domingo, 31 de agosto de 2008

Teoria do condicionamento

O juiz Baltasar Garzón anda metido em trabalhos. Meteu-se com a zona franca. O que quer dizer que se meteu com a Madeira. O que significa que se meteu com o dr. Jardim. Nada mais perigoso. Arrisca-se agora a levar com um processo judicial. Está na iminência de ser denunciado perante as instituições internacionais de justiça. Corre, enfim, o risco de provar a ira ofendida de sua excelência o nosso senhor presidente.
Se calhar, o juiz Garzón pensava que podia tratar o dr. Jardim como tratou o decrépito ex-ditador e já falecido marechal Pinochet. Pois enganou-se. O dr. Jardim está longe e bem longe da decrepitude. Ainda é vivo para sua e nossa alegria. E não é nenhum ex-ditador.
Troquemos então a história por miúdos.
Informa a última edição do Sol que o célebre magistrado judicial espanhol persegue actualmente um determinado ramo da máfia russa. Ao que parece, as diligências que já efectuou levaram-no até à zona franca da Madeira. De maneira que pediu às autoridades portuguesas licença para investigar as eventuais operações da dita máfia no off shore do nosso imenso orgulho e quase nenhum proveito. E aqui começaram as chatices. O dr. Jardim não gostou do abuso. Ficou furioso por lá fora não se ter ainda percebido que a Madeira não tem que prestar contas a ninguém. E, assim em jeito de final de conversa, foi advertindo que quem se mete com a zona franca leva.
Presumo que depois disto o juiz Baltazar Garzón há-de ter finalmente percebido que o alcance permitido das suas diligências pára na Ponta de São Lourenço e só é retomado para lá da Ponta do Pargo. Já não era sem tempo. Só foi pena ter sido preciso tirar do sério o nosso atento líder. Ainda por cima em tempo de férias. Francamente. Não havia necessidade...
É claro que a leitura da notícia do Sol não permite concluir que o magistrado espanhol esteja preocupado com a Madeira. Mas isso, claro, é um mero e insignificante pormenor. Porque, pelos vistos, qualquer criminoso que por cá passe goza daquela imunidade transitória que na Idade Média se concedia aos delinquentes em período de feira franca. Não se sabe por alma de quem. Mas goza. Pelo menos, a avaliar pela destemperada e imprudente posição do dr. Jardim.
Eu tenho para mim que a reacção do nosso presidente tem um certo quê de pavloviano. Fala-se da zona franca e ele saliva. Pronuncia-se a palavra Madeira e ele morde. Não passa de um reflexo, em suma. Porém, condicionado. Só gostava era de saber por quê e por quem.
Bernardino da Purificação

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

O planeamento e o progresso

Roberto Silva, presidente da Câmara do Porto Santo, tem um sonho. Não sei se cor-de-rosa ou apenas cor-de-laranja. Não sei se voluntarista se simplesmente disparatado.
Ele acha que o desenvolvimento da ilha só pode ser sustentado se houver uma rápida duplicação da população residente. E, em conformidade com tal entendimento, definiu como prioridade da próxima década a importação massiva de mão-de-obra.
O Porto Santo vai, pois, esforçar-se para atrair gente. E, a concretizar-se o plano, a visão mais ou menos nostálgica que todos temos deste pequeno paraíso atlântico estará a um pequeno passo de esfumar-se.
Devo dizer que também eu sou um devoto do desenvolvimento. Não há nada de que goste mais. Sobretudo se todos puderem ganhar alguma coisa com ele. Sucede, porém, que a palavra me incomoda quando não passa de um substantivo dito à toa. Quando isso acontece, o vocábulo assusta. Basta atentar nos pequenos, médios ou grandes disparates que em seu nome todos os dias se cometem. Na Madeira. No Porto Santo. No mundo.
Tenho de Roberto Silva uma impressão globalmente favorável. Não me parece que seja particularmente dado ao disparate. E, tirando um ou outro frete que lhe há-de manchar o currículo para o resto da vida, não o tenho visto incorrer mais vezes do que lhe tem sido exigido no pecado da insensatez. Perturbou-me por isso a leveza com que disse o que disse. Como se fosse a coisa mais natural e incontroversa do mundo. Ou como se não tivesse o dever de explicar tintim por tintim os contornos do seu magnífico plano.
Sendo ele um autarca experiente e sensato, há-de conseguir antecipar muito melhor do que nós os impactos tremendos na vida da ilha de uma eventual multiplicação por dois do número de residentes. Ele saberá com certeza que uma duplicação do número de moradias conduz à multiplicação dos problemas de saneamento básico. E muito melhor do que qualquer outro cidadão, ele há-de seguramente saber que a resolução dos dois citados problemas acarreta consigo uma significativa movimentação de gente, de máquinas, de terras, de materiais, coisa pouca, enfim, mas que poderá transformar a idílica paisagem porto-santense na imagem nada bucólica de um estaleiro de dimensões apreciáveis.
Mais. Porque conhece a burocracia pelo lado dos seus labirínticos e espessos corredores, Roberto Silva não há-de ignorar que os serviços técnicos e administrativos da Câmara a que preside dificilmente terão capacidade para despachar e acompanhar a preceito um tão grande volume de obras. Do mesmo modo, como ninguém como ele está em posição de imaginar a pressão que uma duplicação da população residente exercerá sobre os sistemas de produção e distribuição de energia eléctrica e de água potável, não creio que o assunto lhe possa ter igualmente escapado. Assim como estou seguro de que ele tem presente que dez mil almas colocam problemas aos sistemas de educação e de saúde a que os equipamentos actualmente existentes não serão capazes de responder.
Como certamente terão reparado, nem sequer falei das maçadas adicionais relacionadas com os transportes e com o abastecimento. Passei ao lado dos aborrecimentos decorrentes dessa coisa dispicienda que dá pelo nome de duplicação da produção de lixo. E o mesmo farei relativamente ao problema de segurança pública que há-de ser encaixar dez mil almas de proveniências, credos e culturas distintas na exiguidade de quarenta e tantos metros quadrados de superfície, dos quais só metade ou pouco mais serão úteis. E nada disso fiz pela razão crente, simples e cristalina de que imagino que Roberto Silva terá tido tudo isso na conta devida. E notem. Só falo da população residente. Nem sequer estou a considerar a duplicação sazonal dessas tais dez mil almas.
Insisto. O autarca sensato que Roberto Silva tem fama de ser sabe de tudo isto muito melhor do que eu. Há-de ter, estou certo disso, todas as respostas na ponta da língua para, com uma simples palavra, derreter as dúvidas imbecis que indigentes e simples mortais como este modestíssimo escrevinhador possam eventualmente levantar. Dirá que tudo o que atrás se disse quer dizer desenvolvimento e progresso. Há-de ter certamente a arte de provar, "por-á-mais-bê", que o ambiente (com letra maiúscula) da ilha há-de continuar, como deve, devidamente preservado. E há-de ter prontinhas para debitar todas as contas relacionadas com o aumento de despesa (subsídio de dupla insularidade devidamente multiplicado e ampliado) que os orçamentos da autarquia e da RAM terão naturalmente de suportar.
Porque tenho boa impressão a seu respeito (mesmo descontando os três ou quatro fretes de resultados mais ou menos grosseiros que possa ter feito a quem detém o poder de facto), sei que, se tivesse entendido fazê-lo, já nos teria elucidado a todos. Ainda assim, com a modéstia que gosto de pôr em cada letra que escrevo, permito-me deixar-lhe um conselho. Nunca tenha medo de dar esclarecimentos à malta cá de baixo. É bom anunciar intenções. É melhor ainda prometer desenvolvimento e riqueza. Mas olhe que os entrementes e caminhos do tal dito progresso não são coisa de que a gente aceite ficar alheados. Compreenda: trata-se do nosso futuro.
Bernardino da Purificação

