem necessárias, umas quantas entrevistas de exaltação das virtudes democráticas do regime e do seu chefe, tudo isso, como é evidente, devidamente condimentado com o tempero da desvergonha. Entretanto, lá no continente, o eng. Sócrates há-de corar de arrependimento e porventura de inveja. Ele que aprenda. Não é para todos ser recebido na Madeira como o dr. Gama vai seguramente ser.
Enternece-me, devo dizer, o enlevo das relações simpáticas entre os órgãos de soberania e os órgãos de governo próprio da Região. Desde que devidamente salvaguardada a esfera de competências de cada um. E na óbvia condição de serem democraticamente respeitadas as diferenças de pontos de vista que possam separar conjunturalmente os dois lados. Note-se. A tensão autonómica não pode ser tida como um drama da pátria. Pelo contrário. Se devida e responsavelmente enquadrada, estou certo de que ela pode, ao invés, constituir um importante impulso criador do desenho do nosso futuro colectivo. Há, todavia, um porém que nenhum político a sério tem o direito de esquecer. As boas relações têm de assentar numa base sólida de respeito e reciprocidade. A não ser assim, a desconfiança instala-se, o diálogo vai-se, e, como tradicionalmente acontece em momentos de azedume, quem se lixa é sempre o mexilhão, se vosselências me permitem a crustácea maresia da expressão plebeia.
Não quero lembrar coisas do passado. O que lá vai, lá vai, e não se fala mais nisso. Mas juro que ainda não percebi como, e por que artes, é que o dr. Jardim conseguiu subir tanto na tabela taxonómica do dr. Gama. Arrancou do fundo mais fundo que imaginar se possa. Mas agora já se senta onde se sentam os eleitos.
Para os mais esquecidos recordo que na mente preclara do dr. Gama já não há uma sombra sequer do bokassa de tempos idos ou do défice democrático de má memória. Onde antes havia um ditador há agora um ilustríssimo democrata. E o patriota imenso que o dr. Jardim obviamente agora é nada tem a ver com o famigerado separatista de outros tempos. As coisas mudaram, em suma. Mudou evidentemente o dr. Gama. E mudou, pelos vistos, também o dr. Jardim. A maçada é que ninguém percebeu em que ponto da política lusa se produziu o clique que deu origem a tão acentuada mudança. Bora lá perguntar ao dr. Gama quando e como foi? Ao dr. Jardim não vale a pena que ainda é capaz de nos fazer um manguito, mandar bardamerda ou levar a tribunal. Mas já que o dr. Gama é um senhor polido e paciente, e uma vez que preside ao órgão de soberania que o seu inesperado ídolo, em vistosas cuecas, mandou um dia àquela parte, há-de fazer-nos certamente o favor do esclarecimento conveniente. Mas note-se. Não me refiro ao esclarecimento que pessoalmente lhe convenha. Refiro-me ao outro. Àquele que a seriedade não dispensa.
Bernardino da Purificação

