domingo, 29 de março de 2009

O novo evangelho segundo Jardim

Salve, dr. Jardim. Vosselência acaba de inscrever o seu ilustre nome no restrito rol de políticos com pretensões moralizadoras. Há trinta e não sei quantos anos que lhe andavam a sentir a falta. Dizendo, imagine-se o peso da injuria, que se tresmalhara em definitivo. E jurando, vejam só a injustiça dos homens, que são políticos da sua estirpe que dão mau nome à política. Eu sempre soube que não era assim. Algo me dizia que, na hora da verdade, o guardião da virtude que habita em si se libertaria das grilhetas que o aprisionaram durante mais de três décadas. É com um misto de alegria e orgulho que verifico que não me enganei.
Para quem não sabe, aqui fica a grata novidade: o dr. Jardim acaba de defender que políticos suspeitos de corrupção deveriam ser pura e simplesmente postos a andar. Mesmo que não tenham sido acusados de nada por quem de direito. Ou que nunca venham a ser formalmente acusados de coisa nenhuma. Bem haja, pois, dr. Jardim. O moralismo pátrio está-lhe grato. E a seriedade acaba de contrair uma dívida que não há-de pagar tão cedo. A política, estou certo, não voltará jamais a ser como dantes.
Presumo que sabem do que falo. A voz justiceira do novo campeão da ética governativa acaba de pedir a cabeça do engenheiro Sócrates. Numa democracia a sério, sentenciou o nóvel paladino dos bons costumes - honni soit... -, primeiro-ministro suspeito é primeiro-ministro despedido. E como as democracias a sério devem ser o farol das que não passam de um reles faz-de-conta, está-se mesmo ver onde vai desaguar esta nova e inesperada tese ético-política do nosso dr. Jardim: ao justicialismo da praça pública; ao veredicto sem contraditório da vox populi; à mimosa inversão do ónus da prova. Essa dispensável coisa esdrúxula que dá pelo nome de sistema formal de justiça deixa de contar para o que quer que seja. E as provas a ter em conta passarão a ser os justiceiros decibéis que o berreiro popular em cada momento produza.
Gosto da ideia, dr. Jardim. Ainda bem que alguém teve a coragem de verbalizar tão expedita tese. É verdade que vosselência não a enunciou em toda a espessa essência que tem. Mas não foi preciso. O simples facto de ter pedido a cabeça do primeiro-ministro a pretexto do caso freeport diz tudo sobre a sua adesão ao tele-evangelismo político nacional. E, como estou seguro de que a sua nova teoria não há-de aplicar-se em exclusivo ao caso concreto do engenheiro Sócrates, percebi com júbilo que, não tarda nada, vamos ficar todos a conhecer as contas e os financiadores da Fundação Social-Democrata; não tive dúvidas de que nunca mais assistiremos ao espectáculo indecoroso das suas manifestações públicas de solidariedade política a presidentes de câmara formalmente acusados de actos ilícitos; tive a certeza de que vosselência vai mandar investigar e punir os súbitos enriquecimentos que toda a gente conhece; fiquei certo de que as derrapagens de milhões em praticamente todas as obras públicas vão, enfim, ter consequências; foi-me dado entender que passarão a ser punidos com o olho da rua, em processo sumário de qualquer denúncia pública, todos os titulares de cargos políticos que omitam deliberadamente dados sobre a evolução do seu património quando preenchem as declarações que o Tribunal Constitucional exige; ganhei a convicção de que as "negociatas" em tempos denunciadas hão-de ter, todas, o desfecho devido; e sorri perante a visualização do cabisbaixo desfile de deputados-empresários em direcção à porta da rua.
Vosselência, dr. Jardim, devolveu-nos a esperança. Era mesmo do que andávamos a precisar. De maneira que nem vou cometer a deselegância de lhe falar da quinta do Brasil que um dia se disse que o meu ilustre amigo possuía. Até porque sei que o processo que instaurou a quem teve a ousadia da acusação foi mais tarde benevolamente retirado. Olhe, isso são águas passadas. Tal como as coisas obscuras do porto do Funchal. Tal como os negócios sinistros da Empresa de Electricidade da Madeira. Tal como aquela "estória" das actas do seu governo que, ao que se ouve dizer, ficam assinadas e abertas durante o largo período de um ano.
Compreenda-se. Ninguém há-de querer saber de miudezas perante a conversão de vosselência à bondade objectiva da justiça popular. Até porque, como é sabido, o céu regozija-se mais com a conversão de um pecador do que com as esperadas boa acções dos justos. Ora, se é assim no céu...!
Bernardino da Purificação