terça-feira, 26 de agosto de 2008

Ponto de ordem

O dr. Carlos Pereira resolveu distinguir um dia destes o Terreiro da Luta. Estou-lhe duplamente grato. Por ser frequentador deste espaço de análise e comentário político. E por lhe ter dirigido algumas palavras simpáticas. Porém, ao lê-lo, percebi que era meu dever avançar três ou quatro notas de esclarecimento. Em nome do rigor. E em abono da transparência que nem a blogosfera pode dispensar.
Diz o deputado socialista que este é um blogue de autor anónimo. Engana-se. Bernardino da Purificação não é pseudónimo. É nome autêntico. No limite, seria eventualmente capaz de admitir que poderemos estar em presença de algo parecido com um heterónimo. Assim uma espécie de alter ego. Porém, acreditem. No caso vertente, os traços distintivos de cada uma dessas duas hipóteses não passam de minudências pseudo-identitárias que não aquecem nem arrefecem. Recomendo, pois, que nos bastemos todos com os elementos constantes do perfil que o blogue disponibiliza. São genuínos. E correspondem a uma personalidade concreta.
Outra nota. O dr. Carlos Pereira sugere que o suposto anonimato de que fala pode constituir um atestado do clima de medo que afasta a sociedade civil madeirense de uma participação cívica activa. Pensando bem, sou levado a concordar com a tese geral que defende. A Madeira vive de facto um ambiente que asfixia praticamente tudo o que se move do lado de lá das fronteiras da política oficial. Porém, admitido isso, devo recusar com toda a veemência a aplicação dos pressupostos dessa tese ao caso particular deste blogue.
Explico. O Terreiro da Luta não nasceu nem à sombra do medo nem a reboque de qualquer intenção conspirativa. Nasceu, podem crer, de um acto de liberdade. É rigorosamente aquilo que quis ser. Nem mais, nem menos. E nunca pretendeu ser coisa diferente. Não tem a pretensão de mudar o que quer que seja. Nem lhe passa pela cabeça que a política possa ser eficaz do lado de fora do quadro de mecanismos formais e informais que sustentam as democracias. Ainda assim, atreve-se a pensar que as ideias devem valer por si próprias. Independentemente de quem as produz. Não obstante o nome de quem as subscreve. É por isso, aliás, que aqui no Terreiro da Luta se tem como totalmente irrelevante essa coisa dos nomes próprios. É coisa que não nos interessa. Nem sequer para efeitos de reclamação de direitos de autor. Mas essa, como é evidente, é uma opção nossa. Aqui pretende-se que as ideias valham mais do que os sujeitos. Ou melhor, o que aqui se pretende é que as ideias possam ser os verdadeiros sujeitos.
É claro que sabemos que os entes que gostamos de pensar que as ideias acabam por ser não dispensam uma paternidade. Como todas as criaturas, também elas têm autor. Não surgem do nada. E são obviamente fruto das circunstâncias socioculturais de quem as produz. Todavia, reconheça-se: blogues de pai e mãe já há por aí os bastantes. Quase mais que muitos. Como se percebe, aliás, pelas interessantíssimas querelas a que diariamente assistimos, em que se discute quase nada do que se diz e demasiado as supostas ou reais idiossincrasias dos que se atrevem a dizer qualquer coisa. Acreditem. Às vezes, é assim que se matam as discussões. Decapita-se o autor para melhor se aniquilarem as ideias. E o que fica sempre depois disso é a normalização forçada do pensamento e a progressiva supressão do sentido crítico.
É por saber tudo isto que o Terreiro da Luta optou por ser o que é. Não foi forçado a nada. E só se sente constrangido pelo propósito de oferecer à discussão publica aquilo que se escreve e não a identidade ou supostas motivações de quem escreve. Não há medo de ninguém. Não há contas a saldar com ninguém. O que há é apenas o desejo de partilhar com quem quiser ler o resultado das observações que deste lado se fazem da política madeirense. É claro que assim haverá sempre alvos mais vezes colocados no ponto de mira. Mas esse é o preço que não podem deixar de pagar os que aceitam ser protagonistas.
Bernardino da Purificação

domingo, 24 de agosto de 2008

O estado da alma

Confesso que já me molesta comentar as palermices de que o dr. Cunha e Silva se alivia ao ritmo de duas vezes por mês na revista do DN. Não fosse ele quem é e as pérolas com que nos brinda não mereceriam sequer o tempo de uma leitura apressada. Mas como ele é o vice-presidente do governo, vale a pena mergulhar quinzenalmente na profundidade das suas confissões, na densidade inexistente dos seus pensamentos. Mesmo que a coisa enfade. Mesmo que a leitura às vezes exaspere.
Houve um tempo em que o dr. Cunha se limitava a citar as ideias de outrem. Só que, de repente, fosse por ter esgotado o livro de citações, fosse por ter sido tocado pelo pecado do atrevimento, fosse por ter perdido a capacidade de enxergar-se, o cavalheiro desatou a falar de si. Mandando recados mais ou menos herméticos para aqui e para ali. Contando banalidades que só por caridade cristã alguém faz o favor de publicar. Ocupando, enfim, de quinze em quinze dias, uma tribuna que de todo não justifica.
Insisto. Se o dr. Cunha não fosse um vice com pretensões a presidente, as patetices literárias que produz nem um sorriso amarelo haveriam de provocar. Só que para sua desgraça, ele é isso tudo. De maneira que, infelizmente para ele, a gente tem quase a obrigação de lê-lo. E, o que é pior, de comentá-lo.
A última croniqueta que lhe publicaram surpreendeu-me. Por um lado, revelou em todo o seu esplendor a indigência que o dito cujo passa a vida a tentar disfarçar. Mas, por outro, trouxe aos nossos olhos o adolescente atormentado que ainda lhe habita e agita o espírito. O escrito pregou-lhe uma partida, em suma. Traiu-o. Revelou-lhe o íntimo.
Num certo sentido, o arrazoado que hoje nos serviu em forma de papel de jornal constitui, em simultâneo, uma confissão e um exercício de catarse. Através dele, o dr. Cunha revelou que, apesar das responsabilidades que tem, é capaz de falar de coisas sérias com o ar brejeiro e alarve das conversas de taberna. Compreendo o fenómeno. Algum dia teria de acontecer. Afinal, ninguém é capaz de esconder a vida inteira o seu lado mais profundo, mais genuíno. Nem sequer o dr. Cunha e Silva.
Ficámos então a saber que o dr. Cunha gostaria que 1640 nunca tivesse acontecido. Ele não o diz assim, como é evidente. O político frontal que é, limita-se a insinuá-lo. Mas quem o lê percebe que há uma espécie de nostalgia ibérica a iluminar-lhe as meninges. Eu confesso que acho mal que o cavalheiro se dê ao atrevimento de escarnecer da independência alheia. Se não gosta do país a que pertence, tenha coragem e diga-o de uma vez. E, já agora, seja consequente e demita-se de um cargo que pertence ao ordenamento político-institucional do país a que, pelos vistos, não gosta de pertencer.
Devo confessar, aliás, que me merecem muito mais respeito (embora discorde deles) os independentistas assumidos da Madeira. Porque com esses não há nem tibiezas, nem ironias manhosas, nem meias tintas. São frontais. Não precisam de andar permanentemente a dizer o que pensam, mas eles sabem que a gente sabe o que eles pensam. E, o que é mais relevante para o caso, falam da independência da terra deles e não da independência do país que acham que é dos outros. Agora com vosselência é diferente. Anda por aí na sonsice e no bem-bom das mordomias que a constituição portuguesa lhe dá, até que um dia, totalmente a despropósito, desata a gemer súbitos suspiros, pelas esquinas que frequenta, pelos queridos espanhóis.
É claro que já muita gente sabe das lucrativas negociatas energéticas que vossência e alguns dos seus prósperos subordinados mantêm com o lado de lá da península Ibérica. Mas, com franqueza. Fazer disso critério de escolha de uma pátria é reduzir o sentimento de pertença que ninguém dispensa ao pulsar de uma conta bancária. Ora isso não é bonito. Ao ponto, acredite, de até o castelhano dispor de uma palavra pouco digna para traduzir a ideia de mercantilização da pertença e dos afectos.
Mas o que mais me impressionou na prosa que fez o favor de nos servir foi outra coisa. Mais pesada. Porventura, mais reveladora. Vosselência revelou que foi hóspede na casa de seus pais. Não sei se o fez com a leviandade que já lhe vai sendo habitual, ou se se limitou a exprimir a densa amargura que do fundo da sua alma brota. Juro que fiquei chocado. Por ter enfim percebido que a vida lhe tem sido madrasta. E por ter verificado que o meu ilustre amigo (permita-me que o trate assim) se cansou de disfarçar o indisfarçável. Vossência não se sentia em casa na casa de seus pais. Sentia-se um estranho. Um hóspede. Um só. Nem é preciso ser psiquiatra ou psicólogo para perceber que a palavra que usou é todo um diagnóstico da alma. Aceite por isso, dr. Cunha, os protestos da minha solidariedade. Pode crer que agora até já percebo os problemas de carácter que lhe apontam. Podia era canalizá-los e esconjurá-los de outra forma.
Bernardino da Purificação

