segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Parêntesis de votos pios

Há de facto qualquer coisa no ar. Não sei se é das renas e trenós do Natal que ficcionamos (jingle bells, jingle all the way). Ignoro se será do tim-tam-tum das minhas cada vez mais velhas memórias. Nem sei se é coisa do odor balsâmico a azevinho, se do vermelho-único das manhãs-de-páscoa, ou se do brilho lustroso do alegra-campo. Do bolo de mel não há-de ser que o dito corre por aí demasiado industrializado para o genuíno gosto dos nostálgicos. E do ambiente dos shoppings também não porque, segundo se diz, a crise passeia-se para cá e para lá num tropel de cobiça contida ou necessidade adiada à espera da estação dos saldos. No entanto, queira-se ou não, há por aí qualquer coisa que nos distrai das maçadas quase diárias perpetradas pelos permanentes maçadores do costume.
Ignoremos, pois, por uma semana o dr. Cunha que nos dá cabo do orçamento sem se preocupar um bocadinho que seja com a ameaça real da crise. Deixemos de lado por uns dias as evasões mensais do dr. Jardim e as suas diatribes anti-Sócrates só para se desresponsabilizar e dizer que está vivo. Façamos de conta que o dr. Jardim Ramos resolveu finalmente ficar quieto depois da louça que desajeitadamente partiu no Hospital. E finjamos que não percebemos nem que o dr. Gouveia decidiu não existir, nem que o dr. Aguiar continua a achar que isto não merece mais do que uns quantos números de circo, nem que o líder do PP deixou de perceber se, por causa da estratégia nacional, deve piscar o olho ao PS ou ao PSD.
Aceitemos, em suma, deixar dentro de um parêntesis de votos pios a nossa consciência crítica. Ao menos por uns dias. Com a promessa, claro, de voltarmos ao terreiro logo que passem as festas. Entretanto, que possamos ter todos um feliz Natal. Mesmo os que não o mereçam. Até já.
Bernardino da Purificação

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

A fuga ao tribunal das contas

Por alguma razão que desconheço, os partidos políticos regionais não querem que o Tribunal de Contas lhes escrutine a subvenção parlamentar que recebem do erário. Fazem mal. Revelam que, no fundo, estão-se nas tintas para a sacrossanta transparência de que todos falam mas poucos praticam. E dão pública nota de que não querem tratar da questão do financiamento partidário com o rigor que os cidadãos reclamam e o sistema político exige.
Enquanto elementos estruturantes da democracia, entendem que a única entidade fiscalizadora a que devem estar sujeitos é o Tribunal Constitucional. E enquanto instrumentos necessários à participação dos cidadãos no governo da res publica, consideram que estão acima da maçadora possibilidade de terem as suas contas auditadas por entidade diversa da que lhes fiscaliza e generalidade dos gastos. Acho mal. Mesmo que os partidos não sejam pertença do Estado. E mesmo considerando que a actividade partidária não deve ser colocada em plano idêntico ao do objecto de uma instituição, de um organismo, ou de uma empresa estatal.
Suponho que não erro se disser que os partidos recebem do Estado dois tipos de cheque. O mais generoso é emitido no quadro do financiamento partidário público. Financia a actividade partidária globalmente considerada. E as despesas que permite são fiscalizadas pelo Tribunal Constitucional. Um outro, de montante mais modesto e finalidade específica, assume a forma de apoio público à acção parlamentar. Sai directamente do orçamento da Assembleia Legislativa. E tem sido até agora, e a meu ver bem, controlado pelo Tribunal de Contas. Ora, é esta linha de demarcação que a generalidade das forças políticas madeirenses pretende pura e simplesmente eliminar. Procurando fazer passar a ideia de que os dois cheques são afinal um só. E garantindo a quem os ouve que partido e grupo parlamentar não passam afinal de duas maneiras de dizer a mesma coisa.
Sei nada de leis. Mas tenho para mim que financiar a actividade de um grupo parlamentar é coisa distinta de financiar um partido político. Se o legislador tivesse pretendido tratar como uma só as duas realidades não teria sentido especial dificuldade lexical ou jurídica em fazê-lo. Porém, não foi esse o seu entendimento. Assim como não foi esse o seu objectivo. E isso há-de ter um significado político e jurídico qualquer. É pertinente, aliás, recordar que a própria mesa da Assembleia fez há anos a mesmíssima demarcação semântica e legal das duas realidades. Se não o tivesse feito, não teria descontado ao partido socialista as verbas que passou a atribuir a dois deputados que dele desertaram. E não me passa pela cabeça que a mesa do parlamento possa ter posto um interesse partidário qualquer à frente da sua obrigação de cumprir a lei. Não o fez, certamente. De maneira que me espanta a ligeireza com que praticamente todos pretendem agora fazer de conta que, para efeitos de financiamento, tanto faz dizer grupo parlamentar como partido político. E sou levado a pensar que a única finalidade de tão repentina a abstrusa confusão é apenas driblar o Tribunal de Contas. Ao ponto a que isto chegou!
A demagogia faz-me urticaria. Mas, numa altura de crescentes dificuldades, não posso deixar de sublinhar que é por estas e por outras que temos a crise instalada nos nossos mecanismos de representação política. Ninguém leva a sério os deputados. São geralmente vistos como uma dispendiosa inutilidade. E fazem, eles próprios, o favor de continuamente se desacreditarem. Se tivessem um pingo de respeito por quem os elegeu, não estariam tão entretidos a tentar fugir ao Tribunal de Contas. Estariam a fazer trabalho político relevante e efectivo. E se dessem um mínimo de atenção às crescentes necessidades que por aí andam aceitariam, isso sim, um dispositivo legal qualquer que os obrigasse a devolver aos contribuintes as verbas que a sua notória preguiça todos os anos fizesse sobrar. Talvez pudesse começar por aí, quem sabe, a reconciliação entre os cidadãos e a instituição parlamentar. Mas com gente desta índole isso seria pedir de mais.
Bernardino da Purificação

domingo, 14 de dezembro de 2008

A teoria da irresponsabilidade

Afinal, o dr. Cunha é capaz de aprender. Não com os erros, que o indivíduo em causa não erra. Nem sequer com os livros, que o cavalheiro tem mais que fazer do que maçar-se com eles. Mas sim com as pequenas coisas da vida. Como, por exemplo, a harmonia suave do canto de um passarinho. Como, outro exemplo, o milagre da plantinha que rompe a terra buscando o sol. Ou então, derradeiro exemplo, como a simplicidade tocante e profunda de uma citação servida por uma colectânea à ordem na mesa de cabeceira.
Corrijo. O dr. Cunha não é só capaz de aprender. A bem dizer, e isso nota-se semana-sim-semana-não, a sua capacidade vai um pouco mais longe. Ascende ao patamar da reflexão. E, não se riam, vai até ao ponto do processamento da informação apreendida. Podem crer. Este nosso dr. Cunha é um exemplo. Uma quase inspiração.
Bolas. Como o texto se vai escrevendo a si próprio, constato agora que sou obrigado a corrigir novamente. O dr. Cunha de facto aprende. É mesmo capaz de pôr alguma escassa ordem no caos informativo a que acede. Mas a força do intelecto que demonstra ter não se fica por aqui. Acreditem. Por muito que isso nos possa surpreender, o dito dr. Cunha dá mostras de conseguir realizar o pequeno milagre da produção de ideias. De teorias autênticas. E eu, como é evidente, não posso deixar de assinalá-lo. Porque admiro o sincretismo prolixo que se surpreende em cada texto que assina. E porque tenho um fraco pela forma desinibida e kitsch com que o cavalheiro partilha connosco as mais recentes aquisições da sua tenaz homeopatia cultural.
Admito que estas minhas considerações possam ser acolhidas com incredulidade ou cepticismo. Não pretendo convencer os incrédulos. Mas aos cépticos recomendo a leitura da página que o dr. Cunha tem alugada em regime de time sharing na revista do DN. Podem crer que está lá tudo. Tanto a mais recente descoberta da sua insaciável busca do bálsamo do saber - o dr. Cunha terá descoberto desta vez que houve um Sócrates na Grécia Antiga. Como a novidade da essência simplória do seu pensamento político.
Como acredito que, por este andar, o cavalheiro ainda há-de chegar um dia ao ápeiron dos pré-socráticos, fixo-me por agora na tese magnífica que o seu bestunto produziu. Pois bem, fiquem a saber que o dr. Cunha descobriu o segredo da irresponsabilidade política. Ou seja, o indivíduo foi capaz de encontrar aquilo que tantos outros debalde procuraram. A partir de agora, nos termos da sua prodigiosa descoberta, é politicamente legítimo ocupar o poder sem a maçada de um escrutínio ou julgamento presente. Quem achar que tem o direito de pedir contas ou fazer julgamentos políticos, pois tenha santa paciência e espere de dez a cinquenta anos. Porque é esse, de acordo com a nova "doutrina Cunha", o tempo que demoram a chegar os efeitos das medidas de longo prazo. E porque é injusto, nos termos da mesma nóvel doutrina, pedir contas presentes a bondades ou maldades futuras.
Notável. O dr. Cunha reivindica o direito de ser julgado apenas pelos nossos filhos ou netos. Ele governa agora, é verdade. Mas nós não temos o direito de interpelá-lo pela forma como nos gasta o dinheiro e esgota a paciência. Por uma razão cristalina, simplória, básica e perversa que assim se formula: o dinheiro que o dr. Cunha esbanja no presente é aplicado a pensar no futuro. Logo, só daqui a um ror de anos se lhe devem pedir as devidas e democráticas contas. É assim uma espécie de faça agora e pague depois. O disparate, entenda-se.
Não quero ser tremendista. Porém, reconheça-se: o caso é sério. Está à vista de todos que o dr. Cunha é consabidamente irresponsável. Porém, confesso. Nunca fui capaz de supor que o caos sincrético das coisas que apreende o pudesse levar à elaboração de tão sofisticada teoria. Assim, digam lá se o indivíduo não é mesmo um exemplo e uma verdadeira inspiração...!
Bernardino da Purificação

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

A arte da guerra

Esta gente perdeu completamente a cabeça. Ameaça. Insulta. Grita. Vitupera. Como se não houvesse amanhã. Ou como se a razão tivesse cedido definitivamente o passo à grosseria da intolerância e ao primarismo da irracionalidade. Oxalá me engane. Mas os níveis de agressividade do discurso político atingiram entre nós um ponto de tal modo elevado que isto um dia acaba mal.
É claro que não é novidade para ninguém que há na política madeirense uma assinalável sedução pelo calor desregrado do destempero. Seja devido à latitude que temos. Seja por causa do capacete que nos turva a vista e comprime as meninges. Ainda assim, convenhamos. As coisas têm descambado para um plano em que se torna urgente a profilática procura de um outro tipo de explicações. Sob pena de, um dia destes, nos vermos todos envolvidos num imenso arraial de tapona colectiva sem percebermos muito bem porquê.
O que hoje se viu no parlamento é mau de mais para poder ser aceite ou até mesmo descrito. Só faltou a agressão física. Só terão faltado os tiros. Mas lá tivemos o pior do ambiente de taberna. Lá tivemos a gritaria de quem acha que a política é a arte da guerra.
Eu suspeito que as coisas devem ter corrido mal ao dr. Jardim na sua mais recente excursão a Lisboa. Ouviu certamente das boas. Se não de Silva Pereira, pelo menos de Cavaco Silva. E, o que é pior, deve ter ouvido em silêncio. Como é próprio dos que sabem ser desmesuradamente fortes com os fracos e miseravelmente fracos com os fortes. Deverá ter trazido, em suma, demasiadas coisas entaladas na garganta. E como só é capaz de remir os desaforos em casa, vá de espernear em público, vá de arremeter contra quem não tem nem o tempo nem os meios para lhe responder à medida. Verdadeiramente heróico, senhor presidente. Como se sabe, aliás, que é seu timbre.
Não nos enganemos, porém. O dr. Jardim semeia a irracionalidade, mas fá-lo de forma planeada. Apela aos instintos, é certo. Porém, mede muito bem onde pretende chegar. O insulto, para ele, não passa de um instrumento. Do mesmo modo que a ameaça não passa de um meio. O que ele quis, com o seu execrável discurso de hoje, foi dizer aos berros a Lisboa que aqui quem manda é ele. Deixando, ao mesmo tempo, aos que vivem nesta terra, mais uma eloquente mensagem de que, enquanto por cá andar, a política não há-de passar da coisa insalubre e rasteira que todos televimos sem edição nem bola vermelha ao canto.
Bernardino da Purificação

