segunda-feira, 30 de junho de 2008

A ditadura do gosto e a democracia do senso

Gosto da ordem. Prefiro-a, de longe, à bagunça premeditada ou à desordem organizada. E, como certamente acontece com praticamente toda a gente, faço questão de sublinhar que me agrada particularmente saber que as instituições democráticas funcionam, e que, mais do que isso, se dão ao respeito e são respeitadas.
Abomino, porém, que a ordem se pratique à martelada ou se imponha pela via da força. E detesto saber que uma instituição qualquer possa dar-se ao desplante de pensar que consegue o respeito dos cidadãos que serve sem curar de se dar previamente ao respeito.
Falo do parlamento madeirense, pois então. Porque, sem surpresa, fiquei a saber hoje que, por obra e graça do PSD e do PP, a polícia poderá passar a entrar na Assembleia para pôr na ordem os senhores deputados que se portam mal. Sendo que o critério de aferição das boas maneiras parlamentares repousa no arbítrio de sua excelência o senhor presidente da Assembleia Legislativa, o tal que é eleito anualmente por ordem expressa, e às vezes explícita, do excelentíssimo senhor presidente do governo regional.
Ou seja, o regime acaba de dar mostras de que entende que a censura política já não é suficiente para se condenar a indigência atávica ou premeditada de alguns deputados mais radicais. Não. Agora é necessária também a intervenção das forças da ordem. E amanhã, quem sabe, há-de ser preciso levar a tribunal aqueles que ousarem transgredir as regras que em cada momento possam dar jeito à maioria que nos manda.
Quer dizer: a corporação dos senhores deputados foi capaz de engendrar para si própria um sistema de imunidades absolutamente imoral. Mas quando lhe aparece pela frente alguém com falta de jeito e ausência de pachorra para actuar de acordo com os pactos corporativos que os nossos representantes entre si estabelecem, aí soam de imediato os alarmes. E o resultado é o que atrás se descreveu: a ordem à paulada, seja pela via da intervenção da polícia, seja pela tentativa de criminalização da conduta política pura de gosto duvidoso.
Todos sabemos que este entendimento proto-fascista decorre do tal incidente do relógio de cozinha protagonizado pelo senhor deputado do PND. O problema é que nenhum de nós sabe, nem nós nem os cavalheiros que dizem que nos representam, que tipo de condutas em concreto poderão merecer no futuro a mimosa intervenção da polícia de segurança pública. E isso é preocupante. Porque na falta de um rol de condutas proscritas ou a proscrever (cuja extensão só poderia ser equivalente ao delírio de quem queira dar-se ao favor de imaginá-lo), o que acabará por prevalecer há-de ser sempre a soberana vontade de quem estiver a dirigir os trabalhos parlamentares. E isso, reconheça-se, não deixa de ser politicamente inquietante e, em consequência, democraticamente intolerável.
Mas, enfim. A oposição está a partir de agora refém dos humores de uma maioria agora ampliada por via da solícita adesivagem do PP. E eu estou à vontade para dizê-lo, até porque não me coibi de aqui criticar certas condutas políticas. Como? Dizem-me que ninguém é refém dos humores, mas sim, e só, do bom senso? Mas como é que pode ter bom senso quem não é capaz de revelar primeiro um simples módico do dito (democrático, entenda-se)?
Bernardino da Purificação

sexta-feira, 27 de junho de 2008

Tempo novo com políticos velhos

Regressado há dias de mais uma viagem a Bruxelas, o dr. Jardim disse desta vez ao que foi. Fez bem. E como há dias registei criticamente a costumeira ausência de informações sobre a natureza e propósitos das suas constantes idas e vindas da capital política da UE, manda a justiça que registe agora o contrário.
Volto a sublinhar que me importa pouco o que possa fazer o cidadão Jardim nas suas quinzenais excursões europeias. Mas interessa-me vivamente aquilo que possa mover em cada uma delas o político Jardim, que, não por acaso, é presidente do governo regional da Madeira. Porque a democracia faculta aos cidadãos o direito de escrutinarem os actos dos seus representantes políticos. E, correlativamente, porque impõe também aos ditos representantes o dever de se darem ao escrutínio dos seus representados. Tal direito e tal dever foram desta vez exercitados. Congratulemo-nos com isso.
Explicou o dr. Jardim que foi a Bruxelas defender a criação de um fórum de participação, no quadro da União Europeia, para as regiões dotadas de autonomia política. Concordo em absoluto. Considero que não faz o mínimo sentido, e já aqui o escrevi, que regiões dotadas de capacidade legislativa partilhem com os municípios o mesmo espaço de representação institucional. Enquanto essa entorse ao sistema de representação não for resolvida no quadro institucional europeu nunca se poderá falar de uma efectiva Europa de cidadãos. E isso, no limite, põe em causa a democraticidade dos processos de decisão da União.
O dr. Jardim defendeu também desta vez que as verbas dos programas específicos de apoio às regiões insulares devem ser canalizados directamente para os cofres dos governos regionais, sem qualquer prévia passagem pelo Tesouro dos estados centrais. Estou novamente de acordo. Porém, antes disso, o que gostava de ver discutida era a possibilidade de as regiões participarem de uma forma activa e institucionalmente vinculativa (e não apenas consultiva, como até agora acontece, ainda por cima no local errado) na definição e desenho das políticas regionais da União Europeia. Seja no contexto nacional. Seja no europeu. Só que ao dr. Jardim interessa mais, pelos vistos, a expressão pecuniária e material dessas políticas. Como estou certo, aliás, que é assim que vêem também a questão os restantes partidos políticos portugueses do arco europeu e constitucional.
Lamento que assim seja. Porque enquanto se colocar a contabilidade ou a cupidez das ajudas à frente dos direitos de cidadania nunca se há-de conseguir mobilizar verdadeiramente os cidadãos para as inegáveis virtualidades do projecto europeu. Mas isso, claro, só vai acontecendo porque vivemos num tempo novo que se vai fazendo, porém, com políticos velhos.
Bernardino da Purificação

quarta-feira, 25 de junho de 2008

Cinismo de "velha meretriz"

Nada que não tivesse já sido previsto. O dr. Jardim, naquele seu jeito mais ou menos hiperbólico, acaba de comparar o eng. Sócrates ao ditador empedernido e impenitente que responde pelo nome de Robert Mugabe. Desta vez, o motivo foi a lei que ameaça de fecho o JM. Numa próxima, há-de ser outro, que para o dr. Jardim todos os motivos são bons para chamar qualquer coisa ao primeiro-ministro.
Como sei que os iguais se reconhecem, recuso-me terminantemente a defender o eng. Sócrates. Não obstante, soa-me a exagero o que dele disse o líder madeirense. Se Sócrates fosse o senhor todo-poderoso de uma autarquia de latitude africana ainda acredito que pudesse ser aceitável a comparação. Mas como à sua volta existem, graças a Deus e à prudência dos homens, uma boa mão cheia de mecanismos de contra-poder e de fiscalização do poder, mesmo que o quisesse, o eng. Sócrates nunca poderia sequer assemelhar-se a uma amostra, ainda que pálida, do ditador do Zimbabwe.
Para desgraça do bom senso e dos mais de cem trabalhadores do JM, a discussão do seu futuro há-de ser feita no azedume deste registo. É o pior que lhes poderia acontecer. Como tive ocasião de expressar há algumas semanas atrás, a via negocial é a única forma construtiva de resolver o problema do JM. Reitero tudo o que então escrevi. Contaminar a discussão do futuro do JM com o vírus da acrimónia pessoal e da grosseria do insulto não levará seguramente a qualquer solução politicamente equilibrada e socialmente justa. E o dr. Jardim não o ignora. De maneira que nunca se livrará da suspeita de que para ele este episódio do JM não passa de um mero pretexto para manter viva a guerra pessoal e política em que não abdica de ver transformadas as suas relações (e as da Madeira) com o poder central.
É pena que, em nome do racionalismo político e da frieza analítica que lhe têm assegurado a longevidade, o dr. Jardim não tenha pejo em servir-se de tudo o que lhe possa alimentar uma estratégia que, em bom rigor, só ele conhece. As instituições que a democracia lhe coloca nas mãos não passam de instrumentos que utiliza a seu bel-prazer. E, o que é manifestamente pior, as pessoas cujo destino tem o poder de influenciar não são mais do que meros peões das batalhas políticas que, para seu exclusivo proveito, passa a vida a congeminar. O cinismo político da "velha meretriz" que se orgulha de ser está a esgotar-lhe a humanidade que em tempos era capaz de exibir. E um dia destes vão ficar a percebê-lo os mais de cem trabalhadores do JM. Do mesmo modo que um dia a Madeira inteira é bem capaz de vir a entendê-lo. A menos, claro, que ainda seja capaz de arrepiar caminho. Até porque de outra forma lhe faltará sempre a legitimidade para chamar ditador a quem quer que seja.
Bernardino da Purificação