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Uma oportunidade perdida

Esta é decididamente uma terra de doidos. A propósito de pretensas efemérides que não querem dizer coisa nenhuma, é capaz de se gastar este mundo e o outro. Quando é relevante aquilo que se comemora, não conseguimos ir além da piroseira dos programas pífios. Concordo com o dr. Jardim. Tá tudo louco.
Não há muito tempo, o dr. Cunha e Silva entendeu que podia dar largas à megalomania que todos lhe reconhecemos. Cheio de vento por ter enfim chegado à governação, resolveu engendrar um ano de festarolas. O tempo era de vacas gorduchas. De maneira que, a propósito de coisa nenhuma, uns quantos privilegiados funchalenses puderam aliviar as suas desconhecidas inquietações melómanas com o dinheiro do erário.
Diz quem sabe que a factura foi elevada. Não admira. Um Carreras ou uma Diana Krall são nomes sonantes e, em consequência, luxos caros. Não obstante, cá os tivemos, entre outros, a peso de ouro e a propósito de uma fraude. Disseram-nos que a Europa nos tinha distinguido com um galardão inexistente. Afinal, do que se tratou foi apenas ter-nos cabido a vez de podermos fazer qualquer coisa para mostrarmos o que somos às restantes quinhentas ou seiscentas regiões europeias. Como um dia acontecerá ao Algarve ou a Trás-os-Montes. À Andaluzia ou às Astúrias. À Alsácia ou à Bretanha.
É claro que, no fim de contas, não nos mostrámos a ninguém. Preferimos andar inebriados com uma distinção que não existiu. E optámos pelo esbanjamento numa festança injustificada. O dr. Cunha gastando o nosso dinheiro na sua dispendiosa propaganda. E a cidade alinhando na coisa a reboque do provincianismo que havia acabado de assentar arraiais no poder da Região.
Consta que o Tribunal de Contas (essa tenebrosa força de bloqueio com que o centralismo nos quer controlar os gastos) chegou a escrutinar e a criticar o vice-presidencial arraial. Mas como a vergonha é reconhecidamente um bem escasso, o facto caiu depressa no esquecimento. Pelo menos, até ao próximo embuste.
Longe de mim qualquer intenção de apelar à despesa desbragada. Porém, não consigo deixar de pensar que a soma avultada que o dr. Cunha gastou nos seus classistas delírios musicais nos está agora a fazer falta.
Repare-se. O Funchal faz quinhentos anos. Quem sabe um mínimo de História sabe com certeza que a data não é exclusivamente nossa. Pertence ao país. E é parte integrante do património da Europa. É nossa. Mas é pertença igualmente do espaço cultural em que nos integramos. Não obstante, ninguém parece dar grande importância a isso. É pena. Estamos a perder uma oportunidade. Não de entrarmos em festarolas eufóricas para exclusivo consumo interno. Mas sim de revisitarmos o lugar que tivemos no processo de afirmação da Europa no mundo. E não seria difícil, estou em crer, obter de Bruxelas o envolvimento e os fundos necessários para uma comemoração a preceito. Bastaria talvez um pouco de ousadia mais um módico q.b. do relevo que se deve dar à dimensão cultural da acção política. Tudo isto a par, como é evidente, da ausência das costumeiras tricas pequeninas com que uns quantos nos pretendem fazer mais pequenos do que somos.
Mas, o que é que se há-de fazer?! É a isto que estamos sujeitos...!!!

Bernardino da Purificação

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

O primeiro partido regional

Uma vez que a season está mesmo silly, não há outro remédio senão comentar aquela fantástica ideia de formação de um novo partido político com que o dr. Jardim pretendeu captar a atenção da classe política nacional.
Está claro que o dr. Jardim não quis mais do que isso. Pelo menos nesta altura do campeonato. Mas correm o risco de uma inesperada surpresa todos os que tenham precipitadamente decidido dar o assunto por encerrado. Nem tudo o que o dr. Jardim diz deve ser tido como manobra de contra-informação. Até porque é sabido que ele já vai sendo vítima do seu próprio subconsciente.
Leve-se, pois, meio a sério meio a brincar a putativa intenção do dr. Jardim. Na realidade, ele não quer propriamente um novo partido. Mas ninguém tenha dúvidas de que ele está disposto a tudo para, no mínimo dos mínimos, conquistar para o PSD-Madeira que lidera o máximo de autonomia que ainda for possível imaginar.
É verdade que, como já vai acontecendo com demasiada frequência, ninguém lhe ligou patavina. Nem no rectângulo, como gosta de dizer, nem na quinta onde dita as regras. De lá não veio qualquer eco que se ouvisse. E de cá, a única reacção pronta que registei foi a do fidelíssimo Luís Filipe Malheiro que se demarcou prontamente da coisa. Não obstante, acreditem. É prematuro encomendar um epitáfio sumário ao tal partido federalista de que falou o dr. Jardim. E parece-me francamente redutor imaginar que a única intenção de tão excêntrica proposta tenha sido a de sobressaltar o remanso bi-maternal que bucolicamente embala a dra. Ferreira Leite e o seu o primeiro neto.
Não o digo, podem crer, por simpatizar com a ideia de um partido que tenha na sua matriz identitária uma ideia federalista. É verdade que gosto da ideia - já vai sendo tempo de se olhar para a descentralização do país sem complexos nem tabus. Mas não é isso que me faz pensar que se deve dar a atenção q.b. a esta primeira manobra estival do dr. Jardim. É, acreditem, outra coisa. É, por exemplo, ter em conta que o líder regional do PSD anda a braços com um projecto de revisão constitucional visando o alargamento das competências legislativas autonómicas. E é também ter presente o que disse recentemente o conselheiro Diniz em entrevista ao Sol.
Ora, disse o senhor conselheiro que já a ninguém repugna a ideia de que possam existir partidos regionais. Por causa de outras coisas que também disse, ninguém quis olhar para a ex-ministerial sentença com olhos de ver. No entanto, ela está lá. Como prova de que o ex-senhor ministro sabe que, não tarda nada, o tema há-de subir à ribalta política. E como inapagável testemunho de que, no fim de contas, sua excelência é tão cúmplice do dr. Jardim que até se presta a abrir caminho às suas ideias.
É claro que posso estar errado. Isto de tentar encontrar um fio condutor no discurso e nas manobras por vezes erráticas do dr. Jardim não é tarefa fácil. Mas, para já, ninguém me tira da mente que o presidente dos laranjas de cá o que pretende é tão só que a direcção dos laranjas de lá aceite incluir a ideia de um país federal no conjunto dos seus princípios programáticos. Seja pela via directa de uma improvável conversão ao federalismo. Seja pela via negociada de uma ainda mais ampla autonomia do PSD-Madeira. E se porventura tudo isso falhar, restará sempre ao dr. Jardim a possibilidade constitucional de regionalizar de vez o partido de que é presidente. Não será assim, senhor conselheiro?
Bernardino da Purificação