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

A pobre têvê que temos

Esta têvê que temos parece manifestamente um caso perdido. Cumpre mal as suas obrigações de serviço público. Confunde critérios jornalísticos com atribuição de tempos de antena. Faz do cronómetro a boa regra de gestão editorial. E tem no método estatístico o elemento central de muitas das suas decisões.
Aquilo tem dias que nem parece uma televisão. É mais uma repartição difusora de enfados e rotinas. Com telejornais que não passam de serviços de informação oficiosa e institucional travestida de notícia. Com programas de desporto que se limitam a trazer para o espaço televisivo os palpitantes azedumes clubísticos existentes no espaço social. E com programas de informação cujo único propósito só pode ser, pelo que se vê, o de afagar o vaidoso umbigo da corporação dos informadores. Tudo, claro está, devidamente monitorizado pelo relógio criativo dos chefes. E tudo ao encontro do contador de minutos dessa inenarrável coisa chamada ERC.
Sejamos justos, porém. Nem tudo o que nos é servido pela têvê que temos deve ser enfiado no saco enfadonho das irrelevâncias. Por exemplo, os espaços de divulgação cultural até conseguem ser interessantes e razoavelmente bem feitos. De um mesmo e geral modo, os programas de entrevista cumprem quase sempre os serviços mínimos. Mas mau, francamente mau, quase a roçar o péssimo, é praticamente tudo o que resta. Ou por falta de meios. Ou por ausência de ideias. Ou porque é assim que tem de ser.
O mais recente rasgo da criatividade nula desta TQT (têvê que temos) consiste na descoberta e lançamento hertziano de novos opinadores televisivos. O propósito da coisa, dando de barato que é capaz de haver um, há-de ser, creio eu, o de esconder a ausência de produção noticiosa digna desse nome atrás do comentário engravatado de dois cavalheiros razoavelmente conhecidos lá na rua onde moram. E o resultado é o que se conhece. Gramamo-los duas vezes por semana debitando arengas sobre tudo e mais alguma coisa. E ficamos a conhecer algumas irrelevantes opiniões que não pedimos, que não precisamos, e que em boa verdade dispensamos.
Um exemplo. O Hospital que nos trata da saúde dilacera-se em convulsões internas? Pois deixem estar que a gente despacha a coisa com a palavra atenta e sábia dos nossos dois novos tele-opinadores. O facto de saberem tanto de gestão hospitalar e de saúde como quem os tele-ouve não há-de passar, como é evidente, de um mero e insignificante pormenor. E a singela circunstância de nada de novo acrescentarem ao que entretanto a gente foi sabendo só pode ser tida à conta de uma irrelevante acontecência qualquer.
Outro exemplo. A política regional revolve-se em mais um episódio da sua já crónica guerrilha? Deixem estar que a gente já os trama com o julgamento justiceiro mais ou menos inflamado dos nossos dois comentadores opinativos. É verdade que nada dizem de importante. E é certo que fariam muito melhor figura se ficassem calados. Mas como o objectivo da sua tele-participação é fazer de conta e queimar tempo, ninguém há-de dar certamente por isso. Abrenúncio!
Não quero parecer contundente. Porém, devo confessar que sempre que me entram em casa os dois cavalheiros em questão, às cavalitas do telejornal de serviço público, entra com eles um mesmo e recorrente pensamento - o que me diz que a ignorância é na verdade bem atrevida, enfatuada, petulante. Às vezes, imagine-se, até engravatada. Ora, é preciso que alguém explique certas coisas aos funcionários convidantes e aos opinadores convidados.
Aos primeiros deve ser dito que, ao contrário do que supõem, não é comentador quem quer mas sim quem pode. Deve também ser explicado que não há opinião socialmente relevante que possa escapar à condição prévia da credibilidade. E deve ser igualmente enfatizado que não há credibilidade que possa dispensar um pressuposto de autoridade reconhecida. Acredito que possam ficar surpreendidos. Mas, se pensarem um bocadinho no assunto, ainda acabarão por descobrir que nenhuma dessas duas condições está dependente da vontade mais ou menos preguiçosa de um qualquer funcionário arvorado em programador televisivo.
Posto isto, uma palavra final aos opinadores convidados. Do que precede ressalta uma ideia: a de que um comentador de televisão precisa muito mais do que atrevimento e lata. Precisa, por exemplo, de substância. Mas isso, como é evidente, só é válido para uma televisão com vontade de se levar a sério.
Bernardino da Purificação

sábado, 6 de dezembro de 2008

A qualidade da coisa, ou a ausência dela

Suponho que não erro se disser que a qualidade de uma democracia se mede pela forma como funcionam os seus mecanismos de controlo e fiscalização do poder. A explicação é simples. Como a política tem horror ao vazio, o poder tende a ocupar a totalidade do espaço que tiver à mercê. Quando encontra baias firmes, os atropelos são relativamente escassos. Mas se, ao contrário, os limites são frouxos, é certo e sabido que o abuso se instala.
Creio também que não me engano se disser que a qualidade da democracia da Madeira deixa imenso a desejar. Pelas razões atrás expostas (isto é, devido à extrema lassidão, à gritante ineficácia, ou à deplorável inexistência de instrumentos de contenção do poder). Mas ainda por outras de natureza muito mais pessoal do que institucional, que nos remetem para a estrutura democrática (ou para a ausência dela) de quem manda.
Desenganem-se. Não vou aqui recuperar a tese estafada do nosso alegado défice democrático. Nem para subscrevê-la. Nem para lhe apontar os eventuais vícios. O propósito que tenho é bem mais modesto. Pretendo simplesmente ilustrar com três ou quatro exemplos o modo perverso como o poder que temos se presume isento da obrigação de prestar contas.
Começo, então. O dr. Jardim continua a repartir a sua extenuante vida entre o Funchal e Bruxelas. Vai e vem com o tranquilo à vontade dos turistas militantes, ou com a rotineira descontracção dos caixeiros-viajantes. Ninguém lhe pergunta ao que vai. Nem ele nos faz o obséquio de uma explicação. Limita-se a ir e vir. Gastando dinheiro do erário (em viagens, hotel e ajudas de custo). Deixando o governo para que foi eleito sabe-se lá nas mãos de quem. E sem se sentir interpelado a prestar contas a quem paga. Ou seja, vai porque sim. Há-de continuar a ir porque lhe apetece. E, quanto a contas, que se lixem a Madeira e os contribuintes.
O dr. Cunha e Silva mimetiza a roda livre do seu chefe. Saltita de disparate em disparate com a paquidérmica ligeireza de quem não reconhece limites ao poder que lhe puseram nas mãos. E fá-lo, ainda por cima, com a sonsa hipocrisia dos falsos moralistas.
Mal trepado à sua condição de vice, desatou logo a lançar peçonha sobre aqueles que o antecederam. O mínimo que disse de Paulo Fontes, de quem herdou algumas competências, foi que ele tinha um interesse qualquer na compra de um imóvel (ali para os lados do Mercado) para a instalação da Loja do cidadão. Sobre Pereira de Gouveia, que o precedeu na superintendência da economia, o mais brando que sua excelência conseguiu foi fazer constar que a megalomania e um interesse particular qualquer terão estado na origem da ideia de se instalar no Parque das Nações uma representação da Madeira em Lisboa.
É claro que o dr. Cunha sabia que as suas graves acusações nunca seriam devidamente investigadas. Da mesma forma que adivinhava que as decisões que mais tarde viria a tomar, relativamente aos mesmíssimos dossiers, haveriam de passar sem o democrático escrutínio político. E o resultado está à vista de todos. A "sua" Casa da Madeira em Lisboa transitou para o Restelo (zona de embaixadas) e não passa de um espaço votado ao abandono. A "sua" Loja do Cidadão ocupa um espaço nobre da cidade e é um caso de sucesso em termos de procura. Mas, como canibalizou os clientes das repartições, conservatórias, e restantes serviços que alberga (alguns deles situados a duas escassas centenas de metros), e como já vai estando congestionada, em consequência desse e doutros pequeníssimos problemas de planeamento, não tarda nada e ainda assistiremos à necessidade de aquisição de um novo espaço para a abertura de uma nova Loja. A única diferença, claro está, será a ausência (obviamente, porque sim) de qualquer interesse por parte do actual comprador. É que o cavalheiro, acreditem, está aqui só para servir. Como bem o demonstram os Penedos e os parques da sua excelentíssima criação. E como o comprovam as promenades e as marinas que levaram o que tínhamos e até o que não tínhamos.
Ora, uma vez que os instrumentos de fiscalização não existem ou são ineficazes, vamos ter de esperar que o cavalheiro seja um dia removido. Pode ser que nessa altura o seu sucessor se dê também ao trabalho de lhe revelar os erros e denunciar os interesses. Em nome, claro está, desta democracia de intragável qualidade que não há maneira de se regenerar.
Bernardino da Purificação

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Uma dezena de votos secretos

O PSD é dono da consciência dos seus deputados. E estes, imagine-se, convivem bem com a situação. Ou porque são desprovidos de vontade. Ou porque são destituídos de ideias próprias. Ou porque simplesmente aceitaram alienar a sua autonomia individual a troco de um qualquer prato de lentilhas. Como nenhuma das hipóteses é susceptível de merecer um laivo sequer de compreensão ou simpatia, que venha o diabo e escolha a que mais acertada for.
Quem acompanha a política madeirense, percebe que me preparo para comentar a notável saga parlamentar construída à volta da eleição do vice-presidente socialista da mesa da Assembleia. O PS insiste em candidatar Bernardo Martins. O PSD aceita emprestar (coisa notável!) à volta de uma dezena de votos para viabilizar a eleição. Mas como, ao que parece, o deputado do Partido da Terra tem atravessadas coisas de outros tempos, o candidato socialista vem somando chumbo atrás de chumbo, num processo que não prestigia o parlamento, e que, no plano individual, só dignifica, afinal, os que assumem a ousadia das posições claras.
Falemos claro. Estou longe de simpatizar pessoal ou politicamente com o indivíduo em questão. Não obstante, reconheço a João Izidoro o direito de votar como muito bem quer e entende. Nesta como em todas as restantes matérias com dignidade parlamentar. Só acho lamentável que não lhe repugne participar na rábula anunciando antecipadamente o sentido do seu voto secreto.
Continuemos a falar claro. Como o PS não há-de ter deputados de primeira nem deputados de segunda, é evidente que lhe assiste o direito de escolher livremente, sem exclusões ou outras reservas, o nome do seu candidato à mesa do parlamento. Decidiu escolher Martins. Faz questão de insistir em Martins. E resolveu que não candidata mais ninguém a não ser o dito Martins. Nada a objectar. As opções do PS são legítimas. Mesmo tendo optado pelo caminho do confronto. Só não percebo que reivindique para si um direito que certamente não reconheceria aos outros. Quer continuar a candidatar Martins, pois faça o favor de continuar a candidatá-lo. Não pode é esperar que os outros se sintam coagidos e obrigados a aceitar uma escolha exclusivamente sua. Ou será que o PS ponderaria sequer a hipótese de viabilizar algum dia uma subida de Jaime Ramos à mesa do parlamento?
Ainda e sempre com a clareza que se impõe. Martins não é um nome politicamente neutro para o PSD. Bem pelo contrário. Carrega consigo uma carga muito particular de acrimónia, de conflito, de antagonismo. Tanto no plano político como no plano pessoal. E isso é tão evidente que nem vale a pena perder muito tempo a explicá-lo. De maneira que compreendo que o PSD não queira viabilizar a sua eleição. Mas há, no entanto, um aspecto que tenho dificuldade em compreender. Essa coisa de emprestar uma dezena de votos (ainda por cima secretos) só para fazer de conta é algo que anda algures entre o lamentável e o execrável. Porque não passa de uma triste paródia. E porque nem sequer respeita a consciência individual dos deputados que aceitaram passivamente a expropriação do sentido do seu voto. Palavra que ainda gostava de saber como, e com que tipo de argumentos, é que foram recrutados os "voluntários" nomeados pela direcção do grupo parlamentar.
No meio desta vil tristeza tiro o chapéu a Miguel de Sousa. Ao que dizem as notícias foi dar uma volta na altura da votação. Isto é, ficou de consciência intacta. Ao contrário daquela indigente dezena de correlegionários seus, que se prestam, pelos vistos, a todo o tipo de fretes.
Uma nota final para dizer que me enganei num vaticínio alvitrado há semanas atrás. O PS não negociou com o PSD a eleição de Bernardo Martins. Nem isso teve a arte de fazer. Participou na sessão de branqueamento das ilegalidades praticadas pelo PSD sem a mais leve sombra de cálculo político. Isto é, foi o que costuma ser. E ainda quer que o levem a sério...!
Bernardino da Purificação

