Estou cada vez mais convencido de que a latitude das imunidades que entre nós se pratica ameaça matar a democracia.
Não me compreendam mal, por favor. Não sou contra todas as democráticas prerrogativas que devem ter determinados titulares de cargos de políticos. É democraticamente útil que um deputado nunca se sinta constrangido quando, em nosso nome, exerce as suas funções. É perfeitamente entendível que um conselheiro de Estado não deva actuar com a reserva de uma qualquer limitação de cada vez que, nessa qualidade, for chamado a pronunciar-se sobre um problema do país. Não obstante, parece-me claro que o perfil das imunidades deve ter como destinatário e beneficiário único a democracia e não o interesse particular e pessoal de quem por elas possa estar abrangido.
Creio igualmente que as imunidades devem ser reguladas. E posso até compreender que a auto-regulação possa e deva funcionar como uma espécie de crivo primeira instância. Parece-me, no entanto, absolutamente perverso que a regulação do exercício das imunidades possa ficar refém da vontade mais ou menos corporativa dessa primeira instância. Eu sei que, no limite, o Tribunal Constitucional pode ter uma palavra a dizer quanto à forma como é interpretado e aplicado o regime de imunidades. Todavia, todos sabemos que, em termos práticos, o terreno onde se abriga esse regime é assim uma espécie de caixa-forte ciosamente guardada por quem dele beneficia. Julgo, pois, chegada a altura de alguém de bom senso ser capaz de propor medidas que restrinjam as interpretações demasiado extensivas do regime de protecção de alguns titulares de cargos políticos. Do mesmo modo que me parece evidente que é chegada a hora de se introduzir no sistema de verificação das imunidades um mecanismo regulador de natureza externa, que seja capaz de combater os tropismos corporativos que levam a que, no final de contas, todos se protejam uns aos outros. Tudo isto, em suma, para dizer que considero a todos os títulos obsceno que um político qualquer se considere no direito de barricar os eventuais desmandos da sua vida pessoal e profissional atrás de um regime que deveria ter como única finalidade proteger a política.
Como se tem visto, a pertinência do tema é mais do que muita. Porque as notícias que circulam não são tranquilizadoras. E porque a imunidade que a democracia exige parece estimular a formação de um inaceitável ambiente de impunidade para práticas de ética ausente e eventualmente delituosas.
Falemos claro. A opacidade é inimiga da legalidade. É atrás dela que se esconde tanto o grande crime como o pequeno delito. E uma sociedade, qualquer sociedade, só tem a perder quando os seus instrumentos de repressão criminal esbarram em zonas de sombra que certas práticas e costumes tendam a erigir. Ora, não há nada mais demolidor de um regime de imunidades do que a suspeita de que, paredes-meias com o que de positivo e estimável tem, possa também servir para abrigar a falta de transparência.
Como o tema é recorrente na discussão pública portuguesa, devo esclarecer por que razão o trago novamente a terreiro. Pois bem, faço-o por causa do chamado caso BPN. Mas faço-o sobretudo porque me parece inqualificável que um conselheiro de Estado não possa ser investigado e eventualmente constituído arguido apenas porque goza do estatuto especial que a sua função política lhe confere. Do mesmo modo que considero inaceitável que seja com a especificidade desse estatuto que se contenham na Madeira as eventuais ondas de choque que esse caso nos faça chegar. As notícias sobre as eventuais ligações de deputados da maioria a práticas menos regulares ou mesmo ilegais, no âmbito deste caso, merecem um esclarecimento cabal. Até porque já saturam as zonas de sombra que enevoam a nossa vida social.
Bernardino da Purificação