domingo, 17 de agosto de 2008

A oposição e o discurso político

Devo confessar que tenho poucas certezas relativamente ao tema que hoje trago. Como sei que a política não dispensa as emoções, apesar de reclamar permanentemente a intervenção da razão, sou levado a pensar que há determinadas escolhas estratégicas que só serão plenamente compreendidas por quem tem que tomá-las. Mas como também sei que a política é assunto demasiado sério para poder ser deixado à mercê dos políticos, considero ter o direito de sobre ela exprimir as opiniões que, em cada momento, a minha consciência e a compreensão que possa ter dos factos me ditem.
Não passo, em suma, em matéria de política, de um mero espectador interessado e atento. Que procura compreender as dificuldades de quem optou por dar o corpo ao manifesto. Mas que convive mal com a indigência dos que enveredam pela política só porque lhes falta um mais proveitoso ou lucrativo emprego.
O que penso da política, em suma, é que ela é uma exigência e não um privilégio. Para quem está no poder. Mas também para quem escolhe o caminho da oposição.
É verdade que os primeiros têm mais responsabilidades do que os outros. São eles que gerem a coisa pública. Mas isso não isenta a oposição nem do dever de fiscalizar com seriedade a acção de quem governa, nem da obrigação de apontar caminhos alternativos.
É assim que entendo as coisas. Mesmo sabendo que há-de ser incomparavelmente mais cómodo observar e comentar do que andar lá com a mão na massa. E mesmo admitindo que a política possa ter razões que a razão não consiga apreender imediatamente.
Feito o intróito, passo ao que venho. Como se tem visto, a oposição política na Madeira tem vindo a reduzir-se à denúncia. Falta qualquer coisa, mas acho bem. Ninguém deve pactuar nem com a ilegalidade nem com a imoralidade dos negócios pouco claros. Muito menos quem tem a responsabilidade de fazer oposição.
Porém, dito isto, não consigo deixar de pensar que até a denúncia política há-de ter exigências. No mínimo, deve ser credível e ter o apoio dos factos. Confundi-la com a maledicência pura e simples é, para além de intelectualmente desonesto, um mau serviço que se faz à necessidade de dar da nossa vida pública uma imagem de coisa sã.
O que se tem observado, no entanto, é que se acusa a torto e a direito com a ideia de que um dia se há-de acertar. E tem-se levado para o discurso político o falatório e os dichotes que toda a gente sabe que circulam nas mesas do café. Ora, convenhamos que isso é pouco, eventualmente criminoso, potencialmente contraproducente.
Não é aos partidos da oposição que cabe a responsabilidade de dissecar um a um os indícios de coisa suja que todos os dias vemos acumular. Essa responsabilidade cabe à Justiça. E todos nós, políticos ou não, temos o cívico dever de encaminhar as suspeitas que fundadamente possamos ter para as instâncias de investigação. Só que aquilo a que temos vindo a assistir começa a assumir foros de deriva irresponsável onde parece que vale tudo. Porque todos os dias se dizem coisas que depois não têm o encaminhamento devido. E porque quase todos os dias vemos dirigentes da oposição condenados pelos tribunais por não conseguirem provar as acusações que passam a vida a fazer.
Acredito que muitas dessas condenações possam ter muito que se lhes diga. E sou até capaz de admitir que a muitas das acusações só falta mesmo a prova que os políticos não têm por lhes faltarem a vocação e os meios, mas que uma justiça diligente talvez conseguisse facilmente obter. Mas isso não desculpabiliza a irresponsabilidade da acusação a torto e a direito e a pretexto de tudo e de nada, sob pena de um dia se banalizar tanto a denúncia como a prática denunciada.
Volto ao princípio. É fácil falar na confortável condição de simples espectador. Mas, com franqueza. Acho que já vai sendo tempo de a oposição descobrir a arte de poupar-se a si própria ao descrédito das acusações que não consegue provar. Sob pena de se entregar alegremente nas mãos de quem possa ter a arte de agir sem escrúpulo e sem rasto concludente.
Bernardino da Purificação

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

A mãe de todas as culpas

E pronto. Quem conhece o dr. Jardim de certeza que percebeu o sinal. O presidente anda furibundo com as notícias desagradáveis sobre o Marítimo. Aquela coisa do genro ter sido constituído arguido está-lhe atravessada. E como quer arranjar um pé para pegar com os administradores da agremiação, resolveu passar ao ataque.
Porque estamos ainda no defeso, não seria de bom tom arremeter já pelo lado das contratações e das tácticas. Assim, à falta de melhor tema, ei-lo a entrar pelo lado da designação que há-de ter o estádio que nos vai consumir alguns nada escassos milhões de euros. Nada, em suma, que não se pudesse prever.
Diz sua excelência que não gosta da palavra arena. Compreendo-o. Eu também não, e disso dei conta na altura devida. Só que, tratando-se do dr. Jardim, tenho muitas dúvidas de que ele não simpatize de facto com as ressonâncias bélicas, quase épicas, da designação anunciada já lá vão umas duas ou três semanas.
Como ele próprio tanto gosta heroicamente de dizer, não há nada que mais agrade ao dr. Jardim do que uma pitada q.b. de cheiro a pólvora. Assim, temos de convir que a palavra arena, descontando, já se vê, a parolice pseudo-guerreira de que é portadora, até parece ter sido pensada à medida do gosto de sua excelência. Aliás, o longo silêncio presidencial que se seguiu ao anúncio do provável nome do estádio, pareceu constituir um sinal inequívoco do seu presidencial assentimento. Só que, como atrás do tempo, tempo vem, o que parecia ser verdade há quinze dias atrás, passou a ser mentira duas semanas depois. De maneira que o presidente-Pereira mais os seus ilustres pares estão agora confrontados com a ingrata tarefa de terem de explicar aos seus prosélitos que nem no nome do estádio são capazes de mandar. É o que dá oferecer um clube com história ao caprichoso oportunismo de quem manda.
Mas continuemos. Temos então que o dr. Jardim acaba de anunciar em primeira página de dois jornais que não gosta do nome aventado pelo sócio-Pereira. Repare-se. Não o disse em privado. Nem sequer, note-se bem, quando pela primeira vez lho indicaram. Nada disso. Preferiu dizê-lo agora porque queria dizer qualquer coisa e não tinha nada ainda que dissesse.
Dirão os crentes que sua excelência gosta de fazer números destes só para animar o Verão e para afirmar a sua autoridade. Mas eu, que sou céptico e politicamente agnóstico, direi coisa diferente. Porque acho que conheço a peça. E porque já aprendi a antecipar-lhe os tiques.
Ora, acontece, e aqui retomo a ideia inicial da prosa de hoje, que o dr. Jardim anda pelos cabelos com os cavalheiros que o expuseram, expondo-lhe a família, a dores de cabeça escusadas com a justiça. Não é nada, é claro, que ele não consiga resolver, como aliás um dia se há-de verificar. Só que não havia necessidade de abrir a porta ao falatório. É este e não a justiça que o incomoda. Melhor ou pior, a justiça controla-se. O falatório não. Sabe-se sempre como começa. Mas nunca se sabe nem como acaba nem que danos provoca pelo caminho. O que quer dizer que o presidente-Pereira é culpado. Não dessas coisas miúdas que dão pelo nome de evasão fiscal e branqueamento de capitais. Mas sim dessa falta sem nome que consiste em ter permitido que o nome do genro do dr. Jardim ande por aí em desagradáveis notícias de jornal. De modos que vai agora ter de pagar por isso.
Preparemo-nos, pois, para um folhetim político-futebolístico estival com sede no porto-santense bar do Henrique. A operação de desgaste da administração da SAD do Marítimo está já em curso. E ainda que o pretexto do fogacho inicial dessa operação seja menos que pífio, vale a pena ficarmos à espera das cenas dos próximos capítulos. Porque a coisa promete, acreditem. Ainda que só valha o que possam valer os seus protagonistas.
Bernardino da Purificação