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

A roda dos milhões

E pronto. Como quase sempre o mérito compensa, o mundo da bola lá se rendeu aos feitos desportivo-contabilísticos do "nosso" Cristiano Ronaldo. A distinção, reconheça-se, é mais do que justa. Porque ninguém jogou tão bem como ele na época que passou. Em golos. Em habilidade técnica. Em capacidade atlética. Em espectáculo puro. E também ninguém como ele pôs a girar a roda dos milhões de que se alimenta a não sei quantas vezes milionária indústria futeboleira.
Acontece, de facto, que Ronaldo é hoje uma das marcas mais impressivas e rentáveis do negócio global que é o futebol. Vende como ninguém. Em merchandising. Em páginas de jornais. Em capas de revista. Em gadgets diversos. E o negócio, claro, está-lhe grato.
A bem dizer, este Ronaldo já nem é propriamente "nosso". É deles. Ele já descolou há muito da sua condição original de simples madeirense jogador de futebol. Como os negócios planetários se alimentam de vedetas planetárias, foi dada a Cristiano Ronaldo a condição de ícone que a indústria faz render e a publicidade amplifica. Para glória do desporto-rei. E para enormíssimo proveito da máquina por trás da qual se encontra um exército de personalidades sem rosto, sem afectos, sem emoções. Estes, os afectos e as emoções, ficam por nossa conta, por conta dos espectadores. Que todos os dias discutem, discutimos, a bola que estoura na barra. Que diariamente se perdem, nos perdemos, em horas de conversa sobre o fora-de-jogo que não era, sobre as apitadelas suspeitas da equipa de arbitragem, sobre a entrada arrepiante do facínora do defesa da equipa adversária.
Não quero enfatizar, podem crer, o lado cínico e assumidamente contabilístico que todos sabemos existir no mundo da bola. Não é o momento próprio. Aliás, mesmo que o quisesse, bastava lembrar-me de cada um dos momentos de puro virtuosismo com que Ronaldo nos brindou na época passada para logo decidir arrepiar caminho. Ainda assim, manda a lucidez que me esforce por perceber que até com o merecimento de um prémio se joga muitas vezes no tabuleiro em que jogam os gestores do futebol-business. É raro haver batota na escolha? Acredito piamente que sim. Mas isso não é virtude. É apenas condição de sucesso. Uma actividade que vive de paixões acaba por ficar refém delas.
Não pretendo, de igual modo, entrar na demagogia barata de colocar frente-a-frente o futebol-glamour de que hoje se fala e o seu parente pobre feito de jogadores com ordenados em atraso e construído de coisas obscuras e traficâncias várias. Isso seria, convenhamos, uma nota de mau gosto. Que Ronaldo não merece. E que o nosso orgulho insular certamente reprovaria. Fico-me, pois, pelo registo de um prémio de amplificação planetária que um meu conterrâneo mereceu e ganhou. Sem, no entanto, poder deixar de pensar o que seria deste Ronaldo, ou de um outro qualquer que por aí ande, se tivesse optado por ficar cá na terra. O mais certo é que nunca passasse de uma terceira ou quarta escolha atrás de um daqueles futeboleiros do Brasil que por cá vão desembarcando às carradas para sorte deles e lucro de uns quantos.
Bernardino da Purificação

sábado, 29 de novembro de 2008

O fim do jogo de sombras

Estou cada vez mais convencido de que a latitude das imunidades que entre nós se pratica ameaça matar a democracia.
Não me compreendam mal, por favor. Não sou contra todas as democráticas prerrogativas que devem ter determinados titulares de cargos de políticos. É democraticamente útil que um deputado nunca se sinta constrangido quando, em nosso nome, exerce as suas funções. É perfeitamente entendível que um conselheiro de Estado não deva actuar com a reserva de uma qualquer limitação de cada vez que, nessa qualidade, for chamado a pronunciar-se sobre um problema do país. Não obstante, parece-me claro que o perfil das imunidades deve ter como destinatário e beneficiário único a democracia e não o interesse particular e pessoal de quem por elas possa estar abrangido.
Creio igualmente que as imunidades devem ser reguladas. E posso até compreender que a auto-regulação possa e deva funcionar como uma espécie de crivo primeira instância. Parece-me, no entanto, absolutamente perverso que a regulação do exercício das imunidades possa ficar refém da vontade mais ou menos corporativa dessa primeira instância. Eu sei que, no limite, o Tribunal Constitucional pode ter uma palavra a dizer quanto à forma como é interpretado e aplicado o regime de imunidades. Todavia, todos sabemos que, em termos práticos, o terreno onde se abriga esse regime é assim uma espécie de caixa-forte ciosamente guardada por quem dele beneficia. Julgo, pois, chegada a altura de alguém de bom senso ser capaz de propor medidas que restrinjam as interpretações demasiado extensivas do regime de protecção de alguns titulares de cargos políticos. Do mesmo modo que me parece evidente que é chegada a hora de se introduzir no sistema de verificação das imunidades um mecanismo regulador de natureza externa, que seja capaz de combater os tropismos corporativos que levam a que, no final de contas, todos se protejam uns aos outros. Tudo isto, em suma, para dizer que considero a todos os títulos obsceno que um político qualquer se considere no direito de barricar os eventuais desmandos da sua vida pessoal e profissional atrás de um regime que deveria ter como única finalidade proteger a política.
Como se tem visto, a pertinência do tema é mais do que muita. Porque as notícias que circulam não são tranquilizadoras. E porque a imunidade que a democracia exige parece estimular a formação de um inaceitável ambiente de impunidade para práticas de ética ausente e eventualmente delituosas.
Falemos claro. A opacidade é inimiga da legalidade. É atrás dela que se esconde tanto o grande crime como o pequeno delito. E uma sociedade, qualquer sociedade, só tem a perder quando os seus instrumentos de repressão criminal esbarram em zonas de sombra que certas práticas e costumes tendam a erigir. Ora, não há nada mais demolidor de um regime de imunidades do que a suspeita de que, paredes-meias com o que de positivo e estimável tem, possa também servir para abrigar a falta de transparência.
Como o tema é recorrente na discussão pública portuguesa, devo esclarecer por que razão o trago novamente a terreiro. Pois bem, faço-o por causa do chamado caso BPN. Mas faço-o sobretudo porque me parece inqualificável que um conselheiro de Estado não possa ser investigado e eventualmente constituído arguido apenas porque goza do estatuto especial que a sua função política lhe confere. Do mesmo modo que considero inaceitável que seja com a especificidade desse estatuto que se contenham na Madeira as eventuais ondas de choque que esse caso nos faça chegar. As notícias sobre as eventuais ligações de deputados da maioria a práticas menos regulares ou mesmo ilegais, no âmbito deste caso, merecem um esclarecimento cabal. Até porque já saturam as zonas de sombra que enevoam a nossa vida social.
Bernardino da Purificação

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Madeira über alles

O dr. Jardim anda angustiado com o futuro do partido que lidera. Não sei se é da casa onde tem instalado o trono, ou se, pelo contrário, anda por aí uma sibila qualquer sussurrando desgraças aos ouvidos de sua excelência. Mas isso, reconheça-se, também pouco importa. O facto vale por si. De modos que se o senhor presidente se quer consumir em angústias com o futuro, é lá com ele. Não só tem esse direito, como lhe fica bem dar pública nota das suas apreensões. Até porque, como se sabe, ninguém conhece como ele essa magnífica vaga de herdeiros que, com visível impaciência, aguardam a sua hora.
Registem-se, pois, as agonias presidenciais. Quanto mais não seja, como sinal premonitório das fatalidades que lá à frente nos esperam. E, já agora, juntemos-lhes as nossas. Se não como expressão da nossa solidariedade, ao menos como atestado da nossa gratidão - é enternecedor ver como um presidente de partida se preocupa, não com o futuro dele, mas sim com o nosso futuro.
Antes de prosseguir, uma nota de esclarecimento. O presente escrito reporta-se ao artigo doutrinário que o senhor presidente faz o favor de publicar no número que aí vem do órgão oficial do seu partido. É nele que estão contidas as actuais apreensões de Jardim. É ele que nos dá conta da natureza das suas presidenciais agruras de alma.
Se bem li a prosa, o dr. Jardim receia que o PSD venha a abandonar a sua condição de partido-vanguarda para se transformar num partido de interesses. Coisa séria, como se vê. Tão séria que quase nos faz esquecer que é igualmente reveladora e tardia. Reveladora, porque nos permite perceber que valor tem, para o dr. Jardim, a dialéctica partidária democrática - absolutamente nenhum. Tardia, porque basta olhar para o parlamento e para a maioria dos empresários da Madeira Nova para se perceber que o PSD é já, desde há muito, um partido de interesses com aspirações a, ou travestido de, partido-vanguarda.
O dr. Jardim farta-se de gozar com a nossa ignorância. Como sabe que nós sabemos que ele leu umas coisas, é useiro e vezeiro no recurso a um expediente que ele adivinha ter tanto êxito como habitualmente nenhum escrutínio. Impinge-nos grandes teorias e brilhantes raciocínios sabendo que os assenta em premissas falsas. E há-de divertir-se que nem um perdido cada vez que consuma um tal brilharete.
Vejamos. No texto pretensamente doutrinário a que venho aludindo, o dr. Jardim defende que o partido que lidera deve continuar a ser a vanguarda que tem sido. Único porta-voz das aspirações do Povo. Executante único da soberana vontade do Povo.
A palavra, como se calcula, provocou-lhe algum embaraço. Ele sabe, como nós sabemos, que a subida ao poder das auto-proclamadas vanguardas conduziu sempre à emergência de ditaduras. Mas como o dr. Jardim lida bem com os embaraços, sobretudo os de natureza filosófico-política, despachou o problema com a afirmação de que o poder exercido por um partido-vanguarda é perfeitamente compatível com o normal funcionamento de uma democracia liberal. É verdade que não ilustrou tão magnífica tese com a comparação de um único exemplo. Mas isso deve ter sido para poupar no papel, que a palavra de sua excelência vale mais do que qualquer teoria de ciência política. Ainda assim, atrevo-me a esperar que o excelso líder que temos nos possa um dia esclarecer. Quanto mais não seja, para percebermos que modelo de democracia inspira os gloriosos sonhos de sua excelência.
Admito que isto possa soar a bizantinice. Mas palavra que me incomoda saber que ocupa o poder alguém que parece não ter percebido ainda que as vanguardas encerram em si mesmas um fermento de totalitarismo. Pelos vistos, o dr. Jardim não sabe que em democracia os partidos não passam de instrumentos de acção política de projectos, de ideologias, de correntes de opinião. Que podem estar hoje no poder e amanhã na oposição. Que não esgotam o leque possível nem de sensibilidades nem de formas de participação colectiva. E que, por isso mesmo, nunca poderão representar a totalidade do povo soberano.
Ou seja, com o seu perverso desejo de chefiar uma vanguarda, o dr. Jardim revela estar-se nas tintas para o facto (que um simples olhar para a História comprova) de a confusão forçada entre um partido e um povo ser avessa à divergência e refractária à diferença. Do mesmo modo que evidencia não perceber que a democracia só o é, de facto, se for inclusiva e praticar a tolerância. Mas isso, como é evidente, só acontece a quem pode ou julga ter uma vanguarda por conta.
Bernardino da Purificação