segunda-feira, 23 de junho de 2008

O que diz Gaula

De repente, Gaula ocupou o centro da política madeirense. O PSD ganhou e assegura que esta é só mais uma de muitas vitórias. O PS assobia para o lado, vitimiza-se, e finge que não percebe que os tempos não correm a seu favor. Os partidos que se demitiram da luta política e a ela se apresentaram pela interposta candidatura dos independentes fazem de conta que não é nada com eles. E estes últimos continuam a apontar o dedo ao PS quando, afinal, a verdadeira derrotada neste acto eleitoral foi a traição política que perpetraram.
Acho, com franqueza, que as eleições de Gaula não merecem que sobre elas se diga muito mais. A não ser talvez que as suas incidências constituem a síntese perfeita da política madeirense. Enquanto todos brigam e se travam de razões na praça pública, o PSD vai somando. E enquanto o PSD vai somando, vão continuando todos a brigar e a travar-se de razões na praça pública. Um verdadeiro círculo vicioso, em suma. Que ao PSD interessa que se mantenha por muitos e bons anos. E que ninguém da oposição revela ter talento suficiente para romper. E o resto não passa de folclore.
Dito isto, importa acentuar que o PS faz mal em tentar relativizar a extensão da sua copiosa derrota eleitoral. Em boa verdade, ele era o único partido que não podia perder. Ora, mesmo sendo verdade que teve contra si uma coligação formada por toda a gente, há aspectos da gestão da sua política autárquica que não podem deixar de merecer uma séria reflexão. Mas há mais. Queira ou não queira a direcção regional socialista, a ideia que a partir de hoje há-de circular será mais ou menos a seguinte: o eleitorado local (se Gaula representa alguma coisa) não quer saber deste PS para coisa nenhuma; as últimas regionais demonstram que os eleitores da Região estão longe de levar a sério a actual direcção socialista; e, como é público e notório, nem a direcção nacional do partido credita um mínimo de importância a Gouveia e seus pares. Só não há-de enxergar isto quem, por conveniência ou simples cegueira, continua a apostar tudo numa estratégia (dando de barato que há efectivamente alguma) que mais não serve do que assegurar aos do costume o lugarzito que têm.
Bernardino da Purificação

domingo, 22 de junho de 2008

A alcateia desavinda

Não custa nem será exagero reconhecer que o ultraperiferias constitui um caso no contexto da blogosfera madeirense. É imensa a quantidade de informação relevante que nos faculta. E, por outro lado, constitui às vezes um verdadeiro barómetro da meteorologia interna do universo laranja.
Não quero cometer a injúria de olhar para ele como quem olha para uma central de propaganda partidária. Não ignoro, é certo, as ligações e responsabilidades políticas do seu autor. Porém, pelo que me tem sido dado ler, não tenho quaisquer dúvidas em creditar-lhe uma saudável autonomia de pensamento e propósitos.
Dito isto, não creio que LFM deva sentir-se incomodado com eventuais leituras políticas que os seus escritos possam suscitar. As coisas são o que são. E um dirigente partidário há-de ser sempre um dirigente partidário. Sobretudo para quem com ele priva na via exclusiva da leitura dos seus escritos.
O cuidado deste intróito radica no facto de gostar pouco de equívocos. Ora, como volta e meia surpreendo umas nem sempre divertidas trocas de mimos entre LFM e outros respeitáveis autores de blogues (só explicáveis à luz da conflitualidade partidária que entre eles se sabe existir), prefiro evitar ver-me envolvido em querelas que ultrapassam a saudável discussão de ideias. Até porque, nesta fase da vida, as ideologias fascinam-me bastante mais do que as organizações partidárias que temos.
Tudo isto, em suma, para constatar que o dirigente partidário LFM não se cansa de, através do seu blogue, nos dar conta da turbulência que se vai instalando no interior do PSD. Há dias vimo-lo lamentar a total falta de coordenação observável ao nível da acção do governo. Agora observamos-lhe as farpas a propósito das divisões internas cada vez mais visíveis nas hostes sociais-democratas madeirenses, que o congresso nacional laranja mais não faz do que amplificar.
Como pessoa educada que parece ser, LFM tem recorrido ao eufemismo. Assim, a mencionada falta de coordenação política da actividade governativa foi por si descrita como não passando de um mero problema de comunicação a que é preciso pôr cobro. E quanto às dissensões internas descortináveis no seu partido, LFM prefere tê-las à conta de uma qualquer sede de protagonismo que terá começado, de repente, a atormentar certas figuras do jet set laranja.
Não cometo a deselegância de pensar que LFM não vê o que está à vista de todos. Ele vê, com certeza. Porventura, muito melhor do que nós, dado o conhecimento privilegiado que tem. De maneira que compreendo que o dirigente partidário, que o incansável autor do ultraperiferias não deixa de ser, reduza a uns quantos eufemismos e a algumas farpas as suas observações a propósito do PSD e do governo. Em boa verdade, não pode fazer outra coisa. A militância e a solidariedade partidária a isso certamente o obrigam. O problema é que o observador autónomo que gosta de ser convive mal com uma realidade a que não estava manifestamente habituado. Que se traduz numa total ausência de coordenação política. Que evidencia uma notória falta de comparência de quem devia liderar o governo e o partido. E que se exprime na forma como cada um vai começando a organizar a vidinha sem pensar, como outrora, em prestar contas ao chefe.
Digo de outro modo. O que LFM seguramente vê mas não pode dizer é que iniciámos já o pós-jardinismo, mesmo que Jardim continue a andar por aí. Compreendo o incómodo: não há nada mais ingrato do que ver um bando de ex-seguidores a fazer-se já ao futuro com o presente ainda vivo. E, se calhar, LFM acredita que os seus eufemismos e farpas podem fazê-los e fazer-nos pensar que o dr. Jardim ainda é capaz de, a qualquer momento, puxar novamente as rédeas à situação e assim acabar com o desnorte (ou será antes com o bem norteado "salve-se quem puder"?) que parece ter vindo para ficar. Cada um, é claro, acredita no que quer. Eu, por mim, não lhe recomendaria tanto optimismo. Até porque os lobos alimentados por e à custa de Jardim cresceram já o suficiente para se considerarem desobrigados da continuada sujeição à sua tutela.
Bernardino da Purificação

sábado, 21 de junho de 2008

Orgulhosamente só

Anda para aí uma lamúria porque a nova líder do PSD não teve uma única palavra para com as autonomias insulares. A dita corre ainda de forma razoavelmente surda. Mas, tendo em conta os becos por onde anda, é já suficientemente audível para se perceber que está assim encontrado um ponto de fricção entre a Rua dos Netos e a São Caetano.
Ou seja, o que passa a partir de agora a dividir os companheiros laranjas de aquém e de além mar já é muito mais do que a circunstância de a dra. Manuela Ferreira Leite não passar de uma representante do establishment, no cáustico dizer do ex-candidato a candidato a líder, Alberto João Jardim. A esse evidente facto, que é obviamente grave, juntou-se agora uma outra razão de queixa. A dra. Manuela é com toda a probabilidade contra as autonomias. Ou, no mínimo dos mínimos, está-se nesta altura mais ou menos borrifando para esse candente problema nacional que consiste em saber se os parlamentos das ilhas estão em condições de assegurar aos seus representados uma vida democrática decente. E isso, é claro, não pode ter perdão. O que, por outras palavras, há-de significar que, pelo menos este ano, os social-democratas madeirenses ficarão privados de confraternizar com a dra. Ferreira Leite na liturgia do Chão da Lagoa. É muito bem feito. Se quiser cá vir para a próxima experimentar a gincana etílico-radical que a maioria dos seus antecessores teve a oportunidade de conhecer, então que aprenda a tratar com mais respeito a autonomia insular.
É verdade que a dra. Manuela centrou o seu discurso nos magnos problemas da pátria. Do desemprego à inflação. Do escassíssimo crescimento económico ao dramático aumento do número de pobres. Mas não lhe haveria com certeza de ficar mal se tivesse acenado um mimo qualquer ao dr. Jardim. Era o mínimo que se lhe exigia. Sobretudo se tivermos em conta que praticamente todos os seus antecessores sedimentaram a prática quase ritual de uma palavrinha dirigida aos social-democratas das ilhas. Mas não. Fosse lá pelo que fosse, por uma questão de economia verbal, ou por não querer esquecer as traulitadas que lhe deu o líder madeirense, a Dra. Ferreira Leite ignorou o dr. Jardim. E isso não se faz.
Eu receio bem que o episódio possa ser interpretado como prova do crescente isolamento político de Alberto João Jardim. Um disparate, já se vê. Quanto mais não seja porque, tendo muitas, poucas ou nenhumas queixas, os líderes nacionais vão passando, ao passo que o dr. Jardim fica. Sozinho, mas fica.
Como? Isso não constitui prova nenhuma da putativa bondade política desta espécie de orgulhosa solidão à moda da ilha? De facto, não. Mas, deixem lá. O que possa perder-se em solidariedade ou companhia há-de ganhar-se seguramente em exotismo. E isso há-de ser com certeza alguma coisa.
Bernardino da Purificação