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Negócios públicos feitos em privado

O dr. Jardim garante que nenhuma parcela da praia do Porto Santo há-de ser um dia privatizada.
Corrijo. Não se limita a garantir. Jura a pés juntos naquele jeito que tem para dizer coisas definitivas.
Acontece, porém, que todos conhecemos o valor das coisas definitivas do dr. Jardim. Há trinta anos que as ouvimos. E há trinta anos que as vemos sistematicamente alteradas ou esquecidas ao sabor das circunstâncias ou dos interesses. De maneira que sua excelência não levará a mal que relativizemos a veemência que gosta de pôr nas palavras. Em bom rigor, ela é muito mais uma questão de forma do que de substância.
A sentença do senhor presidente relaciona-se com as informações que por aí circulam segundo as quais um naco de praia do Porto Santo terá sido concessionada ao grupo Pestana. Mas, a bem dizer, essa relação é pouco menos que remota.
Explico. Quem não quer desconversar e tem respeito pelos cidadãos que o elegem, responde directamente ao conteúdo concreto das perguntas que lhe são feitas. Só que neste caso o dr. Jardim desconversou. Perguntaram-lhe que raio de negócio foi esse que levou à concessão de uns bons metros quadrados do nosso areal porto-santense ao grupo Pestana. Mas ele, escorregadio, marimbou-se para a questão. Ou por esta ser incómoda. Ou por ser isso que fazem os políticos a sério. Então, vá de arriar a citada sentença, a qual, bem vistas as coisas, não responde a coisa nenhuma.
Vamos lá a ver. É evidente que a praia do Porto Santo nunca será alienada. Nem no todo. Nem em parte. Aliás, mesmo que o quisesse fazer, o governo a que sua excelência preside não dispõe dos instrumentos legais que lhe permitissem tão criminoso devaneio. Mas há uma questão que permanece sem resposta. Há uma porção de praia que terá sido alegadamente concessionada. E todos nós sabemos disso porque o próprio grupo Pestana o diz sob a forma de placas colocadas à frente do hotel que construiu na chamada ilha dourada. Ora, acontece que a opinião pública não foi informada do negócio. Não só lhe desconhece os termos, como lhe ignora por completo os fundamentos. O que quer dizer, que a coisa terá sido negociada à socapa.
Temos assim, não um, mas três problemas: a concessão que o grupo Pestana jura que lhe foi feita; o segredo que a rodeou; e, agora mais recentemente, a desconversa do senhor presidente do governo. Convenhamos que não é coisa pouca. E não custa reconhecer que quando se juntam concessões às escondidas e conversas da treta que nada explicam a gente tem o direito, e até o dever, de desconfiar.
Como não sou fundamentalista, mesmo tratando-se do Porto Santo, até sou capaz de admitir que pode ser preciso dar qualquer coisa em troca de investimentos que dinamizem a economia e tragam novos empregos. Não concordo é que essas trocas e baldrocas se façam no segredo dos gabinetes. Porque só se faz à socapa o que se tem medo de fazer às claras. E porque o segredo só pode ser a alma dos negócios particulares. Ora, nunca é demais lembrar que este é público e bem público. Apesar de continuar propositada e anti-democraticamente privado. Por que será?
Bernardino da Purificação

domingo, 10 de agosto de 2008

Parcerias público-privadas

Uma vez que tenho família, compreendo e presumo que o cidadão Alberto João Jardim não tenha gostado de saber que um dos seus genros é arguido no processo de averiguações que envolve o Clube Sport Marítimo. E porque acredito que ele seja uma pessoa normal, daquelas para quem a família é intocável, confesso que sinto alguma dificuldade em trazer o assunto à baila. Acontece, porém, que o cidadão Jardim é também o presidente do governo regional. E ocorre igualmente que o dito cidadão-presidente cometeu a imprudência de expor a família ao escrutínio político e à voragem da curiosidade jornalística. Errou, como é evidente. Mesmo que a impunidade e os nossos brandos costumes venham a relevar a confusão entre os negócios da política e os assuntos de família que sua excelência, no mínimo, aceitou.
Como é evidente, não acho que a condição de membro da família de quem detém o poder deva funcionar como circunstância condicionadora das escolhas profissionais que os familiares dos políticos queiram fazer. Caso tal coisa acontecesse, estaríamos perante uma imoralidade sem nome. Mas como em tudo há-de haver uma medida de bom senso, considero que ninguém tem o direito de assentar a carreira profissional na boleia do poder que os familiares possam deter, sobretudo se essa carreira passar pelo sector público ou equiparado. Ora, parece evidente que estamos perante um caso assim.
Peço desculpa se estiver a ser injusto. Mas, por muita qualidade profissional que o prof. David Gomes possa ter, alguém acredita que o Marítimo se lembraria dele se porventura não constasse do currículo que apresenta a qualidade distintiva de genro do presidente do governo? Sinceramente, presumo que não. E será que alguém duvida de que a ideia de convidá-lo para um lugar na equipa técnica do CSM só ganhou peso e foi concretizada por ser portadora da vantagem de atar o presidente do governo, pelo lado dos afectos, à política de gestão e de contratações da SAD do Marítimo? Com franqueza, julgo que também não. De maneira que a direcção do Marítimo, o prof. David Gomes e o dr. Jardim são objectivamente cúmplices da promiscuidade público-privada que, num dado momento da sua vida profissional, levou o genro do presidente do governo a experimentar a bem remunerada carreira de técnico de futebol.
Dado esse passo, impunha-se porém que todos tivessem a noção das regras da prudência. Não com o objectivo de disfarçar o que já não podia ser disfarçado. Mas sim com o propósito expresso de evitar embaraços futuros. E isso seria o mínimo que se lhes poderia exigir. Mas como mandaram a prudência às malvas, as más notícias começaram a chegar. E um dia destes acabarão todos por perceber que não é boa ideia misturar os negócios da política, e a política dos negócios, com os laços da família.
Certo. A condição de arguido num processo de presumível evasão fiscal e branqueamento de capitais não tem qualquer valor de condenação. A verdade, porém, é que o estigma está lá. E ainda que o dr. Jardim possa ser um mero sujeito passivo desta história, já vai sendo tempo de começar a acordar para a vida. Mas isso, claro, é lá com ele. Cada um deve comportar-se de acordo com os ditames da consciência que tiver. Não deve é esquecer-se que há sempre um preço a pagar pelas opções que se tomam. Sobretudo quando se está na política.
Bernardino da Purificação