domingo, 23 de novembro de 2008

A incontinência do senhor Representante

Ele há pessoas assim. Calam-se quando as circunstâncias exigiam que falassem. Mas falam pelos cotovelos quando deveriam ficar calados. Uma vez que não sei se a ciência tem nome para isto, peço desculpa por classificar prosaicamente a coisa como um síndrome da incontinência verbal conjugado com uma desordem de descompasso com o bom senso e com o sentido do timing.
O senhor conselheiro Monteiro Diniz é o caso mais recente do cúmulo destas duas padecências. Durante a crise de legalidade que o partido do poder impôs ao parlamento regional, refugiou-se no recato do palácio que habita. Porém, agora que a legalidade formal regressou à casa da nossa representação política, aí está ele num corrupio de declarações e entrevistas. Dizendo disparates que, sorte dele, nenhuma entidade sindica. Exibindo uma parcialidade que as suas obrigações de Estado não deveriam tolerar. E denotando uma leviandade absolutamente incompatível com o luzente currículo que ostenta e, pior do que isso, com a função que desempenha.
A insigne criatura deu neste fim-de-semana uma entrevista ao Sol. Embora sua excelência nada de jeito tenha dito, permito-me recomendar uma leitura às parvoíces que disse. Podem crer que são interessantes. Quanto mais não seja, porque revelam a inutilidade perniciosa das funções que desempenha.
Vejamos então o que disse o senhor representante.
Procurando justificar a ruidosa omissão do Palácio de Belém perante os factos parlamentares recentes, o conselheiro Diniz declarou ipsis verbis: "Não sou eu nem o senhor Presidente da República quem pode resolver estas crises. É o povo madeirense. E o povo madeirense, quando chega às eleições, não tem alternativas e mantém o mesmo partido no poder".
Sem o devido respeito, apetece-me responder a este arremedo justificativo. Para dizer, em primeiro lugar, que ele nada justifica. Para sublinhar, em segundo, que ninguém está à espera de ver o conselheiro Diniz a resolver o que quer que seja, muito menos as crises que possam ocorrer no nosso parlamento. E para explicar ao senhor representante da República que o facto de o povo madeirense votar assim ou assado não dá o direito a ninguém, muito menos ao chefe de Estado, de furtar-se aos deveres de intervenção que as leis admitem e as circunstâncias exigem. Pelo contrário. Num quadro político como aquele que descreveu o conselheiro Diniz, todas as omissões perante o arbítrio da ilegalidade jogam sempre a favor de quem o pratica. Constituem uma prova de indecente parcialidade. E a ausência de censura política beneficia sempre quem prevarica só porque quer e pode. Porém, e pelos vistos, a vida ociosa que o ex-senhor ministro leva no palácio já nem lhe permite enxergar aquilo que a razão parece dar como óbvio e tem como evidência.
Diz depois sua excelência que, no final de contas, a culpa do despautério que ocasionalmente se instala na política regional reside, cito, numa "cultura comportamental que se vem acumulando ao longos dos anos". Ora, só faltava mesmo o recurso à sociologia de trazer por casa! Então o agente político que o senhor representante também é não compreende que o que deve escrutinar-se na política são os comportamentos de indivíduos ou de grupos de indivíduos? Não percebe que é perversamente desresponsabilizador explicar o relapso desvario de alguns enfiando toda a gente no saco da mesma "cultura comportamental"? Não enxerga, em suma, que justificar dessa forma a emergência de uma crise como a que ocorreu recentemente só dá jeito a quem a provocou? Pelos vistos, não. Nem o ex-senhor ministro, nem quem lhe deu autorização para tal profusão de disparates.
Mas a pérola mais interessante da entrevista pode ser encontrada já quase no fim. Diz o conselheiro Diniz que a Madeira não é uma terra sem lei. Tem razão. De facto, não é. Em bom rigor, a Madeira é só uma terra onde às vezes (sempre que lhe apetece) o poder se marimba para a lei. Mas isso, claro, a insigne criatura não foi capaz de dizer. O brilho embaciado do seu raciocínio só o deixou ir a este ponto, e cito de novo: "Criou-se a ideia de que aqui faz-se tudo o que se quer. Não é assim. O presidente do Governo Regional controla muita coisa, mas, na área legislativa, o controlo é feito por mim". Valha-nos o Altíssimo. Mais um bocadinho e o representante enfatuado ainda reconhecia que tem um pacto com o dr. Jardim. Um controla tudo. O outro controla as leis. Todas? Claro que não. Como é sabido, só as que o parlamento democraticamente eleito se dá ao ao trabalho de produzir e aprovar. As outras, isto é, as que são sistematicamente violadas por quem manda, ficam por conta da cultura comportamental vigente. Abençoada República que tal representante tem! E bendita Autonomia que tal cargo consente!
Bernardino da Purificação

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

A elegante reforma do dr. Jardim Ramos

Não sei porquê, mas sinto que tenho um fraquinho especial pelo ímpeto reformista do secretário regional dos Assuntos Sociais. Às vezes, diverte-me. Noutras, confesso que me assusta. Mas, como o homem parece gostar de mexer com as coisas, que se lixe o susto e viva a diversão.
Já deu para perceber que o dr. Jardim Ramos é um político de muitos méritos. Com a simples substituição de um director regional conseguiu a proeza de erradicar a pobreza da nossa querida terra. E, agora, com a remoção pura e simples de duas dúzias de médicos acomodados (de acordo com a terminologia do seu corajoso e perspicaz diagnóstico) prepara-se para elevar os padrões dos serviços hospitalares ao patamar da excelência.
Bem haja, pois, dr. Jardim Ramos. Graças a vosselência, a expressão "ovo de Colombo" ganha uma dimensão inusitadamente nova. E são, podem crer, políticos da estirpe deste intrépido e insigne reformador que me reconciliam com a política e me fazem ter esperança de que há-de haver (é imperioso que haja) um dia de amanhã.
Se bem repararmos, o dr. Jardim Ramos transporta consigo a marca do governo a que pertence. Tal como os outros, tem uma reconhecida capacidade de produzir uma ou duas (admito sem esforço que, por junto, possam ser assim tantas) boas ideias abstractas. E, exactamente como os seus iluminados parceiros, é capaz de montar completos desastres a coberto e na esteira dessas duas magníficas ideias.
É necessário dar exemplos? Ok, pensem nas marinas e nos parques industriais. Já agora, acrescentem-lhe a tola utilização de um PIB empolado. E, de caminho, juntem-lhe também a liberalização mal estudada dos nossos transportes aéreos. Chega? Estou certo que sim.
Retome-se então o entrecho.
De modos que o dr. Jardim Ramos traz consigo esta indelével marca. Age mais depressa do que pensa. Pensa pouco e quer fazer muito. É assim uma espécie de Lucky Luke da organização da nossa Saúde. Chega a ser mais rápido do que o próprio pensamento.
Sua excelência há-de ter lido num livro qualquer que todas as organizações necessitam de injecções ocasionais de sangue novo e ideias novas. Como o hospital é a organização mais apetecível e visível à sua mercê, o dr. Ramos centrou nela o seu experimentalismo mal estudado. E como o seu negócio é a saúde, decretou-lhe a aplicação de um choque terapêutico: altera-se a orgânica; remove-se a gente antiga; rejuvenesce-se a equipa dirigente. E um dia, pensou ele, o povo há-de agradecer.
Pois bem, o resultado está à vista: alterou-se a orgânica à revelia dos médicos; removeu-se a gente antiga, num processo marcado pela deselegância e pelo ressentimento; e rejuvenesceu-se a equipa dirigente, em muitos casos, com gente recém-formada que um dia há-de lamentar ter sido alienada prematuramente da prática médica. E tenho dúvidas de que o povo possa estar grato a um processo que, para já, mais não fez do que levar a instabilidade e o ressaibo pessoal a uma classe e a uma instituição que tem a nossa saúde nas mãos.
Como não sou médico nem conheço o currículo das pessoas envolvidas no choque terapêutico do dr. Ramos, é evidente que não me pronuncio sobre a bondade ou maldade da coisa. Para já, a minha preocupação é outra. Tem mais que ver com aspectos formais do que com questões de substância (a despeito de saber que, nestas coisas, a forma é sempre substantiva). Não compreendo, por exemplo, como é que se pode justificar a mudança agora operada com a necessidade de combater o eventual acomodamento dos médicos que até agora dirigiram os serviços hospitalares. Do mesmo modo, compreendo mal que se ponha na rua gente qualificada pela via indigna de uma notícia de jornal. Finalmente, faz-me impressão que se faça tudo isto sem a prévia elaboração de um relatório de performance.
A primeira das três questões enunciadas leva-me a concluir que o governo do PSD anda há vários anos a pactuar com a inércia do acomodamento instalado nos nossos hospitais. Isto é, o governo é objectivamente responsável por todas as nefastas consequências decorrentes dessa situação de acomodamento. Jardim Ramos dixit.
A segunda das minhas objecções leva-me a pensar que o secretário regional dos Assuntos Sociais pretende obter na praça pública, ou seja, na rua, a cobertura que porventura lhe falta, ou perdeu, no seio da instituição que pretende reformar. Interessante.
A terceira constatação que os factos conhecidos permitem é que se fazem reformas sem estudo prévio, abrem-se novos ciclos sem a avaliação antecipada daquele que se fecha, tira-se uns e põe-se outros assim como quem manipula um brinquedo qualquer. Significativo.
É claro que é tão prematuro vaticinar desgraças como augurar desejáveis êxitos. Mas há uma coisa que é visível para já: o dr. Ramos fez as coisas com um tal tacto que até parece que o hospital se encontra em estado de sítio. As notícias não mentem. E delas o que se percebe é que a nossa saúde se encontra entalada no meio de uma refrega que tem um governo contra médicos, e que, pior do que isso, acaba de pôr médicos contra médicos. Ora, não é assim que se reformam as organizações. E um dia o dr. Ramos há-de percebê-lo.
Bernardino da Purificação

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

As duas faces da mesmíssima moeda

O dr. Jardim reduziu a uma trica de comadres o público desaguisado ocorrido no interior do grupo parlamentar do seu partido. Era de esperar. De um modo geral, o líder do PSD costuma classificar dessa forma todas as tensões que, num dado momento, parecem ameaçar a coesão interna do partido do poder. De um modo particular, o dr. Jardim classifica dessa maneira os conflitos que pode controlar. E, com o cuidado que lhe merecem as situações verdadeiramente especiais, é a isso que reduz todas as pequenas ou grandes querelas que fazem o favor de eclodir por determinação da sua presidencial vontade.
Nada de novo, portanto. Nem quanto aos termos utilizados, manifestamente já mais do que gastos. Nem quanto ao ar patriarcal com que se pretende colocar acima da turbulência plebeia em que por vezes se envolvem os que no partido lhe estão abaixo.
Não nos iludamos, porém. Um simples exercício de memória mostra-nos bem o que acontece à dissensão pública destituída de aval presidencial. E nem será necessário recuar assim tanto para recuperarmos do passado as cobras e lagartos que se disseram de Virgílio Pereira a propósito de uma sua discordância ocasional. Ora, é evidente que o mesmo não vai acontecer a Coito Pita. Não porque tenha um peso político específico superior ao que tinha Virgílio Pereira. Muito menos porque o PSD possa precisar mais dele do que então precisava do ex-presidente da Câmara. Nada disso. Nada vai acontecer a Coito Pita por uma cristalina, simples e nada extraordinária ou especial razão: o súbito e quase improvável opositor de Jaime Ramos é, na actualidade, um dos homens de mão do presidente do partido. A sua voz é, na maioria das vezes, a voz de Jardim. Os seus alvos internos são, praticamente sempre, os alvos dilectos do chefe de todos os pequenos chefes que por aí andam.
Insisto no que escrevi há dias atrás. Só a Jardim interessa ter Jaime Ramos debaixo de fogo. É uma forma de lhe minar as forças. O problema é que o facto de isso ser cada vez mais notório tem o efeito perverso de elevar internamente o estatuto de Ramos. Compreenda-se. Um líder só perde tempo com alguém da sua igualha, mesmo que recorra ao mal disfarçado expediente das interpostas pessoas.
Temos assim os primeiros passos de uma novidade na política madeirense. Pelos vistos, o PSD prepara-se para iniciar um período interessante e novo da sua já longa história. De definição de uma nova estrutura de poder. De redefinição dos seus alinhamentos internos. Porém, ainda é cedo para muitas conjecturas. Porque se é verdade que, nesta espécie de cara ou coroa, parece de mais aviso continuar a apostar na coroa, não deixa de ser igualmente verdadeiro que as moedas lançadas ao ar têm por vezes caprichos inesperados. Para não falar, já se vê, da união umbilical a que o destino e a força das coisas as condenou. Ou será que alguém pensa que Ramos é homem para se deixar descartar ou ir sozinho ao fundo?
Bernardino da Purificação