quinta-feira, 26 de março de 2009

A mundividência de quem manda

Consta que se encontra na Madeira uma delegação político-empresarial das ilhas Canárias. E está-se mesmo a ver que os jornais de amanhã vão dedicar ao facto o relevo que ele merece. As fotografias da praxe hão-de registar para a posteridade o nosso empreendedor vice tratando de assuntos sérios com o seu homólogo da vizinhança que nos fica a sul. Em lugar de destaque estará com certeza também o ex-keeper Grisaleña que, mercê dos serviços prestados ao Marítimo, goza de uma espécie de dupla indentidade insular. E, para compor a solenidade laboriosa do quadro, lá teremos fatalmente o brilho dos jovens acólitos do voluntarioso dr. Cunha.
Não há, podem crer, nenhum segredo ou mistério por detrás deste aparente exercício de adivinhação ou prognose. Um curto exercício de memória revela-nos que o ritual se repete sempre que dá jeito transmitir a ideia de que o dr. nosso vice trabalha afincadamente na definição de um quadro de cooperação entre a Madeira e Canárias. Ora, como as circunstâncias se puseram novamente a jeito do dr. Cunha, lá vamos tê-lo a apontar novamente a bússola do futuro para um sul qualquer que, pelos vistos, há-de fazer escala em Las Palmas. É natural. Se calhar, não conhece muito mais mundo do que esse.
É claro que me rendo à proactividade diligente do magno gestor da nossa economia. A Madeira necessita, de facto, de multiplicar os contactos com o exterior, nomeadamente com as áreas que lhe são contíguas. E só tem a ganhar com o reforço da cooperação institucional e económica com parceiros feridos de problemas semelhantes aos nossos. Devo observar, no entanto, que a África também nos é próxima. E ninguém levará a mal que acentue o enorme potencial que se esconde por detrás de certos processos regionais e sub-regionais africanos de integração económica. De modos que me incomoda pensar que a preguiça apressada do dr. Cunha pode levá-lo a sentir-se aliviado da responsabilidade de encontrar soluções externas para os males endémicos da nossa atravancada economia por via de uns encontros mais ou menos festivos e cheios de lugares-comuns com os sulistas nuestros hermanos.
Dirão os crentes - os genuínos, os convertidos e os de conveniência - que não é justo ser preso por ter cão e encarcerado por não ter. Têm razão. Juro que hei-de fazer penitência pública quando um dia verificar que esta aproximação natural a Canárias é capaz de render mais do que palavras, champanhe e croquetes. Mas compreendam. O cadastro do dr. Cunha neste domínio específico da procura de saídas para a economia da RAM até dá arrepios. Basta lembrar que, por manifesto descaso, a Madeira e as suas associações empresariais têm andado sistematicamente arredadas dos encontros que o governo português promove com as delegações ministeriais e empresariais que a seu convite nos visitam. Impõe-se recordar igualmente que temos uma Casa da Madeira em Lisboa (uma embaixada, imagine-se!) que nem uma simples informação nos faz chegar sobre o tráfego mensal de empresários à procura de parcerias, e de governos de países com dinheiro necessitados de tecnologia, capacidade empreendedora e competências várias. Do mesmo modo que, à cautela, convém recordar também a caríssima festarola de reservadíssimo consumo interno que o dr. Cunha promoveu há uns anos atrás a pretexto de uma iniciativa europeia pensada para a promoção externa das regiões da UE.
Enfim, cada um sabe de si, do mundo que conhece e das prioridades que tem. Mas como as acções do passado constituem uma boa grelha de antevisão do futuro, receio bem que venhamos um dia a descobrir que temos andado prisioneiros de uns ilustres cavalheiros para quem o mundo das oportunidades económicas se resume ao local onde passam as férias.
Bernardino da Purificação