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

A justiça zarolha

Comove-me a abnegação da justiça justiceira que desatou a retirar mandatos a figuras da oposição. Pelos vistos, é literalmente cega. Para nosso conforto. E para glorioso descanso de todos os que ela não consegue enxergar.
Vamos por partes. Este texto não constitui qualquer manifestação de solidariedade para com os autarcas socialistas funchalenses e do Porto Moniz que perderam os mandatos que tinham por não respeitarem determinadas normas imperativas. Quem aceita estar na política tem a obrigação de aceitar igualmente todo o quadro de regras que o Estado tem como boas no sentido de fiscalizar certos aspectos da conduta dos eleitos.
Do mesmo modo, estas linhas não pretendem discutir nem a natureza nem a substância desse conjunto de regras. Pedir a um político que entregue atempadamente e sem omissões a sua declaração de património e rendimentos não é nada que possa ser tido à conta de qualquer exagero. Pelo contrário. É o mínimo que o estado pode exigir a todos os que tenham uma função da representação e de participação no processo decisório dos órgãos que regulam a nossa vida colectiva.
Tenho, porém, um mas para exprimir. Incomoda-me que a justiça seja, já não digo cega, mas zarolha. Que só vê para um lado e se está nas tintas para o outro. Mesmo que esse outro seja o que é habitado pelos que detêm nas suas mãos o poder de direito e de facto.
Explico. Li há três ou quatro anos atrás que um proeminente governante da nossa querida terra tinha apresentado tarde e a más horas a sua declaração de património e rendimentos. Pior. Li também que essa declaração continha omissões grosseiras e aparentemente propositadas. Mas pude ler igualmente que o solícito ministério público, que recentemente arremeteu contra autarcas sem funções executivas, nada resolveu fazer contra o dito governante, apesar das funções de elevada responsabilidade que tinha e tem na política da terra. Ao que sei, não o ouviu, pelo menos formalmente, embora admita que o possa ter escutado na repimpa de um drink em qualquer lugar de conforto da nossa cidade. E como tive ocasião de ler também, nem sequer o constituiu arguido no decorrer do simulacro de inquérito a que então se procedeu. De maneira que o governante em questão passou completamente seco por entre as pingas de chuva que a certa altura sobre ele ameaçaram cair. Apesar da sua volumetria proeminente. E a despeito das várias omissões deliberadamente cometidas. Isto é, ninguém lhe beliscou o mandato.
Agora, como se tem visto, a coisa vem sendo diferente. Já vai numa mão cheia o numero de mandatos perdidos. Só que nisto tudo há uma curiosa coincidência: os alvos pertencem todos à oposição. E assim a justiça que deveria ser cega arrisca-se a ficar simplesmente vesga.
Bernardino da Purificação

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Fumos e outros devaneios

Primeiro o registo de interesses. Fumei furiosamente durante duas ou três décadas. E abandonei o vício quando muito bem quis e me apeteceu. Não precisei de nenhuma lei para me impor a abstinência. O que quer dizer que não precisei que o estado decidisse por mim o que só a mim dizia respeito. Fui um fumador inveterado. Sou agora um aliviado abstinente. Porém, agora como no passado orgulho-me de ser um liberal puro e duro em matéria de costumes. Não permito que o estado me substitua nas decisões de ordem pessoal que eu quiser tomar.
Dito isto, devo confessar que sou solidário tanto com os que fumam como com os que não fumam. Acho que os primeiros devem poder fazê-lo porque sim. Considero que os segundos têm o direito de respirar um ar despoluído. Onde é que deve entrar o estado? Aqui precisamente: na zona em que os dois direitos podem e devem harmonizar-se.
Ignoro quantas pessoas fumam neste país. E nem sequer me interessa quanto é que o estado cobra a título de imposto sobre o consumo do tabaco, a despeito de imaginar que a expressão numérica da taxa pode eventualmente oferecer-nos uma amostra devidamente quantificada da hipocrisia tabágica estatal. Porém, hipocrisias à parte, não posso deixar de pensar que o estado só deveria ir neste caso até ao ponto em que os direitos de uns começassem a conflituar com os direitos dos outros.
Eu sei que é mais fácil esgrimir princípios do que descer ao terreno das coisas práticas. Não obstante, não consigo deixar de pensar que o proibicionismo por decreto é coisa detestável. Mas isto, insisto, há-de ser a minha costela liberal a protestar.
O que quero dizer, afinal é tão só o seguinte: acho ridículo, estapafúrdio, e tendencialmente fascista, que o estado central considere que tem o direito de regular o ritmo a que os fumadores devem envenenar os seus próprios pulmões; do mesmo modo, acho risível, disparatado, e sucedanemente totalitário, que o direito regional considere ter o direito de avocar a prerrogativa de se opor ao proibicionismo estatal, até porque um disparate nunca deve curar-se com outro disparate. De modos que, bem vistas as coisas, são todos iguais: enquanto uns querem controlar os nossos vícios assim, os outros pretendem controlá-los assado. Mas em todos eles a palavra controlo está lá a atestar a deriva higienista em que a política se transformou.
Divirto-me, pois, com os cuidados sanitários dos nossos legisladores. Do mesmo modo que me diverte o zelo do órgão fiscalizador da legalidade das nossas leis. Porque não consigo deixar de pensar que o estado preocupa-se com o tabaco que uns quantos fumam enquanto o país se revolve numa crise complicada. Porque não consigo deixar de espantar-me com o facto de a Madeira governamental se rebelar contra uma lei idiota sem cuidar de reparar que incorre em igual idiotia. E porque não consigo reprimir um frémito de espanto e de gozo perante o zelo escrupuloso de uns quantos vetustos senhores de toga envergada que consomem dias inteiros dos nossos impostos à caça de uma inconstitucionalidadezita qualquer na lei regional sobre o consumo do tabaco em locais públicos. Valha-nos Nossa Senhora, bem como todos os santos do bom senso que, pelos vistos, andam zangados com os legisladores da República e da Região!
Bernardino da Purificação

Post Scriptum
Prometo voltar ao tema. Por agora fica esta nota que um comentário recente me suscita. O dr. Cunha, mais a seita que o rodeia, vai construir uma dessalinizadora exclusiva do golfe do Porto Santo. Com ele é assim. As coisas que faz são um fiasco do ponto de vista dos resultados financeiros, e ele, intrépido, tenta mascarar a coisa com mais umas pazadas de dinheiro em cima. Se o dito fosse dele, o problema não nos diria respeito. Mas não é. E alguém tem de começar a pôr cobro ao desvario. Senão, qualquer dia, o cavalheiro sai pela direita baixa e deixa um monte de dívidas aos outros. Sugere-se, pois, uma investigação. É que não acredito que estejamos só perante um caso de incompetência e megalómano devaneio. Se calhar é mais qualquer coisa.