terça-feira, 18 de novembro de 2008

De uma maneira ou de outra

Gostava de saber se o cidadão Rui Alves, e não o presidente de um clube de futebol, era capaz de prometer duas estaladas a alguém. Gostava também de saber se o cidadão Jardim, e não o chefe daquela coisa que aparenta ser um governo, era capaz de trovejar ameaças frequentes, tal como faz constantemente a sua versão presidencial. Gostava, enfim, de saber se toda essa notável cadeia de comando, que vem por aí abaixo desde a Quinta Vigia até chegar à Junta de Freguesia ou à associação de bombeiros, se dava algum dia ao atrevimento da costumeira bravata de disparar ameaças a torto e a direito, caso não estivesse acoitada na loca do poder.
Não pretendo especular muito sobre a miserável indigência do fenómeno. Mas todos sabemos que, sem as vestes institucionais de que toda esta fauna se apropriou, o mais certo é que andassem de rabinho entre as pernas, desdobrando-se em carentes palmadinhas nas costas de todos os que habitam o seu triste espaço de convívio, rasgando-se em insinuantes sorrisos para aqui e para acolá, num permanente e surdo apelo à consideração alheia.
Uns desgraçados, em suma. Uns cobardes. Que exibem com despudor uma força usurpada ao cargo que ocupam. Que ameaçam com uma ousadia que individualmente não têm.
De uma forma geral, todos nos lembramos deles antes e depois. Antes de serem o que são, não passavam de uns pobres diabos à espera da atenção da fortuna. Depois de serem o que são, voltam à lúgubre condição de pobres diabos. A única diferença é que regressam mais ricos, mais gordos, porventura inchados pela fartura da gamela.
Convém esclarecer, no entanto, que compreender o fenómeno não é, não pode ser, relevar-lhe a culpa ou desculpar-lhe a gravidade. O poder não há-de ser assim tão mau que consiga dar a volta à cabeça dos que por ele possam passar. O problema, parece-me claro, reside muito mais na qualidade pessoal de quem a ele acede do que na perversa capacidade que possa ter de transformar gente vulgar em refinados filhos da mãe (sem qualquer ofensa às senhoras suas progenitoras). Acho muito bem, portanto, que as vítimas que fazem lhes vão dando o troco que merecem. Na Justiça, já se vê, apesar da imensa desproporção de acesso e de meios. Mas sem descurar, como há alturas em que é preciso, outras formas, digamos, mais criativas de oposição e resistência. Até porque a Justiça não chega a todo o lado, sendo que, por vezes, só chega onde lhe convém. Ao passo que a criatividade, por enquanto, ainda não conhece limites.
Como a nossa mente nos surpreende por vezes com associações tramadas, ao pensar nas prepotentes diatribes de Jardim, de Rui Alves, e de todas as outras personalidades, correlativas ou afins, que os acompanham na proa que ocupam, lembro-me sempre de um episódio da bola. (Faz todo o sentido. Afinal, o pretexto da prosa foi, na circunstância, uma coisa da bola.)
Ora, acontece que uma vez foi perguntado ao central Mozer, que defendeu com brio o emblema, as cores e o orgulho do Glorioso, como é que tencionava travar os atacantes adversários. Pois bem, com a simplicidade um bocado safada de quem se rala pouco com estados de alma, o defesa limitou-se a retorquir, sorrindo. É simples. Há-de ser de uma maneira ou de outra. E nem ele sabia que as suas palavras encerravam, afinal, todo um programa de legítima defesa.
Bernardino da Purificação

sábado, 15 de novembro de 2008

Uma sucessão sem sucessor

Se calhar porque sou céptico, só agora começo a acreditar que o dr. Jardim prepara, de facto, a sua sucessão. Porém, se os sinais não me enganam, parece-me ainda prematuro admitir que alguém venha mesmo a receber em breve o testemunho. Creio mesmo, aliás, que o mais certo é que venhamos a ter, provavelmente no final da legislatura, uma sucessão sem sucessor. Porque o dr. Jardim não brinca em serviço. E porque se sabe que, para ele, a democracia e os votos só têm piada se se puder antecipadamente saber quem ganha as eleições.
Concluído o intróito, permitam-me que ponha um pouco de ordem nas ideias.
Como acontece com a generalidade dos cidadãos desta terra, estou muito longe de dar por adquirida a ideia de que o presidente do Governo vai calçar as pantufas, por sua iniciativa, no final do presente mandato. Admito que possa estar farto do que faz e de quem o rodeia. E sou até capaz de dar de barato que a descompressão de uma reforma dourada possa estar a sorrir-lhe de uma forma, digamos, tentadora. Creio, no entanto, que o vício do poder será mais forte do que o manifesto desprezo que a criatura já nem esconde que nutre, tanto por adversários, como por companheiros de partido. O que me leva a pensar que o dr. Jardim há-de continuar por aí, parafraseando o outro de má memória, pelo menos até conseguir o lugar de recuo que o seu elevado auto-conceito considere mais adequado.
Desgraçadamente para ele, Bruxelas não passou de uma idílica miragem. Felizmente para o seu instinto de sobrevivência, a política do rectângulo, para além de lhe não ser actualmente favorável, fascina-o muito menos do que por vezes nos tenta fazer crer. Ora, tudo isto somado (ou melhor, subtraído) dá como resto a necessidade imperativa de ter de ficar por cá. Por muito que isso lhe custe. A despeito de todas as maçadas e enjoos que o futuro lhe possa trazer.
O dr. Jardim sabe que se não tivesse dito e redito, jurado e tornado a jurar, que este seria o seu último mandato, as coisas ser-lhe-iam francamente mais fáceis. Recandidatava-se, e pronto. Fazia um novo mandato, porque sim. E toda a gente engolia a coisa sem discussão que se visse ou problemas de maior.
A chatice é a eterna mania que tem de fazer política como quem anda no arame. Um dia finge que cai. Num outro faz de conta que se equilibra. Num terceiro ameaça que se estatela. Num seguinte volta a fingir que se apruma. E assim sucessivamente até fartar toda a gente com o espectáculo. Até, imagine-se, a que sempre considerou sua.
De maneira que, sem lugar de recuo à medida das exigências do ego, e com toda a gente mais ou menos saturada de ter continuamente mais do mesmo, o dr. Jardim percebeu que é chegado o momento de sacar do reportório uma última cartada. Vai, pois, voltar a fazer de conta. Vai sair, porém, vai ficar. Vai deixar o governo, mas não vai deixar o poder.
Como sei que a ideia assim expressa pode soar a coisa estapafúrdia, avanço desde já a leitura que faço dos últimos sinais visíveis. Na minha modestíssima opinião, todos eles, os sinais, parecem indicar que o dr. Jardim se prepara para, no final do mandato, e sempre como hipótese de recurso, recolher à retaguarda aparente do cargo de presidente da Assembleia Regional. Foi provavelmente por isso que decretou uma alteração ao regimento, por forma a que o presidente volte a ser eleito por legislatura e não por sessão legislativa. E terá sido também em obediência a esse plano que deu carta branca a Coito Pita, nesta espécie de rebelião larvar que parece estar em curso no seio do grupo parlamentar do PSD, contra Jaime Ramos. É que só um presidente forte do parlamento precisa de um Ramos fraco, ou até mesmo, quem sabe, de um Ramos ausente. E só a um presidente autónomo, com força e com poder efectivo, o dr. Jardim daria o direito de libertar-se da sujeição ao voto anual dos deputados eleitos. Ora, digam-me lá quem é que no PSD reúne o cúmulo de todas estas condições?
Bernardino da Purificação

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Os acólitos da contrição

Não quero passar por desmancha-prazeres. Mas, palavra que está mesmo a apetecer-me atirar uma pedrada à unanimidade pia e congratulatória que reconduziu o parlamento madeirense ao trilho da legalidade. A razão é simples. Considero que os actos de contrição devem ser pessoais. E entendo que os ofendidos deveriam ser capazes de se dar ao respeito. Como nada disso aconteceu, receio bem que a dita normalidade tenha sido conseguida à custa de uma negociata qualquer. Como se a legalidade democrática, insisto numa tecla já tocada em textos anteriores, pudesse algum dia ser objecto da traficância de uma qualquer transacção.
Um bocado confuso, o que precede? Já se verá que não.
O PSD merecia, tinha esse direito, de desfazer sozinho o imbróglio jurídico e político em que leviana e prepotentemente meteu a Assembleia Legislativa Regional. Deveria ser capaz de subir sozinho ao plenário cujos trabalhos havia suspenso. E, num acto de penitente solidão, revogaria, com a exclusividade da sua iniciativa e votos, o que a força bruta da sua maioria havia anti-democraticamente imposto.
Isto é, a oposição não deveria ter-se intrometido no recolhimento alheio. Nem para lhe apoiar as dores. Nem para dar solenidade à indigência da rábula. A situação criada na Assembleia era um problema do PSD. Deveria, em consequência, ser resolvido a solo pelo PSD.
Se bem repararem, verão que não há ponta de radicalismo neste entendimento que expresso. Embora reconheça que os mais apressados tentarão encontrar aqui um laivo qualquer de incitamento à prática nada cristã do ajuste de contas.
Ora, o que defendo é tão simples quanto isto. Por vontade exclusiva da maioria social-democrata, a legalidade democrática na Assembleia ficou dependente e refém da revogação, pura e simples, de uma decisão arbitrária, ilegal e inconstitucional. Acontece que essa deliberação foi dirigida contra um deputado de uma das minorias com assento parlamentar. O que quer dizer que, enquanto se não verificasse tal revogação, nenhum partido da oposição com um apurado sentido de dignidade política e democrática deveria permitir-se participar em qualquer sessão plenária. Por não haver condições políticas para o fazer. Por subsistirem as razões jurídicas que levaram à suspensão da actividade parlamentar. E pela razão mais mundana e prosaica de que se não deve dar confiança à prepotência dos que sistematicamente se marimbam para as regras.
Pois bem, o que vimos foi outra coisa. Toda a oposição, com a digna ressalva do deputado directamente ofendido, aceitou acolitar a tardia contrição da maioria parlamentar. E, o que é mais surpreendente, aceitou emprestar o seu voto, que habitualmente de nada conta, a uma votação só tornada necessária pelo arbítrio da maioria. Perdeu assim uma oportunidade. Mais uma. De se dar ao respeito. E de confrontar o PSD com a indignidade da sua prepotência.
A oposição, e, em particular, o PS, lá saberá com que linhas se há-de coser. Mas depois de todas as omissões que se conhecem, por parte de quem tinha o dever ético e político de pronunciar-se sobre o acontecido, é inquietante perceber que os deputados da maioria tenham conseguido passar incólumes por entre os pingos da chuva que provocaram. No mínimo dos mínimos, deveria ter-lhes sido dado o direito de subirem ao plenário sozinhos, e de, com o imenso quórum que têm, assumirem sozinhos que erraram, no pelourinho da praça pública. Sem acólitos à volta a emprestar dignidade política à coisa. E sem ninguém a segurar as velas de uma contrição que deveria ficar como exemplo. Só espero é que, por detrás deste aparente erro de cálculo de tão cordata e prestável oposição, não tenha ficado uma negociata qualquer. Mas isso há-de ver-se quando um dia destes se reeditar a votação para a escolha do vice-presidente que falta à mesa da Assembleia.
Bernardino da Purificação

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Cavaco, a Autonomia e o ademais

