quarta-feira, 30 de setembro de 2009

A verdade revelada

Com a paciência dos crentes, o país deu ao presidente da República o tempo que sua excelência entendeu que precisava. Com a inquietação de quem se encontra à beira do desconhecido, a nação preparou-se para a hora da revelação suprema. Terá sido, porém, com a indignação dos enganados que percebemos que alguém com responsabilidades de Estado tem andado entretido a brincar com coisas sérias; que é muito maior do que pensávamos o lado paranóico da novela que alguém urdiu em Belém; que esta gente não tem, em suma, estatura adequada e bastante para a função que o nosso voto lhe deu.
Não exagero se disser que isto chegou segunda-feira ao ponto do absurdo. O Palácio anunciou-nos uma comunicação solene do presidente da República. O que nos ofereceu, todavia, não passou de um abstruso monólogo de um comentador político de quarta categoria. Fizeram-nos crer que nos dariam a chave reveladora da trama fandanga que nos impingiram. Só nos deram, porém, um espectáculo confrangedor e piroso de um presidente insolitamente atreito a dúvidas pueris e estados de alma preocupantes. Corrijo. Mais do que ao ponto do absurdo, chegámos, isso sim, ao cume do patético.
E que dizer das dúvidas angustiadas de sua excelência? Será crime, perguntou torturado o nosso dubitativo presidente, desconfiar da putativa existência de conspirações, vigilâncias, olhos escondidos na sombra, ouvidos indiscretos à escuta, ou outras malfeitorias quejandas? Claro que não, senhor presidente. Tranquilize-se. Nada disso é crime. Tal como o não é o medo do escuro. Tal como o não são os terrores nocturnos das almas atormentadas. Peço-lhe, portanto, que resista à inquietação e combata a angústia. Duvide as vezes que quiser. E procure, faça o favor, todos os fantasmas que o delírio lhe quiser deparar. Vai ver que lhe faz bem. Convém é que se abstenha de amplificar suspeitas tolas, ainda que por interposta pessoa. E, já agora, procure não cair na tentação de mandar publicar, mesmo que à socapa, os juízos caluniosos a que possam conduzi-lo os sobressaltos do espírito. Sabe, isso sim já pode ser considerado crime. Mesmo que o titular da acção penal se esteja nas tintas, se calhar por comiseração, para as embrulhadas em que nos possam colocar as dúvidas lancinantes do nosso supremo magistrado. Ou que se continue a fazer de conta que nada de anormalmente grave aconteceu.
O país ensandeceu, vociferou o dr. Jardim. Então não é que desta vez o homem tem mesmo carradas de razão?!
Bernardino da Purificação

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Nem alternativa nem oposição

Os socialistas madeirenses lá continuam alegremente a caminho da irrelevância absoluta. Como parecem deliciados com a proeza, faço votos de que façam boa viagem. E porque quase sempre me doem as penas alheias (ai, este espírito cristão!), espero que vão leves e não desesperem: por este andar, a excursão não há-de ser nem pesada nem longa.
Palavra que tenho dificuldade em compreender tamanha demonstração de insensatez colectiva. Os maus resultados sucedem-se, com a mimosa particularidade de serem cada vez piores. A influência do partido vai-se esvaindo, como se a hemorragia não tivesse cura possível. E, o que é pior, a fronteira entre a seriedade e a anedota parece ter sido irremediavelmente ultrapassada. Não obstante, as suas principais figuras assobiam para o lado. Agem como se apenas se preocupassem em controlar os movimentos uns dos outros. E deixam o campo aberto para que Serrões, Gouveias e Cardosos (sempre sabiamente acolitados por excelentíssimas hordas de ajudantes dedicados) engalanem os currículos pessoais à custa da falência do partido em que por acaso militam. Em suma, um prodígio. De fraternidade política. De solidariedade partidária. De apego às causas que juram defender.
Manda a prudência que não avance sem um breve parêntesis. Não me incomoda rigorosamente nada que o PS continue a perder eleição atrás de eleição. As vitórias e as derrotas são a cara e a coroa das democracias. Mesmo das asfixiadas. O que me incomoda é a percepção de que a inércia do voto do povo soberano decorre também de uma preocupante ausência de alternativa. Como se vivêssemos em permanente clima de falta de comparência. Ou como se no arco da governação não houvesse mais do que um partido institucional, que nos mexicaniza a vida e sufoca a democracia, acrescido de uma cada vez mais apreciável dose de indigência e irresponsabilidade. É esse, de facto, o meu único cuidado. Ninguém nos oferece a possibilidade real de um dia sermos tentados a ensaiar caminhos alternativos. Andamos expropriados de escolhas. E isso, queiramos ou não, empobrece-nos a vida, as perspectivas, o futuro.
Não desvalorizo, podem crer, as subidas registadas por alguns partidos da oposição. Congratulo-os pelos ganhos. Até pelo quadro de dificuldades políticas em que têm de movimentar-se. Espero, no entanto, que se compreenda que há uma diferença substancial entre fazer oposição e ser alternativa. Ora, o problema deste PS é que já não consegue ser nem uma coisa nem outra.
Bernardino da Purificação