terça-feira, 5 de agosto de 2008

A indignação do dr. Brazão

O dr. Brazão de Castro está indignado. Compreendo-o. Acusam-no de andar a mentir aos madeirenses sobre o desemprego. Que injustiça! Logo a ele, que nada pode fazer para criar um posto de trabalho sequer.
Eu, no seu lugar, não estaria indignado. Estaria literalmente furioso. Em primeiro lugar, porque quem o critica parece não perceber a verdadeira natureza das suas funções. Depois, porque é manifestamente injusto pedir contas a quem não tem contas para dar. Só injusto? Não. É bem pior. É pura maldade.
Repare-se. Quem não conheça a terra e olhe para os cartazes que inundam a cidade fica com certeza com a ideia de que é por culpa do dr. Brazão que o desemprego aumenta. Como se fosse ele o responsável pela economia que soluça. Como se fosse ele o culpado de haver parques industriais às moscas. Como se fosse sua a responsabilidade de ninguém conhecer uma política estruturada de apoio e estímulo à internacionalização das empresas madeirenses. Como se se devesse a uma qualquer omissão da sua parte a total ausência de uma política fiscal capaz de levar os empresários a pensar que, afinal, vale a pena investir na Madeira e criar empregos madeirenses. Como, se o fiasco da zona franca industrial fosse responsabilidade sua. Como se fosse, enfim, da sua lavra a estratégia de consumir recursos e mais recursos em obras públicas de utilidade duvidosa.
Ora, o Bloco de Esquerda há-de saber que nada disto pode ser creditado ou debitado na conta do dr. Brazão de Castro. Porém, mesmo assim não hesitou um segundo. Ofereceu à fúria da urbe a cara de nariz acrescentado do secretário regional dos Recursos Humanos. Esquecendo deliberadamente os verdadeiros culpados da definição de uma política que se apresenta como regional ou quase estadual, mas que não vai além dos contornos paroquiais e autárquicos que tem. Daí a indignação do dr. Brazão de Castro. Justificada, insisto. Porque se há quem não tenha a mais leve culpa do que quer que seja é, podem crer, o dr. Brazão de Castro. Aliás, como é que pode ter culpa quem nem sabe sequer o que é que faz ou em que é que manda...?!
Mas, há mais. Como é bom de ver, um responsável pela propaganda faz propaganda. Informar é uma coisa. Fazer propaganda é outra. Assim, como é que se há-de responsabilizar quem se limita a fazer o que lhe é pedido? Não é isto maldoso, injusto, indecente? Não custa reconhecer que sim. De maneira que, dr. Brazão, estou consigo. Processe-os. Leve-os a tribunal. Não é justo que se ande a chamar mentiroso a quem nunca disse, afinal, que estava a falar a verdade. Ainda por cima, acumulando a acusação ao poster de um acrescentado nariz de pinóquio. O nariz chegava, senhores do Bloco de Esquerda. Por isso agora vão ter de pagá-las. Viva a justiça.
Bernardino da Purificação

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

O couraçado à deriva

Como se esperava, o dr. Jardim saltou de imediato a terreiro. Conseguiu, é certo, sufocar os sinais exteriores e habitualmente histriónicos da sua irritação. Mas ficou-se por aí o seu esforço de contenção, que ninguém pode pedir a Jardim que deixe de ser Jardim.
O caso, já se vê, tem que ver com as suspeitas de que o Marítimo SAD anda a contas com a suspeita da prática de fraude fiscal. O dr. Jardim foi instado a pronunciar-se sobre o assunto. E, como é seu hábito, em vez de manifestar desconforto relativamente ao teor das notícias, resolveu arremeter contra os divulgadores dessas mesmas notícias. Nada, enfim, que não se esperasse já.
Quer dizer. Para o dr. Jardim, quem dá mau nome à terra e merece censura não é quem é suspeito de ter prevaricado. É quem se limita a dar conta dessa suspeita. O problema, para ele, não é o teor a mensagem. É, sim, a identidade do mensageiro. Clássico. Atitudes destas fortalecem o espírito de seita. Vão perguntar à Cosa Nostra e logo verão se não é assim.
É claro que, como todos nós, o dr. Jardim também erra. E, neste caso concreto, sua excelência cometeu o erro de se esquecer de mandar toda a gente ficar calada. Se calhar pensou que os seus administradores da direcção regional do futebol profissional, que é o Marítimo SAD, haveriam de saber que, até nestes casos, o segredo é a alma do negócio. Enganou-se, pois então. Porque o que eles sabem mesmo é que é preciso salvar a pele. Mesmo que tenham de se entalar alegremente uns aos outros.
Não fosse esta uma terra sui generis e certamente que as revelações de Carlos Pereira haveriam de ter consequências. E houvesse entre nós uma oposição a sério, diligente e atenta, mais uma comunicação social livre e descomprometida, e logo veríamos se as revelações do presidente Pereira (o que chefia a direcção regional atrás referida) se perderiam no esquecimento.
O que foi que ele disse? Só e apenas isto. Quem trata das contas da SAD é um tal Rui Nóbrega. Quem o nomeou administrador foi o Governo Regional. E quem faz a contabilidade da SAD é uma empresa pertencente a um familiar do dito cujo. Pouca coisa, como se vê.
Carlos Pereira não ignora que estas suas revelações não o desresponsabilizam. O mais que fazem é dar conta de cumplicidades políticas ao mais alto nível do governo da Região. Mas, se fosse mais atento, saberia com certeza que um administrador nomeado pelo governo é um gestor público. Saberia também que os gestores públicos estão obrigados por lei a um conjunto de deveres, entre os quais se inclui a obrigação de se nortearem sempre pelo respeito e salvaguarda do interesse público. Saberia ainda que os gestores públicos estão legalmente inibidos de contratarem serviços a empresas de familiares. E haveria de saber igualmente que um gestor público tem o dever de exercer as suas funções em regime de exclusividade.
Carlos Pereira saberia tudo isto, se porventura o respeito da lei fosse coisa que o motivasse. Assim como o saberia a oposição. Do mesmo modo que o saberia a comunicação dita social.
Ora, o que é que desde há muito se sabe, a propósito do gestor público Rui Nóbrega? Pertence ao quadro da Direcção de Finanças. Administra a SAD do Marítimo e, de caminho, contrata os serviços de uma empresa de contabilidade do irmão. Acumula as funções na SAD com as de gestor igualmente público do Jornal da Madeira. Sendo que aqui os serviços contratados são os de fornecimento e manutenção de ares condicionados a uma empresa de um outro dos seus manos, se calhar por causa dos calores. E apesar de a lei vedar aos gestores públicos a utilização de despesas confidenciais e de outros expedientes similares, li algures que o cavalheiro em questão, por sinal esposo de uma por certo meritíssima juíza, utilizava, ou utiliza ainda, um cartão de crédito e de débito do mais que falido e agonizante jornal.
Mas numa coisa Carlos Pereira tem razão. O dr. Jardim não pode fazer de conta de que não sabe nada disto. Não só sabe, como apadrinha esta teia que começa agora a ser puxada. De maneira que estará sempre condenado a arremeter contra os mensageiros na tentativa desesperada de blindar o sistema. O pior é que o dito já mete água por tudo quanto é sítio.
Bernardino da Purificação