O senhor presidente da República tem coisas mais importantes com que se preocupar. Os atropelos à legalidade democrática verificados no parlamento madeirense não passam de um exacerbamento, de grau escasso da escala cavaquista, da tensão inerente ao confronto político. E, ademais, a República tem na Madeira um senhor que a representa com capacidade para lidar com as excentricidades locais.
Manda o rigor que reconheça que não estou a citar ipsis verbis as declarações proferidas pelo senhor presidente da República. Porém, espremidinho o que disse, a coisa não passa desta indigência de raciocínio.
É evidente que o desemprego e a crise financeira são muito mais importantes do que quaisquer afloramentos totalitários ocorridos, ou em curso, na pérola do Atlântico. Os primeiros dizem respeito a todo o país. Os segundos não passam de mero folclore local.
Do mesmo modo, é claro para todos que os efeitos da intensidade do confronto político da RAM já fazem parte do anedotário nacional. O chefe de Estado tem assim carradas razão. Presidente da República que se preze não deve ceder à sedução da anedota.
Quanto ao ademais, a pátria não ignora que a Madeira alberga, por obra e graça do legislador constituinte, uma vetusta figura com poderes de representação da República. Não o ignora a pátria dos magnos problemas. Nem, muito menos, o exotismo folclórico desta pequena parcela. Às vezes é mais patusca do que vetusta? É sim senhor. Porém, compreenda-se. Entre a relevância dos cargos e o perfil particular de quem os ocupa deve haver sempre uma correspondência apropriada e visível.
De maneira que, meus amigos e caros concidadãos, a Madeira acaba de ser declarada em estado de autonomia total, tal como têm vindo a reclamar os mais fervorosos e radicais autonomistas, a começar, já se vê, por esse heróico espadachim autonómico que dá pelo nome de dr. Jardim. Porque o presidente da República não quer saber de nós, mesmo quando é atropelada a legalidade democrática. E porque, como se tem visto em todo este nada surpreendente processo, o representante regional da dita é mais expedito a comentar comentadores e políticos da oposição regional do que a condenar a prática deliberada de ilegalidades.
Estamos finalmente entregues a nós próprios, é o que é. Que é como quem diz que estamos entregues ao arbítrio de um poder a quem é dada a indecente indulgência dos casos perdidos. Dêmos, pois, graças ao Altíssimo. E, de caminho, agradeçamos a um presidente da República que, no intervalo dos seus inúmeros afazeres, é capaz de reconhecer a existência de ilegalidades, embora prefira deixá-las ao sabor dos caprichos de quem as pratica. E, já agora, tributemos também ao senhor presidente do Governo regional (e, em seu nome, à clique que chefia) o reconhecimento sincero que lhe devemos por fazer o que faz, apesar da rédea solta que tem. Não fosse ele um campeão da democracia e estaríamos todos bem arranjados...
Que mal fizemos nós?!
Bernardino da Purificação

sábado, 8 de novembro de 2008

A democracia negociada

Entendamo-nos. Não me move qualquer perverso desejo de ver a Madeira falada por más razões e envolvida em polémicas lamentáveis. Não obstante, e ao contrário do que possa imaginar o conformismo dos que se preocupam mais com os efeitos do que com as causas, considero que seria de extrema utilidade para a saúde da nossa vida democrática que o presidente da República fosse capaz de colocar no patamar devido o mais recente caso da política madeirense.
Uma democracia responsável não se refugia em subterfúgios. E os titulares responsáveis das suas instituições políticas não se escondem nem fogem dos problemas. No entanto, a sensação que se tem é que praticamente toda a gente aceita passar bovinamente a vida fazendo de conta que a normalidade e a legalidade são negociáveis. Como se as leis não fossem imperativas. Ou como se à Madeira tivesse sido outorgado um estatuto de excepção.
Ora, é óbvio que em democracia a legalidade não pode ser susceptível de transacção. De maneira que o mínimo que se poderia esperar de um presidente da República é que tivesse a decência política de enviar uma mensagem ao parlamento regional. Condenando, sem tibiezas nem ambiguidades, a reiterada indecência que a Assembleia quase diariamente alberga. E dizendo, sem medo das palavras, que as rupturas institucionais chegam sempre que os representados deixam de rever-se nos comportamentos e nas práticas dos seus representantes.
Como os factos falam por si, não vou entrar novamente na descrição da ocorrência. O que me interessa hoje é outra coisa. É explicar por que é que penso que o presidente da República não tem o direito de reduzir o problema criado a coisa que se resolve com umas quantas conversas de bastidores. E é procurar reter o que considero haver de verdadeiramente significativo nestes últimos atropelos cometidos à normalidade da nossa vida democrática.
Então, é assim. Ficou à vista de todos que o PSD convive mal com a crítica e reage mal à diferença de opinião. Encontra-se de tal maneira refastelado na sua obesa maioria que já nem consegue pensar. As suas reacções são, no mais das vezes, primárias e instintivas. E têm, quase sempre, a mimosa particularidade de se marimbar para o freio das regras, de mandar às urtigas os limites da decência e do império da lei, e de privilegiar o primarismo da força bruta.
A ocorrência recente é paradigmática. Em vez de procurar enquadrar democraticamente as invectivas políticas de que foi alvo, o poder que temos reagiu com a cegueira da intolerância: um deputado anda para aí a maçar-nos com fantochadas pseudo-políticas que dão notícias, pois cale-se o deputado, mande-se a política àquela parte e tente-se dar um jeito nas notícias; as críticas ganham uma visibilidade acrescida por serem feitas no parlamento, pois que se feche o parlamento; a democracia é um empecilho para um poder que se julga absoluto, pois que se dane a democracia; as pessoas julgam estar na posse do direito de opinião, pois que se lixem os direitos, mande-se passear as pessoas e vão à fava as opiniões. E um dia, sem darmos por isso, viveremos sem críticas nem opiniões. Sem política nem parlamento. Sem democracia nem regras. Apenas com as notícias que interessam. Apenas com a opinião que conta.
Aos que acham que a caricatura exagera, direi simplesmente que reagimos exactamente como somos. Os tolerantes reagem com tolerância. Os intolerantes nem chegam a perceber onde fica a fronteira da intolerância. Ora, foi nisto que se transformou o poder que nos manda.
O PSD não é todo assim, farão o favor de dizer os que não querem ser metidos em semelhante saco. Têm razão. É claro que não é. Individualmente considerados, os seus militantes não passam, quase todos, de estimáveis pessoas. Mas vão perguntar o que pensam os que são diariamente humilhados, os que são sistematicamente perseguidos, os que são criminosamente marginalizados. Eles lhes dirão que poder é este que é capaz de levar gente decente à prática reiterada e sobranceira do atropelo de regras, de direitos, de pessoas.
Ora, é por tudo isto que o presidente da República não devia ficar novamente calado. Porque se o fizer torna-se objectivamente cúmplice do desmando. E porque ao fazê-lo dá um público sinal de que a esta gente tudo é permitido.
Bernardino da Purificação

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

O arauto da legalidade inexistente

O senhor Representante da República considera que está reposta a legalidade democrática na Assembleia Legislativa da Madeira. O parlamento não se reúne por vontade expressa do grupo parlamentar do PSD. Mas isso, para o conselheiro Diniz, traduz um quadro de legalidade. Mais um bocadinho e ainda nos diria que o clima parlamentar é de normalidade. Demos graças ao Senhor!
Já se percebeu que falo da mais recente episódio da nossa vida parlamentar. O deputado do costume fez o número do costume. E o PSD resolveu rasgar as vestes de tola indignação.
Corrijo. A bem dizer, a provocação não foi a do costume. Desta vez, o deputado do PND chamou nazi a Jaime Ramos e assassino a João Jardim. E resolveu alindar a cena com uma suástica de todo o tamanho em forma de bandeira. Isto é, o dito deputado conseguiu ir desta vez mais longe do que lhe é habitual. No espalhafato da cena. Na gravidade das acusações. No contumaz desrespeito pela dignidade da instituição parlamentar.
Do mesmo modo, a indignação do PSD não foi propriamente tola. Foi absolutamente legítima. Tolos foram, isso sim, os mecanismos de retaliação que utilizou: suspendeu ilegalmente o mandato de um deputado legitimamente eleito; impediu-o, com recurso a segurança privada(!), de entrar numa casa que é sua de direito político e legal; e, quando alguém lhe explicou a enormidade anti-democrática do feito, mandou fechar o plenário até que os tribunais entendam dizer de sua justiça.
Temos assim que, por este andar, só lá para as calendas teremos de novo em regular funcionamento a casa dos nossos representantes políticos. Não obstante, isso não parece ser coisa que perturbe o senhor conselheiro Monteiro Diniz. Deu rédea à solta ao formalismo legal que lhe caracteriza o pensamento e explica a acção. E ei-lo a comprazer-se com aquilo a que apelida de legalidade democrática. Haja clemência!
Se calhar, sua excelência nada mais pode fazer. O mais certo é que isso seja assim. Mas, com franqueza, podia ao menos ficar calado ou medir o que diz. Como nada disso fez, fica associado, também por más razões, a um dos episódios mais negros da vida parlamentar da Região.
Uma vez que o fundamentalismo legalista do senhor ex-ministro resolveu botar faladura, é de presumir que o presidente da República vai permanecer calado. Pelo menos, por enquanto. E assim se fica a perceber para que servem os representantes da dita.
Eu confesso que não acho bem. Já vai sendo tempo de a República se dar ao respeito também aqui nesta sua parcela. E já que temos um presidente tão cioso dos seus poderes (como se viu no recente episódio do estatuto açoriano), percebe-se mal que continue a recusar-se a utilizá-los. A menos que a ideia seja a de continuar a alimentar, com finalidades porventura didáctico-políticas, o exotismo político da ilha. Será?
Bernardino da Purificação

As contas de sumir e o estádio

A máquina da propaganda político-futebolística aí está na sua máxima força. Afinal, diz ela, o estádio do Marítimo vai ficar mais barato ao nosso erário. E o povo regozija-se. E o dr. Jardim pisca o olho, em mal disfarçado gozo, ao presidente Pereira dos assuntos futebolísticos do governo da RAM. E o nosso querido e escasso orçamento lá vai fazendo contas à fatia que vai ter de dispensar para a manutenção do lucrativo e dispendioso divertimento de alguns.
Um estádio mais barato! Palavra que gosto da ideia. Em período de crise, nada há mais estimável do que poupar e cortar nos gastos. Sobretudo nos desnecessários. O problema, e é com humildade que o confesso, é que não a percebi. Mais barato do que quê? Do que se não fosse feito? Do que pura e simplesmente se dissesse ao senhor Marítimo que já recebeu do erário mais do que o suficiente para ter feito estádios, obras, campos de treino, academias e outras coisas quejandas? Palavra que estou confuso. Como não é disso que se trata, juro que não percebo que raio de poupança é essa que o DN nos serve num dia e o dr. Jardim nos assegura no outro.
A minha dificuldade em perceber como é que vai ser mais barata uma despesa imoral, e a todos os títulos inútil, assenta ainda num outro tipo de considerações.
Passo a explicar.
Há dias, antes ainda deste mimo propagandístico que nos quer convencer da bondade de uma coisa manifestamente ruim, vi na têvê que temos um cavalheiro do IDRAM declarar o que um zeloso aplicador dos nossos dinheiros nunca poderia aceitar. Disse ele, num debate a propósito deste famigerado estádio do Marítimo, que a análise de solos e o estudo geotécnico, que as leis da engenharia exigem que se faça, serão executados pelo empreiteiro depois da adjudicação da empreitada. E no ar, como se calcula, ficou a simpática ideia de que a RAM assim furtaria os seus exauridos cofres a uma desnecessária despesa (mais uma, já se vê, que, pelos vistos, esta operação do estádio do CSM só tem contas de subtrair).
A maçada da coisa é que tanta poupança deixa a gente a matutar. Ora, acontece que eu também matutei. E, se calhar, mais do que devia. De tal modo que dei por mim confrontado com a seguinte dúvida de leigo: como é que se pode determinar um valor-base de adjudicação de uma obra pública, sem se apurar antecipadamente a dimensão e o custo da totalidade da intervenção?
Como não sou engenheiro, confesso que ainda hoje a coisa me aflige. Será que só vai ser adjudicada a obra acima do solo? Será que há alguma empresa de construção civil disposta a partir para uma obra como quem parte para a compra de um melão (o tal que só depois de aberto se sabe se valeu o que custou)? E os trabalhos abaixo do solo? Quem vai fazê-los e pagá-los? Serão um presente envenenado, salvo seja, dado ao empreiteiro? Tenho a certeza de que a singeleza complexa destas dúvidas dá bem a nota do tormento reflexivo em que me encontro.
É verdade que, a dada altura, pensei ter chegado à resposta para todas estas dúvidas. Visualizei então a palavra derrapagem. E a coisa pareceu fazer algum sentido. Na verdade, não há obra que não derrape financeiramente neste país e nesta região. Só que, logo a seguir, recordei-me que, não há muito tempo, entrou em vigor um diploma legal que limita a uma percentagem irrisória o valor dos trabalhos não previstos no caderno de encargos. E aqui, para meu desespero, regressaram as dúvidas. Será que alguém pode ajudar-me a desfazê-las? É que, com tantas contas de subtracção, às tantas ainda teremos um estádio real assente em fundações virtuais. Ou será que a virtualidade da coisa vai ficar-se apenas pelas contas da dita?
Bernardino da Purificação