segunda-feira, 16 de março de 2009

Tudo como dantes

Gente amiga e obviamente crédula assegura-me que foi praga. Uma semana inteirinha impedido de escrever, explicaram, só pode ser coisa ou do mau olhado ou das artes clandestinas de vão de escada. A menos que me tenha vacilado a vontade, o que não foi (ainda) manifestamente o caso. Coisa impressionante. A vida da gente nas mãos electrónicas de sistemas high tech. Mas há, não obstante, quem prefira a irracionalidade das explicações do oculto.
Diga-se, no entanto, que nada se perdeu. A prosa que agrada a uns quantos é a mesma que uma imensidão de outros detesta. E, para além disso, a vida política madeirense anda cada vez mais parecida com uma telenovela brasileira - os episódios acontecem todos os dias, mas ninguém perde rigorosamente nada quando se salta uma semana.
É verdade que circularam por aí notícias sobre as (más) contas do PSD. Ao que parece, há uma relação não documentada de transferência de verbas entre o partido institucional da Madeira e a Fundação Social Democrata. So what? O fenómeno é novo? Alguém vai investigá-lo? Podem as autoridades judiciárias da Região pegar a sério no fio que a entidade fiscalizadora das contas dos partidos conseguiu agora inconsequentemente levantar? Sinceramente não creio. As prioridades são outras. E, a bem dizer, ninguém está para grandes maçadas.
É verdade também que o grupo parlamentar do PSD resolveu puxar o tapete a dois dos seus deputados. Um dia qualquer de um futuro que não se antevê próximo, vão ambos prestar contas à Justiça por actos praticados nas actividades que antecederam as actuais funções parlamentares que desempenham. Mas isto, convenhamos, nem merece ser notícia. Numa democracia normal não se perderia tempo a discutir o assunto. As contas que um deputado deve aos costumes por actos não relacionados com a vida parlamentar são exactamente iguais às de outro cidadão qualquer. Nem mais, nem menos. E não há regime de imunidades sério que as possa diferenciar.
Concedo, no entanto, que o episódio pode ter ingredientes suculentos. Com promessas interessantes no que diz respeito aos seus desenvolvimentos futuros. Mas com sugestões, também elas curiosas, sobre as putativas razões que lhe terão estado na origem. Como a malta da política adora matar o ócio consumindo as meninges em teorias da conspiração, há já quem jure, sabe-se lá com que intenções, que a singular acontecência deve ser tida à conta do alegre fratricídio em que andam esgadanhados alguns dos suspeitos do costume. Será?
Quanto ao mais, meus amigos e prezados inimigos, isto não ata nem desata. A crise resvala na couraça erguida pelo trabalho de casa do nosso dr. Cunha. O dr. Jardim continua a fazer mistério sobre os candidatos às autárquicas na esperança de que ao dr. Albuquerque se lhe estale o verniz. O líder transitório do PS anda por aí a fazer não se sabe bem o quê. O dr. Vieira prossegue a nobre e casamenteira cruzada que consiste em amancebar as volumetrias do dinheiro com os interesses dos munícipes. E o Marítimo continua a levar-nos o dinheirito nesta época de verbas curtas, salários em atraso e concorrência desleal. Ora, perante a incandescência parda de tão previsível quadro bordado e pintado em tons de pastel não é a ausência de uma semana que faz perder o fio à meada. Maçadora, isso sim, é por vezes a dependência do high tech. Ou das artes ocultas em esconsos vãos de escada, vá lá a gente saber...
Bernardino da Purificação

segunda-feira, 9 de março de 2009

A humildade confessada

Afinal, nem tudo está perdido. Li o texto de ontem do dr. Cunha e reconciliei-me com a política. A sua franqueza tocou-me. O exercício de humildade que fez sensibilizou-me.
Podem achar surpreendente. Mas acreditem que é verdade. Sem pruridos tolos nem subterfúgios escusados, o senhor nosso vice fez questão de informar-nos que, em regra, a ascensão ao poder tem tudo a ver com o acaso e nenhuma relação com o mérito. Mais. Ciente da incredulidade com que as suas palavras seriam acolhidas, ilustrou a tese com exemplos. De Barroso a Santana. De Guterres a Sócrates. De Balsemão a Cavaco.
Saibam os cépticos que o seu exercício de modéstia foi ainda mais longe. Ao ponto, imagine-se da injustiça auto-infligida. O facto de não ter cedido à tentação de incluir o seu nome na lista que elaborou é algo que só o credibiliza e lhe atesta a honra. Não significa, estou certo disso, que exclua a política regional e o seu caso particular da bondade da tese. O que aconteceu, aposto, é que a modéstia há-de ter falado mais alto - emparceirar ao lado de tanto peso-pesado é coisa que seguramente não passa pela humilde cabeça do dr. Cunha. Nem mesmo a título de acidente do acaso.
Se bem percebi a intencionalidade da prosa, o nosso improvável vice terá pretendido com ela visar alguém em particular. Compreende-se. O dr. Cunha pode não passar de um governante acidental. Mas dá para perceber que não é homem de atirar palavras ao vento assim como quem atira milhões ao mar. Resiste, é verdade, à cruel tentação de identificar o seu alvo. Porém, o político frontal que sabemos que é não podia ser mais directo - aponta clara e inequivocamente para um atrevidote qualquer que anda para aí a dar-se ao desmazelo de perder tempo e cabelo planeando estratégias de tomada do poder. Bravo, dr. Cunha. Ficaria mal comigo mesmo se não lhe relevasse a coragem, o tacto e o sentido de oportunidade. A coragem porque vosselência não treme quando a consciência o interpela a desmascarar certas jogadas. O tacto porque, como toda a gente percebe pela farta e leonina cabeleira que laboriosamente penteia, vosselência tem a prudência de se limitar a perder tempo. E o sentido de oportunidade porque de facto chegou a altura de se denunciar e fazer abortar o descaramento incompetente de certo tipo de manobras.
Tome cuidado, porém, dr. Cunha. Não leve excessivamente à letra a tese que desenvolve. E atenção ao princípio de Peter. Acredite que uma carreira bem sucedida exige muito mais do que a simples garupa da sorte. Sobretudo em política. Pode crer que as pessoas que votam um dia percebem o logro em que caíram. Mas isto, é claro, só vale para quem vai a votos. Não para quem galhardamente escolhe a sombra protectora de um guarda-chuva aberto ao acaso.
Bernardino da Purificação