segunda-feira, 23 de março de 2009

O embuste da santa aliança

É evidente que a culpa só pode ser minha. Cada um é como é. E eu, pobre de mim, nasci pobre de compreensão. De uma forma sumária, o meu problema formula-se assim: não percebi, não percebo, e tenho a certeza de que nunca hei-de perceber, qual a utilidade da visita institucional do inefável dr. Gama às latitudes africanas desta belíssima parcela pátria. Não é embirração minha, acreditem. É mesmo incapacidade. Por mais voltas que dê, não consigo enxergar qualquer efeito prático dos devaneios turístico-políticos do senhor presidente do parlamento nacional. Independentemente do empenho que parece estar a pôr neste indizível papel de kissinger luso de uso doméstico. Ou dos pungentes apelos que o dr. Jardim finge que faz com as reservas mentais conhecidas. E a razão é devastadoramente simples: sua excelência, até me dói a alma dizê-lo, não manda rigorosamente nada.
Não tenho a mais pequena intenção de apoucar tão subida figura do Estado português. Porém, convenhamos. O presidente do parlamento tem uma reduzidíssima capacidade de influenciar o curso da vida política nacional. Dirige os trabalhos de um parlamento comandado pela vontade de dois ou três directórios partidários. E substitui ocasionalmente o presidente da República se as ausências deste fizerem mergulhar o país na depressão da orfandade. Ora, como é bom de ver, e pedindo desculpa pela talvez excessiva simplificação, o facto confere a sua excelência a condição, salvo seja, ou de um mestre de cerimónias ou de um suplente escassamente utilizado. O que parecendo muito é, reconheçamo-lo, praticamente nada.
Não nos iludamos, pois. O dr. Gama só é a segunda figura da hierarquia do estado para efeitos de protocolo. Para quase nada mais. Tem influência porque frequenta os bastidores. Mas, em bom rigor, a sua vontade vale pouco mais do que coisa nenhuma.
Já que vou embalado, atrevo-me a ir um pouco mais longe. A influência do dr. Jaime Gama no curso da política portuguesa é muito mais tributária da sua conhecida condição de figura referencial de uma das sensibilidades do partido do poder do que do lugar que ocupa no protocolo de Estado. Aí, de facto, ele move-se bem e tem peso. O que me faz pensar que a sua visita à Madeira tenha sido ditada por egoístas razões partidárias e não por altruístas preocupações de Estado.
Explico. É vital para o dr. Gama não permitir que o poeta Alegre polarize todas as franjas de descontentamento que se sabe que existem no seio do PS relativamente ao líder Sócrates. E, na falta de melhor terreno de demarcação, encontrou no tapete vermelho que o dr. Jardim lhe estendeu o espaço que precisava para afirmar a autonomia do seu posicionamento estratégico.
Ou seja, estou perfeitamente convicto de que o dr. Gama veio à Madeira muito mais preocupado com Sócrates, e com a preservação do seu espaço no interior do partido, do que com essa novela de faca e alguidar que tem por sujeito o azedume crónico das relações entre os governos da Madeira e do país. Ele sabe muito bem que rigorosamente nada pode decidir nesse domínio. E tão bem ou melhor do que ele, sabe-o igualmente o dr. Jardim. Porém, ao líder madeirense deu jeito exaltar a putativa capacidade de intervenção do dr. Gama. Porque, fazendo-o, aumentou o valor do seu mais recente troféu de caça. Ao mesmo tempo que deu rédea solta à ideia de que a culpa das más relações com o continente reside em exclusivo na intransigência do primeiro-ministro.
Temos, pois, em marcha uma curiosa aliança entre dois ilustres e despudorados cavalheiros que não sentem qualquer problema em servir-se dos cargos institucionais que ocupam para juntarem mais um tijolo às estratégias político-pessoais que desenharam. A menos, claro, que o dr. Gama tenha aceite sacrificar por momentos a sua imagem de estadista em nome da meritória tarefa de tentar negociar com o dr. Jardim o lugar de recuo que ele tanto procura mas que um Sócrates azedo nunca lhe dará. Mas isso são coisas para verificarmos mais tarde. Para já, o que se retira do embuste de uma visita institucional que nunca valeu o que dela se tem dito é que o dr. Gama, consciente e deliberadamente, tirou mais uma vez o tapete aos seus correlegionários locais. Mas, pelos vistos, a alta política desenvolve-se assim.
Bernardino da Purificação