sexta-feira, 20 de junho de 2008

A Autonomia e a sociedade civil

Suponho que não erro se disser que um dia destes vai recomeçar a discussão política sobre essa estranhíssima entidade que dá pelo nome de representante da República. É claro que hão-de passar o Chão da Lagoa e o Verão. Mas, logo depois, é certo e sabido que as forças políticas regionais vão tratar de começar a medir o pulso uns aos outros na perspectiva da próxima revisão constitucional.
O dr. Jardim já fez saber que o PSD tenciona dramatizar politicamente a questão do poder legislativo do parlamento madeirense. Basta isso para se perceber que essa discussão terá que ter no seu centro o Palácio de São Lourenço. A menos, claro está, que todos resolvam fazer de conta que não percebem que uma tal discussão não pode passar ao lado nem do problema da fiscalização preventiva dos diplomas legislativos ou regulamentares regionais nem da controversa questão do estatuto do representante da República.
Porque gosto de deixar as coisas claras, e a título de declaração de interesses, declaro desde já que entendo que a autonomia constitucional portuguesa deve evoluir no sentido da consagração do mecanismo da fiscalização sucessiva como único instrumento de controlo da legalidade e conformidade constitucional das leis regionais. A fiscalização preventiva constitui, no meu modestíssimo entendimento de leigo, uma intromissão preconceituosa e indesejável na nossa capacidade de legislar sobre as questões que nos dizem respeito. Deveria por isso deixar de ser possível. Em conformidade, entendo que deve ser pura e simplesmente extinto qualquer cargo que tenha sido criado para esse efeito.
Esclarecido este ponto, quero apontar o dedo a todos os que, no próximo processo de revisão constitucional, nos vierem vender de novo a ideia de que temos vindo a evoluir em matéria de autonomia política por via da criação mais ou menos paliativa de sucedâneos do entretanto extinto, embora não inteiramente finado, ministro da República. Receio bem que isso possa voltar a acontecer. Pelo menos, a avaliar pelas indicações do passado recente.
Repare-se. Até os mais encarniçados autonomistas do PSD foram capazes de nos vender a ideia de que a extinção do cargo de ministro da República, e a sua substituição pelo cargo actual de representante da República, constituiu um passo adiante em matéria de autonomia. E nós, claro, acreditámos. Porque quem o dizia era gente insuspeita em matéria de fervor autonómico. E porque se fez criar a ideia de que o único problema da existência de um tal cargo decorria do facto de ele parecer estar ligado a uma concepção mais ou menos soberanista e reservada das autonomias insulares.
Como não há estudos nem opinião no espaço exterior aos partidos, poucos terão reparado que a emenda feita é potencialmente pior do que o soneto emendado. E praticamente ninguém notou que a designação representante da República é muito mais pesada politicamente do que a entidade que veio substituir.
Repare-se. Quem representa a República representa necessariamente todos os portugueses, madeirenses naturalmente incluídos. E representa por isso a Autonomia que temos, a legalidade democrática em que vivemos, bem como todo o quadro de direitos e valores inerentes à dignidade de que somos portadores enquanto cidadãos e pessoas.
Isto quer dizer que, em matéria de representação, os madeirenses e açorianos são representados não apenas pelos órgãos políticos que directamente elegem (nacionais e regionais), mas também por um órgão investido de uma função política fiscalizadora. Assim uma espécie de provedor autonómico mais ou menos envergonhado.
Dir-se-á que essa fiscalização tem limites definidos pela lei. Mas será que os tem mesmo? E se um dia o representante da República (logo, também dos madeirenses) decide que pode ter uma interpretação lata, extensiva e transversal dos limites da Autonomia e dos interesses dos cidadãos portugueses da Madeira? Se tal acontecesse, não poderíamos chegar a um ponto de atrito ou de impasse institucional que o país e a coesão nacional seguramente dispensariam? Receio sinceramente que sim, sem prejuízo de aqui dever reiterar (o que faço com toda a humildade) a minha evidente condição de leigo numa matéria que, infelizmente, continua na disponibilidade exclusiva dos partidos.
O problema destas coisas, de facto, é que na Madeira não há um único fórum, uma única sede (fora do quadro dos partidos, insisto) que aprofunde ou investigue estas matérias. O que quer dizer que a sociedade civil madeirense vai andando continuamente ao jeito de todos os embustes que até os autonomistas empedernidos periodicamente lhe servem. Como vai com certeza verificar-se mais uma vez quando, lá para depois do Verão, se começar a discutir de novo a evolução e limites constitucionais da Autonomia.
Bernardino da Purificação

quarta-feira, 18 de junho de 2008

Nas asas da sorte

Uma queda de enormes pedras na Ponta do Sol voltou a revelar-nos que só a sorte nos continua a separar da tragédia. Agradeçamos-lhe, pois. Pelo menos, enquanto ela durar. E, já agora, façamos figas e votos para que continue a valer-nos, pelo menos enquanto continuarmos a arriscar para além do razoável.
Tenho pouca pachorra e nenhum feitio para discursos lamechas de pendor mais ou menos moralista. E sou, por temperamento, visceralmente contra os que não resistem à tentação de cair sobre os desastres com a sofreguidão dos necrófagos. Não obstante, ao ver as imagens que as televisões nos mostraram, foi-me impossível reprimir a incómoda sensação de que a incúria de quem manda já vai longe de mais. Desta vez foram só dois carros destruídos e um susto, no mínimo, do tamanho assustador dos bocados de encosta de várias toneladas que desabaram escarpa abaixo. E da próxima, como será?
Quase mais impressionante do que as imagens televisivas foi a gaguejada mas reveladora sinceridade do presidente da Câmara da Ponta do Sol. Compreensivelmente, o homem parecia mais assustado do que consternado. Não era caso para menos. Mas, ou teve o azar de escolher mal as palavras, ou não fez mais do que deixar libertar a tensão que a esta hora deve ainda estar a sentir.
Disse em jeito de explicação o ainda trémulo autarca que a Câmara não esperava que a encosta desabasse tão cedo. Este tão cedo acordou-me. E fez-me perceber quão felizardos temos sido por termos do nosso lado um bem tão escasso como é a sorte. Então a Câmara da Ponta do Sol sabia que a falésia um dia havia de despencar lá do alto e não disse nada a ninguém? Pior do que isso. Então os responsáveis governamentais e camarários permitiram que centenas de pessoas sob ela passassem todos os dias, brincando sem o saberem com a possibilidade brutal de uma morte horrenda, só porque suas excelências acreditavam que a derrocada que sabiam certa poderia acontecer mais tarde e a horas mais convenientes? Mas desde quando é que estas coisas podem ficar à guarda das crenças desta gente? Um indivíduo fica até sem palavras. E que tal se fossem brincar à política para onde nunca pudessem fazer mal a ninguém? Mas isso, se calhar, já seria sorte de mais.
Bernardino da Purificação