terça-feira, 22 de setembro de 2009

A culpa sistemática do sistema

Creio não estar a ser precipitado ou radical. Mas ninguém me tira da cabeça que Belém precisa de fazer muito mais do que mandar para o limbo do degredo protegido um assessor apanhado a esconder a mão. Um Lima no olho da rua, por mais desonesto e conspirador que tenha sido, não resolve o problema criado. E um palácio presidencial aparentemente expurgado da presença tenebrosa de um alegado produtor de inventonas não pode esperar que simplesmente esqueçamos a novela rasteira com que nos tem andado a distrair. Goste-se ou não da ideia, o presidente da República está objectivamente ligado ao facto político mais grave de que pode ter memória a democracia portuguesa. E deve por isso explicações ao país. Mesmo que não tenha absolutamente nada para nos dizer.
Não vou aqui repetir a bateria de argumentos que nos últimos dias traz sobressaltada a pátria. Não é preciso. Já toda a gente percebeu que o chefe de Estado não tem desculpa ou escapatória possível: se o governo o traz ilegalmente vigiado deveria ter sido pura e simplesmente demitido; se, ao invés, não passa tudo de uma acusação paranóica e destituída de fundamento, estamos em presença de uma inaceitável conspiração. Não obstante, passada a surpresa inicial e a indignação que se lhe seguiu, até parece que andamos todos unidos em benevolente esforço de contenção. Como se fosse coisa de somenos ter ao mais alto nível do Estado gente louca ou criminosa. Ou como se a presidência da República pudesse andar sem consequências na chafurdice da política de sarjeta.
Há, no entanto, coisas que quase me divertem. A prodigiosa singularidade de haver culpas sem culpados é uma delas. Outra é a notória atrapalhação com que os comentadores oficiais interpretam o guião dessa rábula indecente a que os cínicos dão o desgraçado nome de estratégia de controlo de danos. Para não falar, já se vê, de todas as manobras de diversão que, com notória desvergonha, procuram centrar a origem da trama o mais longe possível do palácio de Belém e respectivas adjacências. Ou na cavalheira atitude de prudente descaso com que a Procuradoria-Geral da República vem acompanhando semelhante festim.
Um arraial, em suma. De cinismo. De tibieza. No fundo, de mal disfarçada cumplicidade.
Sabem. Tenho para mim que desta vez a culpa é mesmo do sistema. Por ser capaz de albergar e deglutir conspirações sem sobressaltos tontos nem estados de alma escusados. E por permitir que, ao arrepio dos avisos da nossa história recente, a República teime em manter-se fiel a essa notável construção político-institucional que dá pelo nome de semi-presidencialismo. Se o sistema se lembrasse de que todos os presidentes eleitos por sufrágio directo e universal se dedicaram, em certo período dos respectivos mandatos, à patriótica tarefa de mandar abaixo os primeiros-ministros com quem coabitaram, certamente recomendaria uma mudança de rumo. Mas como, pelos vistos, o sistema é cego, surdo e mudo, vamos continuar a fazer de conta que Soares não dedicou o seu segundo mandato à meritória proeza de liquidar a maioria absoluta de Cavaco (reparem que nem preciso de recuar ao tempo de Eanes); que Sampaio não correu com Santana só para contentar uma ou duas tribos do centrão mais ou menos ululantes; e que o verdadeiro problema entre Sócrates e Cavaco não radica no confronto entre duas agendas e mundividências distintas a que alegremente demos igual legitimidade. Não obstante, ninguém se quer dar à maçada de pôr o dedo na ferida. Curioso.
Bernardino da Purificação