terça-feira, 22 de setembro de 2009

A culpa sistemática do sistema

Creio não estar a ser precipitado ou radical. Mas ninguém me tira da cabeça que Belém precisa de fazer muito mais do que mandar para o limbo do degredo protegido um assessor apanhado a esconder a mão. Um Lima no olho da rua, por mais desonesto e conspirador que tenha sido, não resolve o problema criado. E um palácio presidencial aparentemente expurgado da presença tenebrosa de um alegado produtor de inventonas não pode esperar que simplesmente esqueçamos a novela rasteira com que nos tem andado a distrair. Goste-se ou não da ideia, o presidente da República está objectivamente ligado ao facto político mais grave de que pode ter memória a democracia portuguesa. E deve por isso explicações ao país. Mesmo que não tenha absolutamente nada para nos dizer.
Não vou aqui repetir a bateria de argumentos que nos últimos dias traz sobressaltada a pátria. Não é preciso. Já toda a gente percebeu que o chefe de Estado não tem desculpa ou escapatória possível: se o governo o traz ilegalmente vigiado deveria ter sido pura e simplesmente demitido; se, ao invés, não passa tudo de uma acusação paranóica e destituída de fundamento, estamos em presença de uma inaceitável conspiração. Não obstante, passada a surpresa inicial e a indignação que se lhe seguiu, até parece que andamos todos unidos em benevolente esforço de contenção. Como se fosse coisa de somenos ter ao mais alto nível do Estado gente louca ou criminosa. Ou como se a presidência da República pudesse andar sem consequências na chafurdice da política de sarjeta.
Há, no entanto, coisas que quase me divertem. A prodigiosa singularidade de haver culpas sem culpados é uma delas. Outra é a notória atrapalhação com que os comentadores oficiais interpretam o guião dessa rábula indecente a que os cínicos dão o desgraçado nome de estratégia de controlo de danos. Para não falar, já se vê, de todas as manobras de diversão que, com notória desvergonha, procuram centrar a origem da trama o mais longe possível do palácio de Belém e respectivas adjacências. Ou na cavalheira atitude de prudente descaso com que a Procuradoria-Geral da República vem acompanhando semelhante festim.
Um arraial, em suma. De cinismo. De tibieza. No fundo, de mal disfarçada cumplicidade.
Sabem. Tenho para mim que desta vez a culpa é mesmo do sistema. Por ser capaz de albergar e deglutir conspirações sem sobressaltos tontos nem estados de alma escusados. E por permitir que, ao arrepio dos avisos da nossa história recente, a República teime em manter-se fiel a essa notável construção político-institucional que dá pelo nome de semi-presidencialismo. Se o sistema se lembrasse de que todos os presidentes eleitos por sufrágio directo e universal se dedicaram, em certo período dos respectivos mandatos, à patriótica tarefa de mandar abaixo os primeiros-ministros com quem coabitaram, certamente recomendaria uma mudança de rumo. Mas como, pelos vistos, o sistema é cego, surdo e mudo, vamos continuar a fazer de conta que Soares não dedicou o seu segundo mandato à meritória proeza de liquidar a maioria absoluta de Cavaco (reparem que nem preciso de recuar ao tempo de Eanes); que Sampaio não correu com Santana só para contentar uma ou duas tribos do centrão mais ou menos ululantes; e que o verdadeiro problema entre Sócrates e Cavaco não radica no confronto entre duas agendas e mundividências distintas a que alegremente demos igual legitimidade. Não obstante, ninguém se quer dar à maçada de pôr o dedo na ferida. Curioso.
Bernardino da Purificação

Um comentário:

Arrastão disse...

Desculpem o abuso. Mas só para informar que o Arrastão está a fazer um inquérito às intensões de voto nas próximas autárquicas em 38 concelhos. Funchal é um deles. Se quiserem ajudar a divulgar... Obrigado.