Como autonomista que me prezo de ser, li com a atenção possível o receituário prescrito pelo dr. Jardim no ultimo número do seu boletim partidário. Concordo com a generalidade das objecções que faz ao sistema que a actual Constituição cristaliza. E estou cem por cento de acordo com alguns dos caminhos alternativos que aponta. A razão é simples: tudo o que escreve o dr. Jardim tem como ponto de partida a rejeição desse anacronismo político que a Constituição designa por estado unitário.
Queira ou não queira o estado central, a verdade é que a construção e consolidação do projecto europeu reclama um aggiornamento dos processos de participação dos cidadãos desta casa comum que é a Europa. O que conduz inevitavelmente à consideração de que as regiões europeias têm um papel que já não se compadece com fórmulas políticas que tenham no seu centro exclusivo os estados centrais.
O que se passa, de facto, é que a denominada Europa dos Estados já não é mais do que um referencial político do passado. Se quisermos construir e sedimentar uma efectiva cidadania europeia, teremos de mudar o actual paradigma para um outro que afirme e execute, sem margem para tibiezas ou meias-tintas, o princípio da subsidiariedade e uma Europa de Regiões. Até lá, andaremos a navegar num mar de impasses, de equívocos, de anacronismos.
É verdade que a crise planetária actual é capaz de ter vindo em má altura para este desígnio de promoção e reforço do estatuto das comunidades regionais e das suas instituições políticas. Em alturas destas, as forças centrípetas e centralizadoras costumam acentuar-se no interior de cada estado. Não admira. Dada a sua condição de único e exclusivo detentor dos meios, só ele pode funcionar como chapéu de chuva protector das desgraças que nos possam vir a cair em cima. Mas isso não quer dizer que se deva adiar ou deixar cair o debate em torno da questão regional. Pelo contrário. Entendo que nestas alturas ele deve acentuar-se. Para memória futura. E para manter vivos objectivos de longo prazo que nem as crises devem fazer esquecer.
Dito isto, não posso passar ao lado de algumas considerações de carácter político. O dr. Jardim prometeu relançar este debate antes ainda da eclosão da crise. A sua preocupação não foi a de procurar combater as supracitadas forças centrípetas. Foi, isso sim, a de procurar deslocar o debate político regional para uma área que pouco ou nada tem que ver com os resultados concretos da sua governação.
Explico. Não é a Constituição a culpada da ausência de resultados visíveis no combate à pobreza. É a ausência de políticas sociais devidamente sustentadas e orientadas. Não é o centralismo que resta no texto constitucional que deve responder pelas dificuldades do nosso tecido empresarial. As contas devem ser pedidas às opções políticas do governo regional que sempre se traduziram pelo açambarcamento do crédito bancário disponível por parte do sector público. Não é na escassa afectação de verbas do PIDDAC para a Região Autónoma que reside a culpa de termos o custo de vida dos mais caros (se não mesmo o mais caro) do país. É na política de transportes, entre várias outras reguladoras da nossa vida económica, que deveremos tentar encontrar a culpa de nem sequer conseguirmos materializar de forma consistente a discriminação positiva que sempre merecemos por parte da União Europeia. Do mesmo modo, não é apenas ao aperto financeiro que nos restringe a capacidade de endividamento que devemos assacar a escassez de recursos para o investimento. É ao esbanjamento ciclópico que está à vista de todos que devemos pedir responsabilidades. Não é, em suma, por causa da Constituição que temos tanto insucesso escolar. Do mesmo modo que não é por causa do texto fundamental que a qualidade da nossa democracia deixa tanto a desejar; que a capacidade negocial entre o Funchal e Lisboa bateu completamente no fundo; que o amiguismo tem os seus arraiais escandalosamente assentados na nossa vida económica e social; que temos fama de ricos mas não passamos de uns tesos.
O dr. Jardim, não obstante tudo isto, prefere discutir a Constituição. É lá com ele. É pena é que não perceba que não pode pedir um dia mais competências para uma Assembleia Legislativa que sistematicamente desacredita nos dias restantes. Assim como é lamentável que não tenha ainda percebido que a revisão das constituições não se faz à pedrada mas sim em consenso.
Ou seja, o que é verdadeiramente lastimável é que o dr. Jardim não tenha ainda percebido que o aprofundamento da Autonomia não deve ficar refém dos seus caprichos ou da sua estratégia de confronto. A dialéctica política é apanágio da vida democrática. A tensão política é-lhe também inerente. A guerrilha política nada tem que ver com ela. Ora, é aqui que reside o nosso principal problema: o guerrilheiro Jardim continua a subjugar o político Jardim. E assim a governação vai andando a monte.
Bernardino da Purificação