quinta-feira, 19 de março de 2009

Sai um pacote para a mesa do canto

Deixem-me ver se percebi. Afinal, e ao contrário do que pensávamos, temos crise. Apesar do trabalho de casa do dr. Cunha. E a despeito da excelência da governação que temos. Uma crise, imagine-se! Confesso que ainda estou mal refeito do choque.
Podem crer que se não fosse o dr. Jardim a anunciar tão devastadora novidade eu não lhe daria o mínimo crédito. Como se sabe, o homem não mente. E se veio a terreiro desmentir o seu vice é porque a coisa é séria. Arrepiemo-nos, pois. E confiemos mais uma vez na sorte.
É verdade que o dr. Jardim procurou tranquilizar-nos com o anúncio solene de um pacote de medidas. Quarenta e uma, mais precisamente. Creio, todavia, que a ênfase posta no número torpedeou-lhe os intentos. Ninguém pode ficar tranquilo quando são necessárias tantas medidas para combater uma crise.
Tenho para mim que o dr. Jardim foi levado ao engano pelos seus colaboradores próximos. O dr. Cunha, prudente, zarpou para o Porto Santo. Uma vez que nega a crise, é evidente que nunca se daria ao desfrute de aconselhar um número jeitoso ao chefe. De modos que deixou essa tarefa aos outros. Os mais tímidos alvitraram a modéstia da meia dúzia. Os mais ousados sentenciaram que um pacote de verdade há-de ter no mínimo duas ou três dezenas de bem esgalhadas medidas. O Machadinho, solícito, sacou do exagero e pespegou com o quarenta em cima do tampo da mesa. E o reflexivo dr. Brazão alertou os presentes para a seca redondeza de tal número. Não o disse, mas há-de ter pensado em qualquer coisa do tipo "ali-Jardim-babá e as suas quarenta medidas".
Enfim, a qualidade dos contributos fez entrar em cena o próprio dr. Jardim. Quarenta mais um, decretou então sua excelência. Porque é um número bonito. Porque assenta bem à gravidade da situação. E, ademais, porque tem o mérito de rimar com a situação da Madeira e com os trinta e um que já levo desta vida. E assim nasceu o pacote com que o dr. Jardim nos quis devolver a esperança.
Consta que a discussão sobre o número terá sido muito mais dura do que a selecção das medidas. É natural. Umas pázadas de programas em curso para usufruto dos privilegiados do costume seria suficiente para estruturar a coisa. Depois, compor-se-ia o ramalhete com a possibilidade de os interessados somarem mais dívida à dívida que têm. Mas para não haver dúvidas quanto à modernidade da coisa, foi dado um retoque final com duas arengas que ficam sempre bem. Uma respeitante à modernização das empresas. E outra apontada para a necessidade de conter o desemprego.
Não desvalorizo as intenções presidenciais. Questiono, porém, a seriedade de um suposto plano de contingência cheio de medidas requentadas. Por uma razão óbvia e simples. Se, ao contrário do que supôs o senhor vice, elas não nos defenderam da crise, como poderão agora combatê-la?
O episódio teve, no entanto, o mérito da revelação. Trouxe à evidência que o modelo económico mantido não tem almofadas para situações de emergência. Revelou que não sobraram recursos do obreirismo louco que fizeram abater sobre nós. Demonstrou que em trinta e um anos a nossa economia só tem navegado à vista. Mostrou-nos a todos, em suma, que o actual paradigma está morto, porém, ainda não devidamente enterrado. E é pena. Porque o sector público não pode continuar a absorver a quase totalidade dos nossos escassos recursos (ainda por cima em obras que apenas acrescentam despesa à despesa). Porque há problemas de competitividade da economia que não se resolvem com o embuste dos pacotes de conjuntura. Porque há um mundo lá fora carregado de oportunidades a que por qualquer motivo recusamos aceder. E porque, sem prejuízo do seu carácter evolutivo, há uma autonomia política que tem de passar da fase da conquista para a fase do exercício responsável.
É preciso, em suma, mudar de vida. Que a crise nos faça, ao menos, perceber a urgência dessa inevitabilidade. Sem desmerecer, claro está, o carácter profundamente didáctico do pacotinho do dr. Jardim.
Bernardino da Purificação