sexta-feira, 6 de março de 2009

O planeamento sem plano

Tropecei hoje ao pequeno-almoço num pensamento complexo. E pasmei. Tanto pelo facto de dar por mim enredado em pensamentos. Como pela natureza intrínseca dos ditos. A nossa mente, acreditem, é um instrumento surpreendente. E eu, deslumbrado, não posso deixar de exaltá-lo.
Note-se. Não foi propriamente este o produto matinal da insólita excitação dos meus fatigados neurónios. Nada disso. O conteúdo do intróito não é mais do que um efeito colateral desse meu irreprimível estado de pasmo perante a verificação de como duas pequenas notícias aparentemente desligadas conseguem explicar-nos que o método preferido de quem nos governa é governar quase sempre com ausência de um método. Percebe-se a ideia. Só a irracionalidade é capaz de suprir o uso da razão.
Passemos então aos factos. Em virtude de uma notável conjugação astral, a que é com certeza alheia tanto a vice-presidência como o nosso sagaz vice, a edição de sexta do DN trouxe-nos à memória duas das expressões mais notáveis do nosso tenaz planeamento sem plano. Em notícia de página inteira, voltamos a ter contacto com a marina do Lugar de Baixo. Mais adiante, mas em forma de notícia curta, lá voltámos a ter novas desses equipamentos notáveis que a modéstia de quem manda singelamente apelida de parques empresariais.
Quanto à marina, e a avaliar pelo que se lê, as perspectivas não podem ser mais promissoras. A zona balnear adjacente é capaz de voltar a abrir quando chegar a estação dos banhos. A escarpa lateral que a encima vai a caminho da consolidação. E a malha de aço que rezamos que a segure está a dias de enfrentar o teste pesado dos pedregulhos que ocasionalmente dela despencam. Sinceramente gostei do que li. Nada como as boas notícias para nos fazer esquecer o negrume das más. E nada como a antevisão fabricada de um futuro aparentemente radioso para nos levar a encerrar no saco dos esquecidos o desperdício dos milhões atirados ao lixo.
Não sendo tão imediatamente promissora, a notícia sobre os parques do nosso vice-presidencial contentamento não deixa de acenar também para o brilho dos dias que estão para vir. É certo que nada nos diz sobre a erva que cresce ou sobre as cabrinhas que pastam. Mas, ao anunciar-nos uma linha de ajuda directa à edificação de armazéns, leva-nos ao vislumbre de um futuro laborioso de parques pejados de empresas a mexer. Gosto da sugestão. Já chega de parques empresariais deserto de empresas.
A maçada, num caso e noutro, é que não consigo travar as perguntas que me acodem. Custa-me perceber, por exemplo, que urgência ditou a construção frenética de parques sem o prévio envolvimento das associações empresariais. Do mesmo modo que me faz espécie que se tenha desatado a expropriar terrenos, a edificar infra-estruturas e a fazer inaugurações sem que ao menos uma alma caridosa se tivesse lembrado da necessidade simultânea e óbvia de se desenhar um programa de ajudas atractivo para as empresas. Pelo vistos, só meia dúzia de anos depois de concluídas as obras de construção, e nalguns casos já de manutenção, é que alguém percebeu que é preciso muito mais do que o simples toque de caixa da vontade de um voluntarista qualquer para que um empresário aceite alterar drasticamente as rotinas e a vida da sua empresa.
Mas o que me custa mesmo aceitar é que se tenha construído uma marina e um complexo balnear numa zona duplamente crítica sem a prudência de um estudo prévio. De dinâmica costeira nem se falou. E, conforme reconheceu um especialista da UMa, da instabilidade da falésia também não. Porém, gastou-se dinheiro. Uma verdadeira fortuna. Em obras e em obras de reparação das obras. Tudo isto porque um indivíduo qualquer se apanhou com o poder de gerir como lhe dá jeito o dinheiro dos contribuintes. E porque ninguém lhe ensinou que nada de durável se constrói no meio natural sem o estudo prévio das circunstâncias envolventes. Mas não há problemas. A gente depois paga.
Bernardino da Purificação