O bloco central ataca de novo

Todos os sinais indicam que no próximo ano assistiremos no país à emergência recauchutada de um novo bloco central. Ninguém conseguirá provavelmente uma maioria absoluta. De maneira que, às dificuldades decorrentes da conjuntura económica, somar-se-ão com certeza problemas de governabilidade e estabilidade política. Mesmo admitindo que o PS ganha as eleições, não é crível que possa fazer uma coligação com o BE. A relação crispada entre ambos e a natureza que o Bloco tem de partido de protesto inviabilizam à partida uma tal possibilidade. À esquerda fica então a sobrar o PCP. Mas como o socrático PS não há-de querer assustar o eleitorado do centro, uma coligação com os comunistas estará, também ela, descartada à partida. Mesmo considerando que um eventual entendimento político com o partido de Jerónimo poderia trazer como bónus o fim das acções de rua que ameaçam exaurir o moral das tropas socialistas. Restam assim os partidos situados à direita. Ora, destes, só o PSD estará em condições de oferecer garantias de estabilidade, tanto por razões de aritmética política, como por razões de contiguidade ideológica e programática com o PS actual. Alguns factos folclóricos recentes, tais como os artigos assassinos de Mário Soares ou o contravapor da súbita exaltação poético-esquerdista do camarada Manuel Alegre, são a prova provada dos incómodos que uma tal proximidade já começa a provocar.
Não sendo adepto de blocos centrais ou de coisas quejandas, confesso que o cenário está longe de me agradar. Até porque não ignoro que, no simplismo redutor, porém operativo, de uma grelha de análise marxista, ele não seria mais do que a projecção na superestrutura política do que, em bom rigor, há muito se passa ao nível da infraestrutura económica que efectivamente conta. A promiscuidade entre a política e o mundo dos negócios não é de todo uma coisa que me atraia. E a ameaça de que essa promiscuidade pode um dia ganhar uma expressão institucionalmente legitimada só pode causar-me urticária. Não obstante, é esse o cenário político que se prefigura. Salvo, é claro, qualquer incidência mais ou menos imprevisível que neste momento, e por falta de informação, não seja possível ponderar.
O que é que a política da Madeira tem que ver com isso? Tudo, como é evidente. Não apenas porque, como dizem os teóricos, toda a política é política local. Mas sobretudo pelo gozo que nos haveriam de dar os embaraços que um bloco central em Lisboa certamente traria às direcções regionais do PSD e do PS, e pelo fôlego autonomista que as restantes forças políticas poderiam colher desse quadro, se porventura o quisessem aproveitar.
Tudo isto dito, devo confessar que compreendo mal que o dr. Jardim pareça inclinado a nem sequer pôr os pés no congresso nacional do PSD. Seria ali, e não no recato de outro sítio qualquer, que ele encontraria o palanque adequado para dizer ao partido e ao país o que pensa de soluções políticas do tipo bloco central. Sabe-se, é claro, que ele se diz contra. Só que pensar ou dizer é facílimo. Coisa diferente é aceitar as consequências de uma vinculação pública a tudo o que se diga ou pense. Ora, Jardim sabe que não há nada mais politicamente relevante e vinculativo do que uma posição assumida na solenidade de um congresso. Sobretudo se essa posição for contrária à corrente dominante, como seria certamente o caso.
O dr. Jardim está entalado, em suma. É contra a constituição de um bloco central. Sabe que o assunto vai estar em cima da mesa no próximo congresso, até por causa da próxima revisão constitucional (o PSD está num ponto em que nem tem força sequer para assumir-se como minoria de bloqueio). Porém, não lhe dá jeito ir lá dizer o que inequivocamente pensa, porque não ignora que isso ficaria devidamente registado para memória futura. E o futuro, toda a gente o sabe, é algo que assusta os políticos. Sobretudo os que, como Jardim, só sabem e ousam gerir o presente.
Bernardino da Purificação

terça-feira, 17 de junho de 2008

As fardas, as togas e as leis

O dr. Jardim, que não é separatista, lamenta hoje em artigo de jornal que, na Madeira, o Estado português só existe com as suas proibições, com as forças militares, as polícias, os tribunais e uma fiscalização apertada da produção legislativa regional.
O dr. Jardim, se fosse separatista, não lamentaria seguramente coisa diferente. Ficaria maçado com os limites legais ao seu quase poder absoluto. Sentir-se-ia desconfortável com a presença no território de um exército de ocupação. Desesperaria por não poder dar ordens directas às forças que nos asseguram a ordem pública. Guincharia de irritação por não ter nas mãos o poder de nomear e condicionar juízes e procuradores. E, em nome do seu povo, haveria de fazer da cruzada contra a compressão constitucional do poder legislativo da assembleia regional a luta da sua vida.
Fico satisfeito pelo facto de o dr. Jardim não ser separatista. Por ele, desde logo. Não há nada que me faça mais infeliz na vida do que ver políticos em perpétuos estados de alma. Mas também por mim, permitam-me que confesse. Porque, sinceramente, sinto um arrepio só de imaginar que teria de zarpar da minha terra se um dr. Jardim qualquer (este ou outro que por aí venha num futuro mais ou menos longínquo) pudesse mandar um dia nas polícias e na tropa, nos acusadores públicos e nos juízes, e pudesse ter nas suas soberanas mãos o poder de legislar a gosto de um qualquer freguês de circunstância.
Leve-se, portanto, à guisa de acto falhado ou de mero desabafo o lamento do dr. Jardim. O que ele, no fundo, pretende dizer é que as fardas e as togas exercem sobre ele um fascínio que vem de outros tempos. Ou, dito de outro modo, o texto que hoje li no JM não é propriamente da autoria do político que dizem que nos governa. É do militar angustiado que serviu heroicamente a pátria na secretária dos bravos. Mas é também do advogado ou do magistrado frustrado que um dia, por razões de urbaníssima sobrevivência, se desviou da vocação sonhada porque um tio rico lhe cometeu a maldade (se calhar, em virtude dos méritos observados) de ofertar uma vaquinha mimosa para que, de uma assentada, se pudesse fazer sócio e presidente da cooperativa agrícola do Funchal.
O mistério da vida tem destas coisas. A gente sabe que um dia nasce. Mas nunca ninguém há-de saber por que raio e por que artes um simples bovino ofertado, sobretudo se leiteiro, é assim tão capaz de nos conduzir o destino à revelia dos sonhos que temos. Ora, como é do domínio público, foi exactamente isso que aconteceu ao dr. Jardim, o jovem. De maneira que agora não espanta que o dr. Jardim, o velho, se não contente, em matéria de fardas, em só passar revista às paradas luzidias das nossas corporações de bombeiros, se não alegre, em matéria de togas, em só ter de passivamente acatar as decisões dos tribunais, e se não conforme, em matéria de leis regionais, com o controlo a meias que exerce sobre a Assembleia Legislativa com essa exótica figura que representa legalmente a República e não apenas o Estado.
Veja-se bem o que pode uma simples e pachorrenta vaquinha. E ainda há quem duvide da teoria e da força do acaso.
Bernardino da Purificação

domingo, 15 de junho de 2008

Os camionistas e os Sousas

Ou é impressão minha ou temos um debate urgente a fazer na Madeira. Não acho que esteja a descobrir a pólvora. Longe disso. Reconheço, aliás, que praticamente não temos discutido outra coisa nos últimos anos. Mas como os últimos dias nos trouxeram factos novos, à pertinência do tema veio juntar-se agora o aviso da necessidade de um outro tipo de ponderação.
Como se calcula, estou a referir-me ao problema da extrema dependência da região em relação ao exterior. O assunto, não o ignoro, é recorrente. Porque se relaciona com a nossa condição insular. E porque, nessa medida, é parte integrante do núcleo de fundamentos da autonomia política que temos. E ainda que os temas permanentemente em cima da mesa incorram no risco da banalização, julgo que ninguém conseguiu evitar um sobressalto pela recente exibição pública do nosso isolamento.
Atalhemos directamente a questão. Para recordarmos que o país esteve durante dois ou três dias literalmente nas mãos de duas ou três dezenas de camionistas. E para concluirmos que, pela mesmíssima ordem de razões, a Madeira se encontra literalmente à mercê dos humores de um determinado grupo económico.
O que se passa, de facto, é que os Sousas e os sindicalistas seus associados estão para a RAM como os camionistas estão para o país. Uns e outros têm nas mãos os nossos abastecimentos. E, nessa medida, tanto uns como outros acabam por ser detentores de um poder que ultrapassa os limites do razoável.
O Estado tem instrumentos capazes de conter ou de acomodar esse poder às suas necessidades vitais? Consta que sim. A maçada é que em situações extremas, como as que se viveram há dias no continente, o Estado hesita, embrulha-se, engasga-se. E o resultado foi o que se viu: bombas de gasolina secas; o país à beira do racionamento de certos produtos essenciais; a agro-pecuária lusa à beira de um ataque de nervos; a população em geral insegura e sob a ameaça da carência; e a classe política de repente rendida à necessidade de nos dotarmos de reservas estratégicas.
Como não sou entendido nestes assuntos, ignoro se é exequível ou até mesmo prático equacionar também para a Madeira a possibilidade de constituição desse tipo de reservas. O senso comum e os meus interesses de consumidor que vive numa terra que nada produz dizem-me que sim, que essas reservas não só são úteis como se afiguram mesmo indispensáveis. Porque é sabido que temos pela frente a ameaça de uma crise energética e alimentar à escala global. E porque, como os factos demonstram, basta um simples estremeção para que essa crise larvar e estrutural em que vivemos já assuma picos de carência e dramatismo local.
Suponho, portanto, que alguma coisa tem de ser feita neste domínio por parte de quem tem a responsabilidade pelo planeamento da nossa vida colectiva. Pelo menos, ao nível da informação que é devida ao povo que vota. E ainda que a nossa extrema e total dependência em relação ao exterior, aliada à nossa pequena dimensão territorial, possa traduzir-se na impossibilidade prática de constituição de stocks de dimensão suficientemente tranquilizadora, julgo não ser demais exigir a quem nos governa que vá começando a acertar com o governo central todo o tipo de medidas susceptíveis de colocar as nossas necessidades de abastecimento a coberto de indesejáveis rupturas. Até porque, como diz o povo na sua inquestionável sabedoria, quem vai para o mar avia-se em terra. E eu nem quero pensar no que pode acontecer se um dia dá a louca aos Sousas e aos amigalhaços dos sindicatos da estiva.
Bernardino da Purificação