quarta-feira, 18 de março de 2009

O trabalhinho do dr. Gama

Os maldosos vão ter de engolir a desconfiança. Pensavam, se calhar, que o dr. Jaime Gama viria este ano ao Chão da Lagoa. Enganaram-se. Redondamente. Ele vem, sim senhor, mas agorinha já que mais tarde era capaz de dar um bocado nas vistas. Que diabo. O dr. Gama tem um pingo (aposto que é mesmo só um) de vergonha na cara. Se viesse ao Chão da Lagoa cairia certamente o Carmo e a Trindade. Vindo agora desarma os maldizentes. Ora digam lá se isto não é mesmo coisa de gente esperta.
O dr. Jardim disse há dias que do continente só era bem vindo quem viesse trabalhar. Como já sabia da visita do sócio número um do seu cada vez mais restrito clube de fãs, tenho como certo que o dr. Gama vem preparado para dar o corpinho (salvo seja) ao manifesto. Compreenda-se. O dr. Jardim está cada vez mais exigente. De tal modo que onde antes se resolviam as angústias do inquilino das ditas com meia dúzia de elogios, agora é necessária uma visita, uma mão cheia de recepções, as primeiras páginas que forem necessárias, umas quantas entrevistas de exaltação das virtudes democráticas do regime e do seu chefe, tudo isso, como é evidente, devidamente condimentado com o tempero da desvergonha. Entretanto, lá no continente, o eng. Sócrates há-de corar de arrependimento e porventura de inveja. Ele que aprenda. Não é para todos ser recebido na Madeira como o dr. Gama vai seguramente ser.
Enternece-me, devo dizer, o enlevo das relações simpáticas entre os órgãos de soberania e os órgãos de governo próprio da Região. Desde que devidamente salvaguardada a esfera de competências de cada um. E na óbvia condição de serem democraticamente respeitadas as diferenças de pontos de vista que possam separar conjunturalmente os dois lados. Note-se. A tensão autonómica não pode ser tida como um drama da pátria. Pelo contrário. Se devida e responsavelmente enquadrada, estou certo de que ela pode, ao invés, constituir um importante impulso criador do desenho do nosso futuro colectivo. Há, todavia, um porém que nenhum político a sério tem o direito de esquecer. As boas relações têm de assentar numa base sólida de respeito e reciprocidade. A não ser assim, a desconfiança instala-se, o diálogo vai-se, e, como tradicionalmente acontece em momentos de azedume, quem se lixa é sempre o mexilhão, se vosselências me permitem a crustácea maresia da expressão plebeia.
Não quero lembrar coisas do passado. O que lá vai, lá vai, e não se fala mais nisso. Mas juro que ainda não percebi como, e por que artes, é que o dr. Jardim conseguiu subir tanto na tabela taxonómica do dr. Gama. Arrancou do fundo mais fundo que imaginar se possa. Mas agora já se senta onde se sentam os eleitos.
Para os mais esquecidos recordo que na mente preclara do dr. Gama já não há uma sombra sequer do bokassa de tempos idos ou do défice democrático de má memória. Onde antes havia um ditador há agora um ilustríssimo democrata. E o patriota imenso que o dr. Jardim obviamente agora é nada tem a ver com o famigerado separatista de outros tempos. As coisas mudaram, em suma. Mudou evidentemente o dr. Gama. E mudou, pelos vistos, também o dr. Jardim. A maçada é que ninguém percebeu em que ponto da política lusa se produziu o clique que deu origem a tão acentuada mudança. Bora lá perguntar ao dr. Gama quando e como foi? Ao dr. Jardim não vale a pena que ainda é capaz de nos fazer um manguito, mandar bardamerda ou levar a tribunal. Mas já que o dr. Gama é um senhor polido e paciente, e uma vez que preside ao órgão de soberania que o seu inesperado ídolo, em vistosas cuecas, mandou um dia àquela parte, há-de fazer-nos certamente o favor do esclarecimento conveniente. Mas note-se. Não me refiro ao esclarecimento que pessoalmente lhe convenha. Refiro-me ao outro. Àquele que a seriedade não dispensa.
Bernardino da Purificação

