sexta-feira, 1 de agosto de 2008

Uma querela chamada Autonomia

Tenho sentimentos contraditórios relativamente à comunicação feita ontem ao país pelo presidente da República. Tal como a generalidade dos portugueses, sinto que o Palácio de Belém andou a brincar com as minhas expectativas durante vinte e quatro horas. Tenho dúvidas de que a substância do tema justificasse o formalismo de uma comunicação à pátria. E faz-me alguma urticária que tão solene recurso tenha sido accionado a pretexto de aspectos laterais e meramente adjectivos da Autonomia.
Dito isto, sou tentado a concordar com a leitura política e jurídico-institucional que levou Cavaco Silva a reagir como reagiu. É verdade que o raciocínio ontem expresso tem a filigrana que faz as delícias dos verdadeiros iniciados. E é igualmente verdade que a subtileza mais ou menos hermética de que é portador só pode contribuir para que nos sintamos literalmente esmagados com a agudeza e profundidade que também há-de ter. Porém, visto agora com o distanciamento que fica sempre depois da frustração assentar, não custa perceber que Cavaco tem razão. Num país política e institucionalmente estabilizado, não se toca no quadro de poderes do presidente da República através de uma lei ordinária. E num país de figurino semi-presidencial, não se beliscam por essa via nem a autonomia dos órgãos de Estado, nem os necessários equilíbrios entre os órgãos de soberania, por mais unanimidade que a Assembleia da República em sua defesa possa exibir. Quem quiser fazê-lo, pois que o faça no contexto de um processo de revisão constitucional. Nunca por via de um processo legislativo comum.
Conceda-se, pois, razão ao presidente. Pelo menos, nas alegações jurídico-institucionais que avançou. Só que por esclarecer permanecem ainda as suas motivações políticas. Porquê uma comunicação ao país e não apenas uma mensagem à Assembleia da República? O que levou o presidente a sentir a necessidade de marcar uma tão forte posição? Que braço de ferro foi esse, lá do lado de trás dos bastidores da política nacional, que levou o presidente da República a tão grande e inesperado murro em cima da mesa? Provavelmente, haveremos de ter as respostas todas um dia destes. Só que, entretanto, a especulação há-de correr mais ou menos solta. E isso, convenhamos, não é bom para o país.
Ainda assim, insisto. Como não creio que se estivesse perante a iminência de qualquer golpe de estado constitucional, e como não acredito que a unidade da pátria estivesse comprometida, parece-me que a coisa se poderia ter resolvido de outra forma. Sem o tremendismo de uma comunicação solene aos portugueses. E sem o ambiente de quase alarme social que o seu anúncio provocou. Mas, enfim. Cavaco e os seus conselheiros lá saberão com que linhas se hão-de coser.
Finalizo com a concretização de uma outra nota no início enunciada. O que há-de ficar desta querela na impressão da opinião pública é que a Autonomia voltou a dar problemas. Ora, isso não só é injusto, como é manifestamente perigoso. Se a questão das autonomias insulares fosse sempre tratada com a dignidade política, institucional e constitucional que o Estado e as populações da Madeira e dos Açores exigem e merecem, nunca ninguém se atreveria a servir-se dela como arma de arremesso. O problema é que, no mais das vezes, o tema é glosado de forma rasteira e ocasionalmente boçal. Como voltou a ser no Chão da Lagoa. E como será sempre que políticos com pouco escrúpulo institucional e democrático resolvam fazer dele uma trincheira política sem outro préstimo que não seja o de lhes suportar a carreira. Mas isso, pelos vistos, é coisa com a qual vamos ter conviver por mais alguns anos.
Bernardino da Purificação

Um comentário:

amsf disse...

Afinal o "nosso" Presidente que foi muito tolerante na sua visita à Madeira resolveu agora puxar pelas rédeas da autonomia açoreana! Parece-me que esta reacção desmedida foi um chamar a atenção da criança (Açores) pare impedir que o adulto (Madeira)tente fazer o mesmo!