sábado, 2 de agosto de 2008

O Marítimo, a SAD e os impostos

O Sol informa que hoje que o Marítimo anda a contas com a suspeita da prática de fraude fiscal. Diz também que os seus principais dirigentes terão sido constituídos arguidos. E, não tarda nada, os jornais e as fontes do costume hão-de explicar-nos que a Madeira e o clube que o governo e os nossos impostos suportam estão a ser vítimas de uma tenebrosa cabala. Entretanto, a bola há-de continuar a ser jogada. O CSM vai continuar a delapidar o dinheiro que não tem em negócios pouco claros. O cobrador-mor dos nossos impostos há-de continuar a exibir-se no palanque onde se elevam os notáveis do partido do poder, como voltou a acontecer no recente Chão da Lagoa. A direcção de Finanças vai continuar a ter gente sua destacada no Almirante Reis para tratar dos impostos verde-rubros - tanto dos que são pagos, como dos que, pelos vistos, fogem sabe-se lá para onde. Muitos jogadores, alguns treinadores e uns quantos empresários (da bola, mas também de diversas outras áreas de negócio) vão continuar a desfrutar do paraíso paisagístico, financeiro e fiscal em que a Madeira para eles se tornou. E, contra todas as regras da prudência, da seriedade e da decência, o "nosso" governo há-de continuar a fazer-nos cúmplices à força da negociata pouco clara e escondida que um dia acabará por nos envergonhar a todos.
Não sei de que lado está a razão nesta batalha jurídica que a justiça portuguesa trava com o CSM. A questão é importante, sem dúvida. Mas de momento interessa pouco. Só sei que o presidente da SAD do Marítimo admitiu saber das últimas evoluções que o caso registou. Sei também, porque isso está escrito, que um administrador da dita sociedade jurou a pés juntos que nada sabe sobre o assunto. E acho que sei igualmente que o referido administrador é um indivíduo que pertence ao quadro da Direcção de Contribuições e Impostos, mas que anda há anos requisitado pelo "nosso" governo para assentar praça onde os seus serviços possam dar mais jeito - já andou por aí a "oferecer" e a prestar bem pagos serviços a empresários com problemas fiscais; tem arraiais assentados no CSM para o que der e vier, depois da fuga do histórico Carvalhinho; e foi o gestor nomeado pelo vice-presidente do governo para fechar o agónico Jornal da Madeira, onde se mantém num curioso e nunca escrutinado processo de acumulação de funções.
Devo dizer, no entanto, que nesta fase me preocupam muito mais as aparências do que os factos demonstrados. Porque, por culpa exclusiva do governo, a Região está metida até ao pescoço na embrulhada que o Sol relata hoje. Porque na política (e é disto que se trata) o ónus da prova não pertence a quem acusa, mas impende como obrigação aos que se põem a jeito das acusações. E porque, como há mais de dois mil anos se diz, a mulher de César, mais do que ser, deve ter sempre o cuidado de parecer séria. Ora, como se sabe que o CSM é, desde há muito, uma das amantes de luxo do dr. Jardim, nos termos da sua elegante e sempre mimosa adjectivação, cabe aos dois enamorados o dever do escrúpulo e da prudência. Não apenas por eles. Mas por todos nós. Porque são nossos os recursos financeiros que movimentam. E porque, nessa medida, agem ambos como se o fizessem por nossa conta, mesmo que passem a vida a fingir o contrário.
A verdade que me importa nesta altura é só uma. Nenhum governo democrático do mundo obriga uma Região ou um país a ser sócio de um clube de futebol. Mas, se porventura o fizesse, qualquer governo democrático do mundo, ao mais pequeno sinal de coisa suspeita, haveria de patrocinar um inquérito interno que lhe permitisse apurar as linhas de conduta dos administradores que tivesse nomeado. Na Madeira, no entanto, é diferente. Como ao dr. Jardim tanto se lhe dá como se lhe deu, ninguém há-de pedir contas a ninguém. E quando, ou se, um dia houver acusações e gente pronunciada, lá veremos o nosso presidente em mais uma batalha contra as forças de ocupação e repressão colonial que não nos deixam viver como muito bem queremos e entendemos. Isto é, sem regras. Na mais completa bagunça. E nas margens, ou para lá delas, da legalidade. Até porque o primeiro mandamento da autonomia jardinista diz claramente que as culpas e os culpados, quaisquer que elas ou eles sejam, estão sempre do lado de lá da barricada.
Bernardino da Purificação

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

Uma querela chamada Autonomia

Tenho sentimentos contraditórios relativamente à comunicação feita ontem ao país pelo presidente da República. Tal como a generalidade dos portugueses, sinto que o Palácio de Belém andou a brincar com as minhas expectativas durante vinte e quatro horas. Tenho dúvidas de que a substância do tema justificasse o formalismo de uma comunicação à pátria. E faz-me alguma urticária que tão solene recurso tenha sido accionado a pretexto de aspectos laterais e meramente adjectivos da Autonomia.
Dito isto, sou tentado a concordar com a leitura política e jurídico-institucional que levou Cavaco Silva a reagir como reagiu. É verdade que o raciocínio ontem expresso tem a filigrana que faz as delícias dos verdadeiros iniciados. E é igualmente verdade que a subtileza mais ou menos hermética de que é portador só pode contribuir para que nos sintamos literalmente esmagados com a agudeza e profundidade que também há-de ter. Porém, visto agora com o distanciamento que fica sempre depois da frustração assentar, não custa perceber que Cavaco tem razão. Num país política e institucionalmente estabilizado, não se toca no quadro de poderes do presidente da República através de uma lei ordinária. E num país de figurino semi-presidencial, não se beliscam por essa via nem a autonomia dos órgãos de Estado, nem os necessários equilíbrios entre os órgãos de soberania, por mais unanimidade que a Assembleia da República em sua defesa possa exibir. Quem quiser fazê-lo, pois que o faça no contexto de um processo de revisão constitucional. Nunca por via de um processo legislativo comum.
Conceda-se, pois, razão ao presidente. Pelo menos, nas alegações jurídico-institucionais que avançou. Só que por esclarecer permanecem ainda as suas motivações políticas. Porquê uma comunicação ao país e não apenas uma mensagem à Assembleia da República? O que levou o presidente a sentir a necessidade de marcar uma tão forte posição? Que braço de ferro foi esse, lá do lado de trás dos bastidores da política nacional, que levou o presidente da República a tão grande e inesperado murro em cima da mesa? Provavelmente, haveremos de ter as respostas todas um dia destes. Só que, entretanto, a especulação há-de correr mais ou menos solta. E isso, convenhamos, não é bom para o país.
Ainda assim, insisto. Como não creio que se estivesse perante a iminência de qualquer golpe de estado constitucional, e como não acredito que a unidade da pátria estivesse comprometida, parece-me que a coisa se poderia ter resolvido de outra forma. Sem o tremendismo de uma comunicação solene aos portugueses. E sem o ambiente de quase alarme social que o seu anúncio provocou. Mas, enfim. Cavaco e os seus conselheiros lá saberão com que linhas se hão-de coser.
Finalizo com a concretização de uma outra nota no início enunciada. O que há-de ficar desta querela na impressão da opinião pública é que a Autonomia voltou a dar problemas. Ora, isso não só é injusto, como é manifestamente perigoso. Se a questão das autonomias insulares fosse sempre tratada com a dignidade política, institucional e constitucional que o Estado e as populações da Madeira e dos Açores exigem e merecem, nunca ninguém se atreveria a servir-se dela como arma de arremesso. O problema é que, no mais das vezes, o tema é glosado de forma rasteira e ocasionalmente boçal. Como voltou a ser no Chão da Lagoa. E como será sempre que políticos com pouco escrúpulo institucional e democrático resolvam fazer dele uma trincheira política sem outro préstimo que não seja o de lhes suportar a carreira. Mas isso, pelos vistos, é coisa com a qual vamos ter conviver por mais alguns anos.
Bernardino da Purificação