segunda-feira, 16 de março de 2009

Tudo como dantes

Gente amiga e obviamente crédula assegura-me que foi praga. Uma semana inteirinha impedido de escrever, explicaram, só pode ser coisa ou do mau olhado ou das artes clandestinas de vão de escada. A menos que me tenha vacilado a vontade, o que não foi (ainda) manifestamente o caso. Coisa impressionante. A vida da gente nas mãos electrónicas de sistemas high tech. Mas há, não obstante, quem prefira a irracionalidade das explicações do oculto.
Diga-se, no entanto, que nada se perdeu. A prosa que agrada a uns quantos é a mesma que uma imensidão de outros detesta. E, para além disso, a vida política madeirense anda cada vez mais parecida com uma telenovela brasileira - os episódios acontecem todos os dias, mas ninguém perde rigorosamente nada quando se salta uma semana.
É verdade que circularam por aí notícias sobre as (más) contas do PSD. Ao que parece, há uma relação não documentada de transferência de verbas entre o partido institucional da Madeira e a Fundação Social Democrata. So what? O fenómeno é novo? Alguém vai investigá-lo? Podem as autoridades judiciárias da Região pegar a sério no fio que a entidade fiscalizadora das contas dos partidos conseguiu agora inconsequentemente levantar? Sinceramente não creio. As prioridades são outras. E, a bem dizer, ninguém está para grandes maçadas.
É verdade também que o grupo parlamentar do PSD resolveu puxar o tapete a dois dos seus deputados. Um dia qualquer de um futuro que não se antevê próximo, vão ambos prestar contas à Justiça por actos praticados nas actividades que antecederam as actuais funções parlamentares que desempenham. Mas isto, convenhamos, nem merece ser notícia. Numa democracia normal não se perderia tempo a discutir o assunto. As contas que um deputado deve aos costumes por actos não relacionados com a vida parlamentar são exactamente iguais às de outro cidadão qualquer. Nem mais, nem menos. E não há regime de imunidades sério que as possa diferenciar.
Concedo, no entanto, que o episódio pode ter ingredientes suculentos. Com promessas interessantes no que diz respeito aos seus desenvolvimentos futuros. Mas com sugestões, também elas curiosas, sobre as putativas razões que lhe terão estado na origem. Como a malta da política adora matar o ócio consumindo as meninges em teorias da conspiração, há já quem jure, sabe-se lá com que intenções, que a singular acontecência deve ser tida à conta do alegre fratricídio em que andam esgadanhados alguns dos suspeitos do costume. Será?
Quanto ao mais, meus amigos e prezados inimigos, isto não ata nem desata. A crise resvala na couraça erguida pelo trabalho de casa do nosso dr. Cunha. O dr. Jardim continua a fazer mistério sobre os candidatos às autárquicas na esperança de que ao dr. Albuquerque se lhe estale o verniz. O líder transitório do PS anda por aí a fazer não se sabe bem o quê. O dr. Vieira prossegue a nobre e casamenteira cruzada que consiste em amancebar as volumetrias do dinheiro com os interesses dos munícipes. E o Marítimo continua a levar-nos o dinheirito nesta época de verbas curtas, salários em atraso e concorrência desleal. Ora, perante a incandescência parda de tão previsível quadro bordado e pintado em tons de pastel não é a ausência de uma semana que faz perder o fio à meada. Maçadora, isso sim, é por vezes a dependência do high tech. Ou das artes ocultas em esconsos vãos de escada, vá lá a gente saber...
Bernardino da Purificação

segunda-feira, 9 de março de 2009

A humildade confessada

Afinal, nem tudo está perdido. Li o texto de ontem do dr. Cunha e reconciliei-me com a política. A sua franqueza tocou-me. O exercício de humildade que fez sensibilizou-me.
Podem achar surpreendente. Mas acreditem que é verdade. Sem pruridos tolos nem subterfúgios escusados, o senhor nosso vice fez questão de informar-nos que, em regra, a ascensão ao poder tem tudo a ver com o acaso e nenhuma relação com o mérito. Mais. Ciente da incredulidade com que as suas palavras seriam acolhidas, ilustrou a tese com exemplos. De Barroso a Santana. De Guterres a Sócrates. De Balsemão a Cavaco.
Saibam os cépticos que o seu exercício de modéstia foi ainda mais longe. Ao ponto, imagine-se da injustiça auto-infligida. O facto de não ter cedido à tentação de incluir o seu nome na lista que elaborou é algo que só o credibiliza e lhe atesta a honra. Não significa, estou certo disso, que exclua a política regional e o seu caso particular da bondade da tese. O que aconteceu, aposto, é que a modéstia há-de ter falado mais alto - emparceirar ao lado de tanto peso-pesado é coisa que seguramente não passa pela humilde cabeça do dr. Cunha. Nem mesmo a título de acidente do acaso.
Se bem percebi a intencionalidade da prosa, o nosso improvável vice terá pretendido com ela visar alguém em particular. Compreende-se. O dr. Cunha pode não passar de um governante acidental. Mas dá para perceber que não é homem de atirar palavras ao vento assim como quem atira milhões ao mar. Resiste, é verdade, à cruel tentação de identificar o seu alvo. Porém, o político frontal que sabemos que é não podia ser mais directo - aponta clara e inequivocamente para um atrevidote qualquer que anda para aí a dar-se ao desmazelo de perder tempo e cabelo planeando estratégias de tomada do poder. Bravo, dr. Cunha. Ficaria mal comigo mesmo se não lhe relevasse a coragem, o tacto e o sentido de oportunidade. A coragem porque vosselência não treme quando a consciência o interpela a desmascarar certas jogadas. O tacto porque, como toda a gente percebe pela farta e leonina cabeleira que laboriosamente penteia, vosselência tem a prudência de se limitar a perder tempo. E o sentido de oportunidade porque de facto chegou a altura de se denunciar e fazer abortar o descaramento incompetente de certo tipo de manobras.
Tome cuidado, porém, dr. Cunha. Não leve excessivamente à letra a tese que desenvolve. E atenção ao princípio de Peter. Acredite que uma carreira bem sucedida exige muito mais do que a simples garupa da sorte. Sobretudo em política. Pode crer que as pessoas que votam um dia percebem o logro em que caíram. Mas isto, é claro, só vale para quem vai a votos. Não para quem galhardamente escolhe a sombra protectora de um guarda-chuva aberto ao acaso.
Bernardino da Purificação