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

God bless America

Primeiro o registo de interesses. Não sou nem pró-democrata, nem pró-republicano. Considero que a política dos Estados Unidos só me diz respeito na sua vertente externa. E, desse ponto de vista, considero-me um pró-americano. Porque simpatizo mais com as democracias do que com as ditaduras. Porque não ignoro que o mundo pós-guerra fria necessita de um mínimo de regulação e ordem que organizações como a ONU não estão em condições de assegurar. Porque não sou indiferente ao cinismo dos que reclamam essa regulação sem nada fazerem para que ela seja efectiva. Porque não esqueço o que a Europa tem feito, a si própria e ao mundo, sempre que os EUA se limitam a tratar da sua casa e dos seus problemas. E porque depois do 11 de Setembro, por todas as razões trágicas, civilizacionais e simbólicas que lhe são inerentes, não posso deixar de fazer minhas, com as necessárias adaptações, mas com a mesma intenção solidária, as palavras imortalizadas do presidente Jack Kennedy: Ich bin ein american.
Foi com este distanciamento que acompanhei as eleições nos EUA. Predispus-me a assistir ao espectáculo mediático global como o terão feito biliões de espectadores. Não tive favoritos. E procurei resistir a todas as lendas e clichés que sobre os candidatos se contaram.
Porém, passadas as eleições, não posso deixar de dizer que me sinto literalmente esmagado pela extrema dignidade do candidato derrotado, pelo imenso sentido de Estado que em todos os momentos exibiu, pelo tocante patriotismo de que sempre deu mostras, pela genuína humildade com que reconheceu os méritos do adversário. Senti-me reconfortado, em suma, por poder verificar que a lenda McCain, que ideólogos e estrategos de campanha tão bem construíram e enfatizaram, corresponde à pessoa concreta que é. Não tivemos o plástico do marketing. Estivemos perante a autenticidade de um político de verdade.
Obama, claro, impressionou-me também. Por tudo isso. Mas também por outros predicados. Pedindo desculpa pelo exagero, fez-me lembrar Mandela. Não apenas por ter ganho, mas por ter ousado acreditar que podia ganhar. Não apenas pela eloquência, mas pela serenidade, bom senso, e simplicidade com que sempre se dirigiu aos americanos. Não apenas por ser quem é, mas pela forma como conseguiu mobilizar um país de abstencionistas para uma participação eleitoral a todos os títulos impressionante - a maior dos últimos cem anos.
Obama mexeu nas estruturas da política americana. Ele e McCain foram capazes de opor a força dos eleitores ao conservadorismo dos aparelhos partidários. Honra lhes seja, pois. E que may God bless America, porque se o fizer também nos abençoará certamente a todos nós.
Mas há uma nota final que não posso deixar de fazer. O simbolismo e dimensão da vitória de Obama trazem consigo um ónus de responsabilidade a que ele e a América não podem furtar-se. O tempo novo prometido é esperado por todos. Tanto na América como fora dela. Oxalá consiga a próxima administração americana corresponder ao clima de ruptura e esperança que Obama teve a arte de criar. Oxalá estejamos todos, americanos e não-americanos, à altura dos desafios que presentemente se nos colocam. E viva a Democracia do voto limpo, livre de coacções, isento de máculas.
Bernardino da Purificação

terça-feira, 4 de novembro de 2008

No entanto, ela move-se...

Quem se dá ao prazer de observar e comentar a política madeirense precisa às vezes de andar de lupa à procura de novidades. As coisas por cá movem-se lentamente. Apesar do frenesi da vozearia episódica. A despeito da roupagem nova com que se vão vestindo as coisas velhas.
Descontemos alguns pequenos episódios que emergem da espuma dos dias e nos dão a sensação de que, afinal, a política move-se. Se o fizermos, veremos que o resultado deste exercício de uma aritmética a todos os títulos fastidiosa, não será mais do que a constatação de que hoje, tal como ontem, exactamente como anteontem, e muito provavelmente como amanhã ou depois de amanhã, há linhas de continuidade e permanência que não mudam.
Ainda bem que assim é, dirão os conservadores no respaldo da grande maioria que têm. Nada melhor para a confiança do que o conforto da previsibilidade. É lamentável que assim seja, retorquirão os auto-denominados progressistas. Não há nada mais benéfico para um pântano do que a espessura viscosa das águas paradas. E entre uns e outros vai-se movendo o dr. Jardim, cem por cento fiel aos ensinamentos de Lampedusa. É preciso mudar sempre qualquer coisa para que tudo possa ficar mais ou menos na mesma. E como ele tem mudado as coisas! E como ele tem conseguido a proeza de fazer com que tudo vá estando na mesma!
Sem prejuízo do que precede, há duas notas que me ocorre fazer.
A primeira é a de que nunca como agora a oposição conseguiu fazer tanta mossa. Não vou ao exagero de sugerir que o PSD possa estar encurralado com a questão dos quinhentos milhões que se terão perdido da UE à conta da irresponsabilidade de reivindicar para a Madeira um PIB que todos sabemos irreal. Mas posso assegurar que não me lembro de alguma vez ter visto o partido do poder tão à defesa, tão exposto ao ataque político certeiro, tão vulnerável a uma crítica que toda a gente seja capaz de entender.
É claro que falta ainda muito para se perceber o impacto futuro deste pequeno milagre que agora se surpreende na política madeirense. É necessário esperar pelos efeitos. Do mesmo modo que é preciso verificar se a oposição (e, em particular, o PS) está em posição de continuar a embaraçar o poder da forma como neste caso tem feito. Aguardemos, pois. Porém, com a atenção que se deve dispensar aos momentos e factos susceptíveis de apressar o futuro.
Enquanto esperamos, permitam-me que sugira o acompanhamento de um folhetim que, pelos vistos, está já em curso. Refiro-me ao recrudescimento da querela entre o dr. Jardim e o DN. A coisa desta vez parece séria, independentemente de poder vir a acabar com mais um costumeiro armistício. Mas posso também jurar que nunca vi o dr. Jardim utilizar a linguagem que vem utilizando como forma de atingir o actual director do Diário de Notícias. Do mesmo modo que não me lembro de algum dia ter visto o dito cujo director ser tão frontal na resposta à incontinência presidencial. Pelos vistos, o tempo agora é diferente do das meias-verdades e das prosas às avessas de um passado não muito longínquo. Agora é a sério. E como a utilização perversa do JM para atingir o DN (por via, entre outros mimos, da prática de dumping na comercialização da publicidade) é coisa ainda bem viva, chamo a atenção para os próximos capítulos de uma novela que tem como protagonistas dois "queridos inimigos" novamente desavindos. É que às vezes o diabo tece-as. E até às querelas de trazer por casa se pode aplicar a máxima de que se sabe como começam, mas só no fim delas se pode saber como terminam.
Observemos, pois. Até porque, em bom rigor, nada mais poderemos fazer.
Bernardino da Purificação

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

A Constituição e a guerrilha

Como autonomista que me prezo de ser, li com a atenção possível o receituário prescrito pelo dr. Jardim no ultimo número do seu boletim partidário. Concordo com a generalidade das objecções que faz ao sistema que a actual Constituição cristaliza. E estou cem por cento de acordo com alguns dos caminhos alternativos que aponta. A razão é simples: tudo o que escreve o dr. Jardim tem como ponto de partida a rejeição desse anacronismo político que a Constituição designa por estado unitário.
Queira ou não queira o estado central, a verdade é que a construção e consolidação do projecto europeu reclama um aggiornamento dos processos de participação dos cidadãos desta casa comum que é a Europa. O que conduz inevitavelmente à consideração de que as regiões europeias têm um papel que já não se compadece com fórmulas políticas que tenham no seu centro exclusivo os estados centrais.
O que se passa, de facto, é que a denominada Europa dos Estados já não é mais do que um referencial político do passado. Se quisermos construir e sedimentar uma efectiva cidadania europeia, teremos de mudar o actual paradigma para um outro que afirme e execute, sem margem para tibiezas ou meias-tintas, o princípio da subsidiariedade e uma Europa de Regiões. Até lá, andaremos a navegar num mar de impasses, de equívocos, de anacronismos.
É verdade que a crise planetária actual é capaz de ter vindo em má altura para este desígnio de promoção e reforço do estatuto das comunidades regionais e das suas instituições políticas. Em alturas destas, as forças centrípetas e centralizadoras costumam acentuar-se no interior de cada estado. Não admira. Dada a sua condição de único e exclusivo detentor dos meios, só ele pode funcionar como chapéu de chuva protector das desgraças que nos possam vir a cair em cima. Mas isso não quer dizer que se deva adiar ou deixar cair o debate em torno da questão regional. Pelo contrário. Entendo que nestas alturas ele deve acentuar-se. Para memória futura. E para manter vivos objectivos de longo prazo que nem as crises devem fazer esquecer.
Dito isto, não posso passar ao lado de algumas considerações de carácter político. O dr. Jardim prometeu relançar este debate antes ainda da eclosão da crise. A sua preocupação não foi a de procurar combater as supracitadas forças centrípetas. Foi, isso sim, a de procurar deslocar o debate político regional para uma área que pouco ou nada tem que ver com os resultados concretos da sua governação.
Explico. Não é a Constituição a culpada da ausência de resultados visíveis no combate à pobreza. É a ausência de políticas sociais devidamente sustentadas e orientadas. Não é o centralismo que resta no texto constitucional que deve responder pelas dificuldades do nosso tecido empresarial. As contas devem ser pedidas às opções políticas do governo regional que sempre se traduziram pelo açambarcamento do crédito bancário disponível por parte do sector público. Não é na escassa afectação de verbas do PIDDAC para a Região Autónoma que reside a culpa de termos o custo de vida dos mais caros (se não mesmo o mais caro) do país. É na política de transportes, entre várias outras reguladoras da nossa vida económica, que deveremos tentar encontrar a culpa de nem sequer conseguirmos materializar de forma consistente a discriminação positiva que sempre merecemos por parte da União Europeia. Do mesmo modo, não é apenas ao aperto financeiro que nos restringe a capacidade de endividamento que devemos assacar a escassez de recursos para o investimento. É ao esbanjamento ciclópico que está à vista de todos que devemos pedir responsabilidades. Não é, em suma, por causa da Constituição que temos tanto insucesso escolar. Do mesmo modo que não é por causa do texto fundamental que a qualidade da nossa democracia deixa tanto a desejar; que a capacidade negocial entre o Funchal e Lisboa bateu completamente no fundo; que o amiguismo tem os seus arraiais escandalosamente assentados na nossa vida económica e social; que temos fama de ricos mas não passamos de uns tesos.
O dr. Jardim, não obstante tudo isto, prefere discutir a Constituição. É lá com ele. É pena é que não perceba que não pode pedir um dia mais competências para uma Assembleia Legislativa que sistematicamente desacredita nos dias restantes. Assim como é lamentável que não tenha ainda percebido que a revisão das constituições não se faz à pedrada mas sim em consenso.
Ou seja, o que é verdadeiramente lastimável é que o dr. Jardim não tenha ainda percebido que o aprofundamento da Autonomia não deve ficar refém dos seus caprichos ou da sua estratégia de confronto. A dialéctica política é apanágio da vida democrática. A tensão política é-lhe também inerente. A guerrilha política nada tem que ver com ela. Ora, é aqui que reside o nosso principal problema: o guerrilheiro Jardim continua a subjugar o político Jardim. E assim a governação vai andando a monte.
Bernardino da Purificação