sábado, 14 de junho de 2008

Casamento com o acaso

Li ontem no pravda (o ilhéu, não o local) um pequeno texto que pretende fazer uma espécie de apelo à memória com uma finalidade de certa forma justiceira.
O dito cujo relaciona os acontecimentos que culminaram com o trágico desaparecimento de um antigo presidente do conselho de administração da EEM com um esquisito processo em que, segundo diz, se terão cruzado o jornalismo e o ajuste de contas.
O pravda saberá certamente do que fala. Quanto mais não seja, para fazer jus ao nome que ostenta. Não obstante, não resisto à tentação de dizer que me parece um bocado simplista a tese que deu à estampa. Vai daí, lembrei-me de uma história que em tempos prometi divulgar. Não com o propósito de corrigir as putativas verdades do pravda. Mas apenas e só porque vem a talhe de foice.
Então é assim. Por um milagre do destino, de um bruxedo qualquer, ou por obra e graça de um qualquer capricho do acaso, o dr. Cunha e Silva foi investido em 2000 nas funções de vice-presidente do governo. Diz quem sabe que o processo que antecedeu a posse foi atribulado. Jardim ponderou a possibilidade de ter duas vice-presidências. Mas a ideia acabaria por ser imediatamente descartada para que nada pudesse ensombrar a unção do dr. Cunha. Este último propósito, aliás, levou o dr. Jardim a ceder aos desinteressados conselhos do seu futuro vice. E de tal maneira cedeu que chegou mesmo a convidar o actual presidente da EEM, Rui Rebelo, para o cargo de secretário regional de Finanças.
Pasmados com a novidade? Acredito que sim. O dr. Rui Rebelo nada tinha no currículo que especialmente o recomendasse para o lugar, a não ser, como já se percebeu, a posse desse magnífico atributo que consiste em ser amigo fiel do dr. João Cunha e Silva. O problema de ambos é que as canelas do indivíduo tremelicaram mal Jardim formalizou o convite. E assim, o dr. Cunha viu-se de repente a braços com a maçada de ter de procurar outro nome para as Finanças, ao mesmo tempo que o dr. Rebelo lá teve de voltar lugubremente para o seu lugarzito subordinado de director financeiro da EEM.
Como gente secretariável é o que mais abunda nesta terra, o convidado seguinte foi o dr. Garcês. Embora não pertencesse ao restrito mas selecto clube de amigos do dr. Cunha, o dr. Garcês tinha a seu favor o facto de valer politicamente zero, e de possuir uma personalidade, digamos, acomodatícia, se é que me faço entender sem necessidade de ofender o homem. De maneira que o dr. Garcês lá se alcandorou ao lugar de secretário de Finanças, no que passou a constituir a mais evidente prova provada (a seguir, é claro, da ascensão do dr. Cunha à vice-presidência do governo) de que tudo é possível nesta vida e, em particular, nesta terra.
Só que um processo assim acaba sempre por deixar problemas mal resolvidos. Um exemplo: tendo o dr. Rebelo estado à escassa distância de um sim de ser membro do governo da RAM, não se afigurava razoável que pudesse permanecer na subalternidade de uma direcção financeira. Ainda por cima, de uma empresa directamente tutelada pelo amicíssimo Cunha. O problema é que a sua nova condição de personalidade secretariável esbarrava num impedimento de monta: o lugar que ambicionava de presidente da EEM estava ocupado. Nada, é claro, que o dr. Cunha e o destino não pudessem resolver, como os factos posteriores vieram revelar. Até porque o então presidente da EEM não pertencia nem à clique do dr. Cunha nem ao selecto clube dos seus apaniguados.
É sabido que só há duas maneiras de desalojar alguém de um cargo. Seja na política, seja na vida empresarial. Uma é a bem. A outra é a mal. Ora, desgraçadamente para o malogrado ex-presidente da EEM, entretanto substituído pelo ex-secretariável dr. Rebelo, a elegância desta gente ordinária que vemos instalada nos vários níveis do poder social e político desta terra escolheu a segunda (a pior) das duas hipóteses. E o resto da história é de todos conhecida.
Estarei com isto a insinuar responsabilidades diversas das que o pravda se permite apontar? Podem crer que não. Até porque sei que entre nós, e no mais das vezes, a responsabilidade ou morre solteira ou faz-se noiva do acaso.
Bernardino da Purificação

sexta-feira, 13 de junho de 2008

Conversa da treta

Ora aí está uma medida governativa de verdadeiro alcance social: a cerveja vai passar a escorrer com maior fluidez, por via de uma diminuição da taxa de IVA que sobre ela incide. Acho bem. Por um lado, o calor aperta. Por outro, as agruras da vida são tantas que o melhor é afogá-las a baixo custo.
É verdade que a democraticidade da coisa deixa um bocado a desejar. O tintol, por exemplo, está em choque perante tamanha discriminação. E, dos fundos do coma alcoólico em que o querem manter submerso, vai observando que já passaram há muito os tempos em que os molhos constituíam a sua mais rendosa serventia. O gin tónico nem quer acreditar no que lhe está a acontecer. Como se já não lhe bastassem, em matéria de estigmas, todas as ressacas e figadeiras que ocasionalmente provoca. E nem o velho scotch, esse cúmplice e fiel companheiro de tantas noitadas, consegue passar ao lado de tão discriminatória medida.
Compreendendo as razões de tais etílicos fluidos, não posso, porém, deixar de observar que governar é ter a ousadia de fazer escolhas. Quem nos governa gosta mais de cerveja? Pois fiquem sabendo que a democracia tem para isso bom remédio. Para a próxima vote-se em quem tenha a coragem de se comprometer com o tintol (sem qualquer desprimor para o branco, como é evidente), ou até mesmo com o gin ou com o scotch.
Dirão que estas duas últimas opções são francamente minoritárias quando comparadas com a cerveja ou com o tinto. Têm razão. Ainda assim, meus senhores, atrevo-me a deixar três ou quatro ingénuas e bem intencionadas perguntas. Afinal, o que é feito da tolerância? E o espaço e a voz das minorias, onde anda? Escolher o humanismo das democracias não significa assumir um compromisso de defesa dos mais fracos?
Estou seguro que todos responderemos que sim a estas singelas questões. Em todo o caso, até por ser pouco dado a coligações alcoólicas, insisto: governar é escolher. E o nosso senhor governo fez bem em optar. Ao menos por esta vez. Dava mais jeito que o líquido escolhido fosse outro? É verdade que sim. Mas, por favor, não se confunda gasolina com cerveja, como desataram já a fazer os maldizentes do costume. Mesmo que tudo isto não passe de mera conversa da treta dos petroleiros que nos mandam.
Bernardino da Purificação

quinta-feira, 12 de junho de 2008

A caminho da eternidade

Desanimem os Cunhas e os Albuquerques, os Coitos e os Manuéis. Desespere a oposição. O dr. Jardim está aí, como a ganga, para lavar e durar. Ele não o diz em público, como é evidente. Limita-se a insinuá-lo. Como se pode depreender do anúncio que fez no final da última reunião da comissão política do PSD.
Remetendo-vos para o texto imediatamente anterior, recordo que o presidente Jardim anunciou a intenção de fazer das próximas eleições nacionais mais um dos seus plebiscitos. Descontando o facto de o homem andar há mais de trinta anos de plebiscito em plebiscito, importa que se diga que o anúncio tem uma importância política que em muito o transcende.
Repare-se. O dr. Jardim fez questão de comparar o novo plebiscito que aí vem com o que o que foi feito nas últimas eleições regionais. Nesse, o que esteve em causa foi a lei de Finanças regionais. No próximo, o dr. Jardim quer que o eleitorado se pronuncie sobre o alargamento dos poderes legislativos da Assembleia Regional. Mas, já que foi ele a fazer a comparação, vale a pena levá-la um pouco mais longe. Para recordar, em primeiro lugar, que a transcendência do leit motiv das regionais do ano passado constituiu um dos argumentos com o qual o dr. Jardim justificou a necessidade de uma sua nova candidatura. Dada a importância do combate político que com ele se iniciava, o nosso presidente, qual comandante em dia de tormenta, não podia abandonar o barco. Fazê-lo, para além de prematuro, seria atraiçoar a confiança dos que fielmente o seguiram nessa fantástica cruzada contra os ditames financeiros do Terreiro do Paço. É verdade que ficou tudo rigorosamente na mesma. Mas isso não passa de um mero pormenor esgrimido pelos cínicos. Até porque, como há dias muito bem explicou o dr. Jardim, o que importa é que os madeirenses ficaram a contar, a partir dessa altura, com o argumento (para esgrimir provavelmente na ONU), devidamente traduzido em votos, de que estão contra o tratamento que Lisboa lhes inflinge. E o mesmo há-de por certo acontecer no próximo ano. Com a vantagem de então passarem a ser dois os argumentos (correspondentes a outras tantas rejeições à sujeição ao jugo lisboeta) que ficarão na disponibilidade do povo da Madeira. O que o dr. Jardim não disse, e devia ter dito, é que será ele, e não um seu eventual sucessor, quem empunhará o facho do protesto. Porque o líder é ele. E porque não está certo que um aspirante a chefe inicie o seu mandato com uma tão grande responsabilidade aos ombros.
Por conseguinte, Jardim lá vai ter de continuar a saltar de plebiscito em plebiscito. Até por uma outra razão de natureza político-formal. Nenhum líder futuro pode sentir-se vinculado às decisões presentes de uma comissão política que não escolheu. As orientações estratégicas (com repercussão a médio e longo prazo) discutem-se e deliberam-se em congressos. Nunca em comissões políticas. Se alguém o faz é porque não tenciona sair tão cedo de cena. De maneira que bem podem desesperar todos os que aguardam ansiosamente pela partida do comandante. Ele só diz que vai embora para pôr toda a gente à bulha. E não é que lá vai conseguindo os seus intentos?
Bernardino da Purificação