sexta-feira, 6 de março de 2009

O planeamento sem plano

Tropecei hoje ao pequeno-almoço num pensamento complexo. E pasmei. Tanto pelo facto de dar por mim enredado em pensamentos. Como pela natureza intrínseca dos ditos. A nossa mente, acreditem, é um instrumento surpreendente. E eu, deslumbrado, não posso deixar de exaltá-lo.
Note-se. Não foi propriamente este o produto matinal da insólita excitação dos meus fatigados neurónios. Nada disso. O conteúdo do intróito não é mais do que um efeito colateral desse meu irreprimível estado de pasmo perante a verificação de como duas pequenas notícias aparentemente desligadas conseguem explicar-nos que o método preferido de quem nos governa é governar quase sempre com ausência de um método. Percebe-se a ideia. Só a irracionalidade é capaz de suprir o uso da razão.
Passemos então aos factos. Em virtude de uma notável conjugação astral, a que é com certeza alheia tanto a vice-presidência como o nosso sagaz vice, a edição de sexta do DN trouxe-nos à memória duas das expressões mais notáveis do nosso tenaz planeamento sem plano. Em notícia de página inteira, voltamos a ter contacto com a marina do Lugar de Baixo. Mais adiante, mas em forma de notícia curta, lá voltámos a ter novas desses equipamentos notáveis que a modéstia de quem manda singelamente apelida de parques empresariais.
Quanto à marina, e a avaliar pelo que se lê, as perspectivas não podem ser mais promissoras. A zona balnear adjacente é capaz de voltar a abrir quando chegar a estação dos banhos. A escarpa lateral que a encima vai a caminho da consolidação. E a malha de aço que rezamos que a segure está a dias de enfrentar o teste pesado dos pedregulhos que ocasionalmente dela despencam. Sinceramente gostei do que li. Nada como as boas notícias para nos fazer esquecer o negrume das más. E nada como a antevisão fabricada de um futuro aparentemente radioso para nos levar a encerrar no saco dos esquecidos o desperdício dos milhões atirados ao lixo.
Não sendo tão imediatamente promissora, a notícia sobre os parques do nosso vice-presidencial contentamento não deixa de acenar também para o brilho dos dias que estão para vir. É certo que nada nos diz sobre a erva que cresce ou sobre as cabrinhas que pastam. Mas, ao anunciar-nos uma linha de ajuda directa à edificação de armazéns, leva-nos ao vislumbre de um futuro laborioso de parques pejados de empresas a mexer. Gosto da sugestão. Já chega de parques empresariais deserto de empresas.
A maçada, num caso e noutro, é que não consigo travar as perguntas que me acodem. Custa-me perceber, por exemplo, que urgência ditou a construção frenética de parques sem o prévio envolvimento das associações empresariais. Do mesmo modo que me faz espécie que se tenha desatado a expropriar terrenos, a edificar infra-estruturas e a fazer inaugurações sem que ao menos uma alma caridosa se tivesse lembrado da necessidade simultânea e óbvia de se desenhar um programa de ajudas atractivo para as empresas. Pelo vistos, só meia dúzia de anos depois de concluídas as obras de construção, e nalguns casos já de manutenção, é que alguém percebeu que é preciso muito mais do que o simples toque de caixa da vontade de um voluntarista qualquer para que um empresário aceite alterar drasticamente as rotinas e a vida da sua empresa.
Mas o que me custa mesmo aceitar é que se tenha construído uma marina e um complexo balnear numa zona duplamente crítica sem a prudência de um estudo prévio. De dinâmica costeira nem se falou. E, conforme reconheceu um especialista da UMa, da instabilidade da falésia também não. Porém, gastou-se dinheiro. Uma verdadeira fortuna. Em obras e em obras de reparação das obras. Tudo isto porque um indivíduo qualquer se apanhou com o poder de gerir como lhe dá jeito o dinheiro dos contribuintes. E porque ninguém lhe ensinou que nada de durável se constrói no meio natural sem o estudo prévio das circunstâncias envolventes. Mas não há problemas. A gente depois paga.
Bernardino da Purificação