sábado, 25 de outubro de 2008

A metáfora da Madeira Contemporânea

Um escaravelho! Uma praga de escaravelhos!
A verdade é que, de repente, a Madeira tornou-se um pequeno paraíso para bicharocos de espécies exóticas várias. Primeiro, foram os mosquitos. A contemporaneidade chegou com eles. O destino atlântico que sempre fomos começou a ceder o passo a uma tropicalidade irritante e sem ponta de sentido. Pouco depois, vieram lacraus, centopeias e outros animalescos quejandos. Chegaram embrulhados em areia. E foram-nos apresentados como efeitos secundários dessa coisa notável que é o progresso. Não nos disseram, é claro, que raio de progresso é esse que nos adultera a paisagem e rebenta a ecologia. Não precisaram. Do alto do seu voluntarismo, a um tempo idiota e soberbo, estão convencidos de que o progresso se basta e justifica a si próprio. Um dia, como é evidente, acabarão por descobrir, com o espanto que é próprio dos tolos, que as coisas não são bem assim. E agora, como se não bastassem os mosquitos e os lacraus, eis-nos confrontados com mais um sinal do exotismo sem freio que vem acompanhando as praias amarelas de recarga periódica, e as promenades apalmeiradas que nos homogeneizam e normalizam a frente-mar. Uma praga de escaravelhos às cavalitas da pressa de plantar palmeiras em tudo quanto é sítio! Era mesmo só o que nos faltava...
Não pretendo brincar com coisas sérias. Mas juro que não me lembro de ver coisas destas na Madeira Velha. E posso até garantir que nem a Madeira Nova produziu coisa semelhante. É verdade que esta última brincou um bocado com a solidez dos nossos solos, divertiu-se bastante a comprimir leitos de ribeiras, e rebolou-se de gozo a desviar cursos de água, à conta de dezenas de quilómetros de túneis. Mas foi preciso esperar por essa era notável de prosperidade e progresso, que é a Madeira Contemporânea, para se perceber em toda a sua plenitude o delírio de quem nos governa. Transformámo-nos num paraíso para os entomólogos. Não passamos agora de um insalubre pasto para hordas de insectos importados.
Exagero, gritarão os devotos dessa nova religião local que tem como sumo sacerdote o dr. Cunha das sociedades de desenvolvimento. Não há progresso sem efeitos perversos, dirão com fé. E só os reaccionários aceitam sacrificar as bênçãos tangíveis do dito cujo só para lhe fugir aos efeitos colaterais indesejados, hão-de certamente também argumentar. Di-lo-ão, é claro, no intervalo da comichão ou da pulverização do repelente. Ou então, para dar um toque feérico à coisa, dispará-lo-ão à braseira da incineração das palmeiras infestadas. O problema é que os agnósticos como eu são pouco permeáveis a semelhante argumentário. Porque entendemos que o desenvolvimento deve construir e não destruir. E porque temos a mania de pensar que quando há planeamento, estudo e cautela, não há efeitos bons nem efeitos maus. Há apenas efeitos. Que podem ser previstos. Que podem, portanto, ser controlados.
Uma porcaria de um escaravelho não merece a maçada deste escrito? Uma praga de mosquitos ou a singeleza de um lacrau também não? Depende do que estivermos a falar. Ora, o que nos diz esta execrável bicharada é que andam por aí uma forma errada e inculta de fazer política, e um modo imbecil e arrogante de construir o futuro. Se ao menos o repelente resolvesse isso também...
Bernardino da Purificação

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

O medo da paixão clubística

O representante político de duzentos e cinquenta mil accionistas resolveu dizer de sua justiça. A empresa de que somos todos sócios não acerta nas opções. O core business que era suposto que tivesse ocupa um lugar secundário nas preocupações da administração. E, em resultado disso, os desaires começam a ser mais do que muitos.
No caso, o dito representante é o dr. Jardim. Os accionistas somos nós, os contribuintes da Madeira. A empresa é o Marítimo. E a administração da coisa é aquela simpática malta que, por vontade expressa do mandatário do sócio pagante, alimenta a vaidade e os bolsos à custa dos impostos de todos e da paixão clubística de alguns.
Ora, pelos vistos, o dr. Jardim acaba de descobrir que a sua relação com o futebol profissional não é coisa que se recomende por muito mais tempo. Façamos um esforço e entendamos o facto. Essa relação só lhe serve se lhe puder render qualquer coisa. Mas como o futuro se afigura mais ou menos negro, a rendibilidade do investimento que faz com o dinheirito do zé pagode ameaça parecer nula.
Chamo a atenção para o verbo que utilizei. O dr. Jardim não ignora que o retorno da despesa que obriga o nosso erário a fazer com o futebol profissional é totalmente inexistente, absolutamente nulo. O seu problema é que agora, para além de ser, passou também a parecer. O que quer dizer que para além de nulo está agora a chegar ao ponto de lhe ser politicamente inconveniente.
Sabem. O dr. Jardim pertence à escola cínica da política. Se às aparências puder acrescentar resultados, óptimo, que assim todos lucram. Mas se os resultados se revelarem incompatíveis com as aparências, pois então que se lixem os ditos, que a sobrevivência política depende muito mais da subjectividade de quem vê do que da objectividade do que está à vista.
Façamos um pequeníssimo exercício. Todos os anos são descarregados na Madeira umas boas mãos cheias de jogadores de bola. Ninguém, em bom rigor, conhece os critérios de recrutamento. Do mesmo modo que ninguém conhece o saldo resultante das constantes idas e vindas desses aspirantes a profissionais de futebol. Diz quem sabe que esse movimento gera comissões mais ou menos avantajadas. Mas não há quem seja capaz de garantir que o Marítimo esteja a ganhar o que quer que seja com a prática continuada desse tipo de operações. Nem financeira, nem desportivamente. Ao ponto de se poder dizer, sem exagero, que as carradas de jogadores, que por cá arribam todos os anos, outra coisa não fazem que não seja a transferência de recursos financeiros que são nossos sabe-se lá para que destino.
Não obstante tudo isto, o dr. Jardim veio agora a público demarcar-se apenas da política desportiva posta em prática pelos gestores públicos que legalmente são os administradores do Marítimo. Pelos vistos, não se preocupa com a gestão financeira. Como se alguma empresa futebolística pudesse desenvolver uma política desportiva sólida assente numa base financeira pouco clara, gelatinosa, e eternamente dependente de recursos que não lhe pertencem, como são, no caso em apreço, os nossos queridos e suados impostos.
Eu não quero cometer a injustiça de pensar que o dr. Jardim não percebe que a aventura político-futebolística em que nos meteu tresanda a coisa pouco sã. O problema é que ao evitar essa injustiça arrisco-me a cair numa outra porventura ainda maior. Como é, por exemplo, a pouco simpática ideia de que a participação da Região na Marítimo SAD pode ter objectivos que pouco ou nada têm que ver com o desporto ou com o fomento da prática desportiva.
Dito isto, não posso deixar de acrescentar uma nota final. No fundo, para constatar a ausência de uma posição clara dos partidos da oposição sobre a matéria. É curto e vago arremeter de vez em quando contra o financiamento público do futebol profissional. Gostava de ver aplicada nesta questão a acutilância que todos revelam relativamente ao desvario despesista das sociedades ditas de desenvolvimento. Não é isso que ocorre, porém. Como se a paixão clubística lhes metesse medo. Ou como se o esbanjamento em obras inúteis não fosse tão condenável como outro esbanjamento qualquer.
Bernardino da Purificação

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

O tempo novo cada vez mais velho

Há uma espécie de regra não escrita da prática política que impõe aos governos a necessidade de renovarem periodicamente a legitimidade de que são portadores.
Não me refiro, como é evidente, à legitimidade formal que o estado de direito exige que tenham. Não há democracia sem eleições. Logo, não há governos democráticos sem a unção do voto popular. Mas como a democracia não termina nem se esgota no mero cumprimento dos seus próprios formalismos, não há chefe de governo democrático que não precise de mais qualquer coisa para se sentir permanentemente legitimado. A menos que se esteja nas tintas para os cidadãos que o elegeram.
Como já se percebeu, este qualquer coisa de que falo é o cuidado que têm os governantes de verdade de auscultarem em permanência os sinais dos tempos que passam. É verdade que, no nosso caso, se governa para quatro anos. Mas é igualmente verdade que os ciclo políticos nem sempre correspondem ao tempo de duração de uma legislatura. É por isso que qualquer sistema democrático salvaguarda a possibilidade de se poder interromper esses ciclos. E é por isso também que que os mecanismos informais de escrutínio da actividade governativa têm ganho, nos últimos anos, um lugar cada vez mais importante nas sociedades hipermediatizadas em que vivemos.
Em suma, para além da legitimidade formal que qualquer sistema reclama que tenham, os governantes necessitam do conforto e do amparo de uma outra. Há quem a designe por legitimidade de exercício. E, em termos práticos, não é mais do que a percepção clara de que, em todos os momentos da legislatura, as medidas de quem governa têm o aval e vão ao encontro das expectativas e necessidades dos governados.
Não há governo democrático que se permita dispensar esse aval. E isto é de tal modo verdade que por todo o lado vemos multiplicar os barómetros e os estudos de opinião. Do mesmo modo que é cada vez mais frequente a antecipação de eleições, tanto por iniciativa de quem governa, como em resultado de uma decisão nesse sentido por parte de quem tem o poder supremo de interromper os ciclos eleitorais. A demissão de Santana Lopes e a convocatória antecipada de eleições regionais na Madeira são exemplos recentes do que se acaba de dizer.
Porque já vai longo o intróito, passo já aos finalmentes. O que pretendo colocar sobre a mesa é uma questão muito concreta. A seguinte. Não havendo dúvidas de que o governo do dr. Jardim tem toda a legitimidade formal para se manter em funções, até que ponto tem actualmente o amparo da outra de que acima falei?
Como não estou na cabeça do dr. Jardim, desconheço por inteiro o que é que, sobre a matéria, sua excelência acha ou deixa de achar. Mas por analogia com o que se passou há um ano e pouco, atrevo-me a presumir o que é que ele deveria achar.
Explico. Por meras razões de interesse político pessoal, o dr. Jardim decidiu interromper a meio a última legislatura. Mas como era feio confessar o egoísmo da sua decisão, o presidente do governo resolveu oferecer como razão o entendimento de que a Madeira estava a ser estrangulada pelo Terreiro do Paço. De maneira que ele (pobre dele!), colocado entre a espada e a parede, não teve outro remédio se não optar galhardamente pela espada.
Os resultados da manobra são conhecidos. A mensagem foi convincente. E a Madeira em peso entronizou o seu excelso presidente, seguramente à espera de um novo tempo, de uma nova governação, de um novo modo de driblar as dificuldades. Debalde, como todos os dias se percebe. Porque o tempo continua exactamente o mesmo. Porque a governação mantém exactamente os mesmos traços e as mesmas caras. E porque as únicas coisas que todos vemos virtuosamente dribladas são as expectativas dos madeirenses.
Estarei a defender com isto uma nova ida às urnas antecipada? Podem crer que não, sem embargo de constatar que as presidenciais razões de há mais de um ano atrás continuam a ser, tanto no tom como na substância, invocadas até à náusea. Mas julgo que não exagero se me sentir no direito de exigir a quem me governa que tenha ao menos a decência de um gesto de refrescamento da sua legitimidade de exercício.
Eu sei que o dr. Jardim se diz avesso a remodelações. Isso não passa de fita, como se sabe, porque todos temos ainda presente o chuto no traseiro que um dia levaram os drs. Lélis e Gaudêncio (essa história, aliás, ainda está por contar em todos os seus deliciosos detalhes). Mas se a economia se afunda, se o desemprego sobe, se o desperdício está patente, se a desconfiança alastra, se a falta de um rumo é uma clara evidência, de que espera o presidente do Governo para emitir um sinal, por muito ténue que seja, de que, tal como há ano e pouco atrás, se preocupa com o futuro da Madeira e dos madeirenses? Ou será que não se preocupa? Ou será que para ele é indiferente que a política posta em prática pela equipa que o acompanha desde 2000 se tenha traduzido no imenso fracasso que já ninguém consegue esconder?
Como se imagina, as respostas cabem-lhe a ele. E mesmo que o não queira, elas serão dadas todos os dias. Se não em palavras, seguramente nas acções e omissões com que a sua cada vez mais notada falta de pachorra nos vier a brindar.
Bernardino da Purificação