Post scriptum
Depois de toda a gente ter constatado e comentado o óbvio, e umas quantas semanas depois de ter estalado uma das mais importantes polémicas relacionadas com a nossa insularidade, o dr. Jardim resolveu quebrar o silêncio em que vinha remoendo a existência: falou finalmente sobre a liberalização do espaço aéreo entre o continente e a Madeira. Eu pensava que ele ainda tinha algum pudor. Enganei-me. Esta de dizer que o Governo Regional foi enganado por Lisboa remete para o domínio da desvergonha. Não havia necessidade. Era mais digno admitir que o seu governo cometeu um erro de avaliação. Mas isso exige uma qualidade moral e intelectual que infelizmente não se vê.

terça-feira, 10 de junho de 2008

Entre o caçoar e o caçuar

O dr. Jardim diverte-se à grande. O salário do seu povo já esticou para alem do possível, e ele ri-se. O desemprego vai paulatinamente subindo, e ele gargalha. Os preços disparam, por causa do custo das operações portuárias e dos fretes, e ele agita-se de gozo. Os combustíveis andam pelas horas da morte, porque sua excelência não abdica da receita fiscal que lhe vai dando para mais um lugar de baixo destruído ou mais um parque empresarial convertido em campo de pasto, e ele rebola-se de diversão na permanente paródia em que vive. Um verdadeiro peste, é o que ele é. A malta com dificuldades, a pobreza a subir e a desigualdade a aumentar, e ele continuamente perdido nas suas congeminacões humorísticas. Porque para ele a vida é uma festa. E a política não passa de um mero espaço cénico (tal como diz a epígrafe deste blogue) para as suas excêntricas representações.
Perguntarão: afinal, o que e que o homem fez desta vez, já que, a bem dizer, mal o ouvimos e mal lhe pomos a vista em cima, tão entretido que anda, semana sim, semana não, nas suas agradáveis excursões europeias de carácter lúdico-politico? Ok. Porque a pergunta é boa (como são, aliás, todas as perguntas, mesmo as que possam ter uma resposta óbvia), passo então a explicar.
Depois da ultima reunião da comissão política do seu partido, o dr. Jardim fez um anuncio solene aos madeirenses. As próximas eleições legislativas nacionais, disse sua excelência, serão um plebiscito centrado na pertinentíssima questão da ampliação do poder legislativo da Assembleia Regional. Um pouco à semelhança, explicou, do que aconteceu com as últimas eleições regionais (as tais antecipadas que só produziram atrasos e mais atrasos, e adiamentos e mais adiamentos) em que, conforme lembrou, o povo da madeira plebiscitou a lei de finanças regionais.
Onde é que está o gozo nisto? Pensem comigo. Há trinta e tal anos que se sabe que qualquer eleição é um plebiscito para o dr. Jardim. É essa a sua forma de fazer política. É essa, aliás, a escola onde aprendeu as primeiras letras do abecedário político. Salazar e Caetano (para falar só dos portugueses que inspiraram o dr. Jardim) tinham das eleições exactamente o mesmo entendimento instrumental. De maneira que o dr. Jardim não precisava sequer de dar mais explicações. As próximas eleições serão um plebiscito, porque sim, ponto. Como foram as últimas e todas as outras que as antecederam. E como serão as próximas e as que virão a seguir às próximas. Sem mais justificações ou explicações. Porque é assim que o dr. Jardim quer. Porque o verdadeiro objecto do plebiscito é sempre ele e só ele. E porque, como já todos percebemos, o dr. Jardim não se arrisca a plebiscitar coisas tão práticas como um verdadeiro programa de governo.
Esgota-se nisto o gozo de sua excelência? Não, claro que não. Ele diverte-se, é verdade, a fazer de conta de que é assim uma espécie de De Gaulle de trazer por casa. Mas a sua paródia vai muito para além disso. Vai até ao ponto, imagine-se, de embaraçar os peões que lhe aparam o jogo. Ora imagine-se o desgraçado do dr. Guilherme a andar de porta em porta, de tasca em tasca, de igreja em igreja, na cidade e no campo, a explicar aos eleitores que é muito importante para a vida deles dar mais poderes legislativos ao bando de loucos que habita politicamente a Assembleia Legislativa. Dá vontade rir, não dá? É quase maldade de menino traquinas, não é? Mas procurem levar a imaginação um pouco mais longe. E imaginem o dr. Brazão, o dr. Jardim Ramos, o empresário-deputado Jaime Ramos, o dr. Cunha dos parques e dos lugares de baixo em ruína, bem como toda aquela oleada e polida frente armada que o dr. Jardim costuma lançar para a linha da frente das batalhas eleitorais, a fazer o mesmo, isto é, a explicar à malta que o desemprego aumenta porque a assembleia precisa de mais poderes, que a pobreza galopa porque o Terreiro do Paço estrangula o parlamento regional, e que a economia fenece porque na Avenida do Mar há gente que não tem os suficientes instrumentos de trabalho.
Estão a ver a cena? Então admitam: não é mesmo de ir às lágrimas de tanto gozo? Um peste, em suma. E só não digo que o dr. Jardim adora caçoar connosco porque nunca consegui descobrir se a grafia da palavra é essa, ou se, ao contrário, ela se escreve com "u" e não com "o" (às tantas, as duas grafias estão certas). Mas que apetecia, lá isso apetecia. Porque, afinal, nenhuma outra exprime tão bem aquilo que o dr. Jardim passa a vida a fazer connosco.
Bernardino da Purificação