terça-feira, 3 de março de 2009

Enriquecimento sem causa

Na falta de melhor tema, apetece-me falar hoje desse curiosíssimo fenómeno que dá pelo quase misterioso nome de enriquecimento sem causa. Não sei quem foi o autor de tão inspirada designação. Mas como as palavras valem sobretudo por aquilo que dizem, cheguei a considerar a hipótese de estarmos perante um místico devoto das coisas que se explicam a si próprias. Julgar que alguém pode adormecer pobre e acordar rico sem precisar de explicar o feito equivale a acreditar, pia e militantemente, na força prodigiosa dos milagres. E presumir que um efeito pode dispensar a carambola de uma causa só pode remeter-nos para um estado de gnose que, convenhamos, não é deste mundo. A menos que no lugar de uma crença tenhamos somente a ironia suave de um gozão. Ou que em vez de um exercício de elevação gnóstica tenhamos simplesmente as palavras económicas de um legislador poupado.
Como é evidente, inclino-me mais para esta última hipótese. Não por duvidar da força imponderável da intervenção do acaso. Nem por recusar a eventualidade de a roda da fortuna poder ser movida também pelo intangível. Apesar do racionalismo céptico que me instruiu, não tenho nesse domínio grandes dores ou preconceitos de natureza filosófica. Porém, por mais que me esforce, tenho de confessar a imensa dificuldade em elevar-me acima do terreno prosaico das causas. Sobretudo quando o assunto é dinheiro.
Não tenho qualquer problema com a riqueza dos ricos. Ela não me perturba nem um bocadinho, a despeito de ter lido o que devia ter lido sobre a chamada acumulação primitiva do capital. Sou, é claro, sensível à desigualdade e hipersensível à ganância. Incomoda-me a primeira. Desprezo a segunda. Não creio, no entanto, na bondade ideológica ou na legitimidade política do igualitarismo aplicado a martelo. Nem tenho pachorra para o peditório desgraçado dessa espécie de doença social que olha o sucesso material dos mais empreendedores ou afortunados com permanente hostilidade e sistemática desconfiança. Confesso, porém, que tenho um problema com a riqueza repentina gerada pela obra do poder e pela graça de quem manda. Faz-me urticaria. Tira-me do sério.
Sei que não se deve acusar sem provas. Mas há indícios que interpelam. Do mesmo modo que há sinais exteriores que nenhum sistema sério de Justiça deveria poder ignorar. De modos que, mesmo não querendo agitar suspeitas, recuso fazer de conta que não sei que há no poder quem tenha chegado à política muito antes da carreira profissional que nunca teve ou da fortuna que agora aparentemente tem. Admito, mas só em tese geral, que a singularidade do facto pode não andar de mãos dadas com a palavra desonestidade. Convenhamos, no entanto, que uma situação assim, mais do que escancarar as portas à dúvida e abrir caminho à suspeição, dá de mão beijada ao abuso o caldo que o pode fazer crescer.
Já vejo os vigilantes do costume arregimentados para a arenga da praxe. Se não há provas não há culpas. Se não há culpas não pode haver culpados. Depois, como a esperteza saloia lhes dá vontade de rir, hão-de brindar, divertidos, à falácia do axioma. Mas como estas coisas são sérias, vou retaliar com uma sugestão. Concedamos à classe política a possibilidade de justificar a qualquer momento a proveniência dos seus rendimentos. Crie-se para tanto uma entidade fiscalizadora na dependência directa do Tribunal Constitucional. E proceda-se como faz o fisco aos contribuintes. Bastava isso. Todos os nomes para dentro de um sistema informático. Um computador sem partido nem alma a sortear os felizes contemplados. E as sanções devidas a quem fosse culpado de enriquecimento literalmente sem causa. Tenho para mim que um tal dispositivo resolveria muita coisa. E a nossa relação com a política ficaria com certeza mais sã.
Bernardino da Purificação