segunda-feira, 9 de junho de 2008

Ligações perigosas

Como é de todos conhecido, o nosso estimado governo mantém ligações no mínimo perigosas ao obscuro mundo do futebol. O facto, devo dizê-lo, sempre me fez espécie. Não só não percebo o que é que a Região, no seu conjunto, ganha com isso, como não há maneira de conseguir entender que superior interesse político se pretende alcançar com tais ligações.
Dir-se-á que o fogo da paixão clubística é capaz de garantir alguns votos. Duvido. É que, para além da imoralidade política da coisa, sinceramente não acredito que o dr. Jardim algum dia pensasse em entregar nas mãos do senhor Pereira a responsabilidade de traduzir em votos fidelizados ou conquistados o avultado esforço financeiro que o orçamento da Região tem de fazer todos os anos, por via da participação da RAM no Marítimo SAD. E nem me passa pela cabeça admitir que o dr. Jardim possa aceitar de bom grado fazer depender a sua política de intervenção no mundo da bola num remate que sai torto ou numa bola que vai ao poste.
É verdade que, volta e meia, sua excelência não consegue refrear o impulso que o leva a explicar-nos como é que, de acordo com o seu elevado entendimento de expert, o Marítimo deve ou não organizar-se em campo. E até acredito que ele acredite que as pérolas de sapiência estratégico-táctica com que nos brinda sejam dignas de um verdadeiro compêndio da bola. Não obstante, e ainda que isso indicie que o outrora apelidado "maior das ilhas" já não passa, para o dr. Jardim, de uma espécie de direcção regional dos assuntos futebolísticos, não deixa de me fazer confusão esta teimosia politicamente irracional que consiste em manter a Madeira e os madeirenses atrelados a um sub-mundo mais ou menos expurgado de práticas sãs.
Em texto recente, salientei fugazmente o facto, a propósito dessa escandalosa novela a que, com assinalável estridência, se deu o nome de "apito dourado". Nessa altura nem me passava pela cabeça o teor de uma mensagem electrónica que um solícito e bem informado anónimo me iria enviar. E se é verdade que a dita mensagem nada diz quanto a eventuais envolvimentos da equipa madeirense em apitos coloridos ou em outras coisas quejandas, ela é, todavia, pródiga na referência a factos aparentemente envolvidos em alguma nebulosidade.
Antes de continuar, um esclarecimento. Interessa-me pouco, ou nada, a identidade desconhecida de um qualquer mensageiro. O que verdadeiramente para mim conta é a qualidade substantiva da mensagem. É por isso que aqui a refiro. Depois, é claro, de ter certificado a verdade dos factos que nela são referidos. Eis, pois, a síntese do que me foi dito na mensagem referida:
a) facto 1 - até à constituição da SAD, o Marítimo teve sempre a dirigir o conselho fiscal um alto funcionário da direcção de Finanças do Funchal.
b) facto 2 - uma vez que a lei constitutiva das sociedades anónimas desportivas responsabiliza solidariamente todos os órgãos sociais nos resultados e nas práticas da gestão, o ex-presidente do conselho fiscal do Marítimo resolveu sair da cena. Ele lá saberá o porquê de tão dolorosa decisão, dado o seu conhecido fervor maritimista.
c) facto 3 - constituída a SAD, o Governo fez-se representar na administração do Marítimo por outro funcionário de Finanças, entretanto requisitado à direcção do Funchal.
d) facto 4 - o dito funcionário de Finanças exerce actualmente funções de director financeiro do Marítimo SAD.
e) facto 5 - simultâneamente, é, por nomeação governamental, presidente do conselho de administração de uma empresa pública regional.
f) facto 6 - a lei veda expressamente aos gestores públicos a possibilidade de acumulação de funções, remuneradas ou não, em quaisquer outras empresas, privadas ou públicas.
g) facto 7 - não obstante, e sem que nada o justifique, a não ser a conveniência governamental, a acumulação de funções mantém-se há vários anos por parte do dito funcionário de Finanças requisitado.
Ora, bem. Sendo tudo isto matéria factual de fácil comprovação, há questões para as quais parecem faltar respostas. Em primeiro lugar, importa saber que raio de fascínio é este que o Marítimo parece ter por funcionários de Finanças. E, correlativamente, interessa do mesmo modo saber que diabo de atracção é esta que os funcionários de Finanças têm pelo Marítimo. Até porque vão ao ponto, uma e outro, de atropelar preceitos legais prescritos tanto no Estatuto do Gestor Público, como na Lei de impedimentos dos titulares de cargos políticos e funções equiparadas.
Eu detesto agitar suspeitas. Mas uma vez que estamos a falar da gestão de dinheiros públicos e de eventuais atropelos à lei por parte de um órgão (o governo da Região) que age administrativa e políticamente em nosso nome, julgo ser pertinente colocar estas questões. Até para podermos ficar absolutamente tranquilos de que nada de estranho se esconde por detrás de factos que parecem indiciar coisa diferente. De maneira que se alguém quiser fazer o favor de lhes dar as devidas respostas, a gente até agradecia.
Bernardino da Purificação

domingo, 8 de junho de 2008

Duas "cá-cê-ta-das" na crise

A estratégia resultou. Cristiano jogou para a equipa. Refreou grande parte da sua exuberância. E o resultado viu-se: a equipa sobressaiu; os protagonistas mais visíveis foram os improváveis Pepe e Raul Meireles; e os turcos, pasmados, estão agora a remoer a falta de visão que tiveram quando destacaram três ou quatro dos seus (quase um terço da equipa!) para a marcação a Ronaldo.
À medida que o jogo ia decorrendo, percebi que os turcos iam passar os noventa minutos no fio da navalha. Se ficassem, o bicho havia de comê-los. Se fugissem, o bicho havia de pegá-los. E então dei-me conta da injustiça com que se diz que a estratégia, para Scolari, é assim uma espécie de ciência mais ou menos oculta, onde se misturam os fervorosos apelos a Nossa Senhora do Caravaggio, se cruzam uns padre-nossos rezados no balneário em modos de cadeia de união (querem ver que o homem usa avental e a gente não sabe); e se reduzem as orientações futebolísticas a umas indigentes, embora galvanizantes, referências a umas cá-cê-ta-das na bola (juro que foi isso que vi e ouvi com estes que a terra há-de comer em recente reportagem televisiva) em direcção à baliza adversária. Tudo, é claro, devidamente polvilhado com umas velas ao altíssimo, umas promessas a Nossa Senhora de Fátima e umas preces aos anjos-da-guarda dos seus (nossos) valorosos mininos.
Não sei se Scolari contou com os profundos dilemas do técnico adversário: dar rédea solta ao talento de Ronaldo, ou apertá-lo num colete de forças a ver se o jogo português engasgava? Mas isso agora de pouco importa. De resto, não é o facto de poder nem ter pensado nas tormentosas dúvidas adversárias que os seus créditos sem medida de mago das tácticas e estratégias místico-futebolísticas ficaram comprometidos. Bem pelo contrário. Até porque quem se entrega ao Além, com a verdadeira fé dos crentes, acredita com certeza que, sendo Ele a totalidade, tudo acabará por prever, tudo acabará por resolver.
Ora ontem, o que vi na euro-estreia portuguesa foi uma verdadeira manifestação da transcendência: os outros com medo de Cristiano; este, porque respira e intui os andamentos do jogo como ninguém, percebeu que esse medo havia de nos dar jeito; e, felizmente para ele, para nós, para Scolari, para o improvável Murtosa, para o inefável Madaíl, e para glória suprema dos deuses futebolísticos das cá-cê-ta-das e dos livres que fazem assim e assim (referência scolariana ao sobe e desce dos remates do Cristiano), os turcos deixaram-se ir no engano e nós ganhámos com uma exibição a preceito.
Dito isto, ficaria mal a um blogue que se ocupa de política que não se politizasse o tema. Até porque a vitória de ontem, e os mais que certos êxitos vindouros, são mérito também de José Sócrates, que tanto se empenhou (conforme notícia convenientemente há dias revelada) em evitar o despedimento de Scolari, na sequência da cá-cê-ta-da aplicada na tromba de um ex-jugoslavo qualquer. Assim como hão-de ser mérito do nosso AJJ que, seguramente, muito se empenhou também em outra coisa qualquer que, por modéstia, a Quinta Vigia ainda não revelou.
E a política (peço desculpa pela interrupção) há-de seguir dentro de momentos. Pelo menos, é o que espero. Porque o desemprego ameaça. Os preços aumentam. E o espectro da pobreza para muitos, mesmo na Madeira, está mesmo aí ao virar da esquina. Entretanto, valha-nos Nossa Senhora de Fátima e do Caravaggio. E valha-nos também o senhor Scolari que nos lembra que o Além existe. Até na aleatoriedade de um jogo de bola.
Bernardino da Purificação

sexta-feira, 6 de junho de 2008

Interpretações à medida

A coisa começa a ficar negra para o parlamento madeirense. Hoje voltou a falar-se do problema das subvenções concedidas aos grupos parlamentares. E os olhos da crise, que alguns ainda procuram disfarçar, voltaram a abrir-se de espanto perante o despudor com que verbas atribuídas com uma determinada finalidade vêm sendo tranquilamente canalizadas para outras completamente distintas.
Li no ultraperiferias que a notícia em questão não acrescenta nada ao que já antes havia sido divulgado. E, de facto, assim parece. O problema é que o parlamento está na ordem do dia quase sempre por más razões. De maneira que, no âmbito do profilático espírito anti-parlamento que certos discursos e práticas fazem questão de acentuar, acaba por não constituir incómodo para ninguém que os media o elevem à condição de bombo da festa sempre que a preguiça inviabiliza a procura de melhores e mais actuais temas.
Nas suas linhas essenciais, o problema é o seguinte: os grupos parlamentares atribuem-se a si próprios quase escandalosos montantes para, nos termos da lei, financiarem o trabalho político a que os obriga o mandato popular que lhes foi eleitoralmente outorgado; só que, ao arrepio dessa mesma lei, as verbas avultadas auto-atribuídas acabam invariavelmente transferidas para as contas dos partidos, que vêem no expediente uma forma de engrossarem as suas finanças.
É claro que o problema é sério. Desde logo, realça a nossa velha propensão cívica para o truque, para a benigna violação das regras, para o tranquilo descaso das barreiras ou dos impedimentos, mesmo quando têm uma natureza legal. Depois, revela que a chamada classe política tem de si própria a ideia de que, porventura por força de um qualquer direito divino, paira algures, numa espécie de limbo, acima das obrigações que impendem sobre os restantes mortais. E, para completar o ramalhete, demonstra também que em matéria de defesa dos seus interesses de casta, até dos ilegítimos, suas excelências revelam um assinalável e quase comovente espírito de corpo. Tão unidos e queridos que eles são!
Parece claro que o orçamento de um parlamento só deve financiar a actividade parlamentar. Não creio que tenha o direito de presumir que tem competência para mais. Aliás, se porventura servisse para financiar partidos, os independentes da última legislatura (então dissidentes do PS) não teriam certamente direito a um único cêntimo. Porém, e como todos sabemos, não foi isso que se verificou. E como calculo que os deputados acabarão por arranjar um expediente qualquer para se furtarem às deliberações do Tribunal de Contas, acho muito bem que a questão se mantenha no topo da agenda informativa. Até porque na democracia mediática em que vivemos é preciso não ter medo de dar espaço ao tribunal informal da opinião pública.
Não ignoro que, para além das razões atrás referidas, este novo episódio da nossa vida parlamentar fica a dever-se, em grande medida, à tibieza que todos os políticos demonstram na abordagem do problema do financiamento dos partidos. Esta é uma questão de Estado que o Estado tarda em resolver de forma satisfatória de uma vez por todas. De maneira que o caminho vai continuando aberto ao truque e à transgressão dos que se acham no direito de interpretar as regras da forma que lhes dá mais jeito. Como manifestamente parece ser o caso.
Bernardino da Purificação


quinta-feira, 5 de junho de 2008

O representante revisor

Pronto. Agora é que a imagem da nossa Assembleia se afundou em definitivo. Num escassíssimo lapso de um mês e picos, passou de bando de loucos a cambada de analfabetos. E a generosidade dos qualificativos terá rebentado assim a escala do possível.
Corrijo. Em bom rigor ninguém chamou literalmente cambada de analfabetos aos senhores deputados regionais. A coisa, reconheça-se, foi mais subtil, mais elegante, mais insinuada. Assim: o ex-senhor ministro da República, entretanto reduzido à mera condição de representante (não tarda nada, ainda o havemos de ver cônsul), devolveu uma proposta de diploma regional ao parlamento madeirense. E, como sempre acontece em circunstâncias semelhantes, entendeu sublinhar o acto com uma educada cartita. Conta o DN de hoje que a missiva do senhor conselheiro é pródiga em explicações, conselhos jurídicos e lições de técnica legislativa, o que os deputados, se não forem ingratos, certamente terão agradecido. Mas relata também o dito diário que a mensagem do Palácio contém igualmente dois ou três reparos acerca da qualidade gramatical (ou da ausência dela) dos documentos elaborados na casa-mãe da nossa democracia. Confesso que ignoro a severidade dos reparos. Ainda assim, tenho muitas dúvidas de que os senhores deputados os tenham recebido com igual sentimento de gratidão.
É claro que sei que as competências do ex-senhor ministro se esgotam actualmente nessa por certo indispensável e patriótica tarefa de fiscalizar a produção legislativa do nosso parlamento. E, nessa conformidade, não julgo descortês (bem pelo contrário) que o senhor representante se dê à maçada de dar sugestões de natureza técnica e legal, até porque de constituição e de leis sabe ele bastante. Posso até achar correcto que, no âmbito das suas competências, e no quadro da cordialidade institucional que é sempre bom cultivar, o conselheiro Monteiro Diniz se permita fazer sugestões de natureza terminológica ou até mesmo gramatical. Até porque, embora leigo na matéria, julgo saber que uma vírgula deslocada ou uma palavra descuidada podem modificar o sentido de um projecto de diploma, ou então torná-lo desnecessariamente ambíguo e perigosamente controverso. Mas a preocupação face a essa eventualidade é, a meu ver, o limite admissível para a expressão ostensiva da cordialidade do senhor representante. Pelo menos, na forma escrita de um documento oficial. A não ser assim, há o risco de se entrar no domínio do acinte. O que não combina de todo com a cortesia institucional que em muitos casos justifica a latitude com que o senhor conselheiro interpreta as suas funções.
Escreve-se mal no nosso parlamento? Não custa admitir que sim. Nenhum deputado é escolhido em concurso público. Assim como nenhum é previamente submetido a provas de língua materna. Em democracia, como se sabe, o critério de escolha é outro, por muito que isso possa ferir a sensibilidade apurada do senhor representante. De maneira que é absolutamente normal que um parlamento, qualquer que ele seja, constitua o espelho da comunidade que o elege. Ora, imagine-se o que seria se, no continente, o presidente da República se armasse também em revisor gramatical e ortográfico da Assembleia da República. Não acham que era capaz de cair o Carmo e a Trindade? Então por que razão considera o ex-senhor ministro que aqui pode fazer aquilo que o bom senso de todo recusa ao presidente da República?
Ele lá saberá das razões que levam o seu zelo ao ponto do absurdo ou do ridículo. Mas não me espantava nada que o conselheiro Diniz se estivesse a deixar ir na onda anti-parlamentar que declarações como as que tem feito o dr. Jardim alimentam e mantêm viva. E isto para ser benévolo. Porque uma visão menos psicanalítica e politicamente mais radical do episódio levaria com certeza a considerações de outra ordem.
Bernardino da Purificação



quarta-feira, 4 de junho de 2008

O exemplo do fêcêpê

Num país que tanto se comove com o futebol e tanto se agita com o europeu que aí vem, é evidente que a notícia do dia teria de ser a decisão da UEFA sobre o fêcêpê. Os disciplinadores do cartel uefeiro fizeram o que se adivinhava. E, em consequência, o Porto arrisca-se a dar uns quantos passos atrás no processo que o conduziu à hegemonia do nosso futebol doméstico.
Não sendo do clube do senhor Pinto da Costa, a coisa passa-me mais ou menos ao lado do ponto de vista clubístico. Porém, mentiria se dissesse que a notícia me deixou indiferente. Não deixou, não senhor. E apesar da minha condição de lampião impenitente, asseguro-vos que lamento de verdade que o Futebol Clube do Porto esteja na iminência de iniciar a sua descida aos infernos. Sobretudo, tendo em atenção os motivos que parecem estar na origem dessa descida.
Quem passou os olhos nas edições electrónicas dos jornais desportivos dos principais países europeus não gostou com certeza de ver a imagem que o Porto e o futebol português reflectem lá para fora. Não é que ache que essa imagem se confunda com a do país. Ainda assim, aborrece-me que o portugalzinho do futebol possa ser visto a partir do exterior como um país entregue nas mãos de um bando de videirinhos muito mais preocupados com os fins do que com os meios.
Dito isto, não posso deixar de considerar bizarro (para não dizer estapafúrdio) que se procure escamotear a verdadeira natureza do problema em que caiu o Porto com a alegação de que a culpa de tudo isto é de uma conspiração qualquer urdida a partir de Lisboa. Dizê-lo é, no mínimo, desconversar. Ou, como diz o outro, é falar da estrada da beira quando afinal do que se trata, de facto, é da beira da estrada.
Sejamos claros. O que está a acontecer ao fêcêpê não surpreende verdadeiramente ninguém. Até porque a existência de coisas anómalas e pouco edificantes no futebol português é algo de que há muito se fala. O azar do Porto é que o tempo político e social do país já não é o mesmo de há alguns anos atrás. Agora a classe política já tende a evitar misturar-se publicamente com o mundo da bola. E a teia de cumplicidades que antes quase parecia nobilitar algumas das nossas mais proeminentes personagens (da política, dos negócios, da magistratura...) é vista agora como algo pouco recomendável. De maneira que a corrupção moral em que muitos (de todos os sectores relevantes da nossa vida social) untavam as mãos, a pretexto do futebol, tende agora a ser apontada como exclusiva desse mesmo futebol. E isso, claro, faz toda a diferença. Porque cria condições favoráveis à censura pública. E porque tende a acabar com o clima de impunidade em que a bola nacional tem andado alegremente mergulhada.
Só espero é que o caso Futebol Clube do Porto possa servir de exemplo. Nem todos os fins justificam todos os meios. E obter vantagem por via de métodos ilícitos não é coisa que possa recomendar-se. Mesmo que o formalismo processual da Justiça e do Direito possa parecer que oferece uma boa e conveniente almofada.
Sem pretender insinuar o que quer que seja, recordo apenas que a Região participa activamente, através do Governo Regional (no Marítimo SAD), neste ambiente malsão em que vive a bola nacional. Se ainda dele não saiu, pode dizer-se, é porque anda de consciência tranquila. Pois. O problema é que Pinto da Costa e os loureiros do costume dizem e redizem o mesmo. De maneira que não era má ideia que o Governo da Madeira conseguisse perceber que só tem a perder em andar directamente envolvido com um sub-mundo de regras opacas e de práticas suspeitas. Não venha é um dia queixar-se se porventura um apito dourado qualquer começar a ouvir-se também entre nós.
Bernardino da Purificação

terça-feira, 3 de junho de 2008

O pai da casa-mãe

Gostei de ler a defesa apaixonada da Assembleia Legislativa que o nosso líder fez um dia destes no jornal que sustenta. Não posso dizer que tenha ficado comovido. Seria exagero dizê-lo. Mas a costela institucionalista que possuo (e que teima em resistir, ao arrepio do que diariamente me é dado ver) sentiu assim uma espécie de sentimento de gratidão para com as súbitas dores do dr. Jardim: ainda bem que ele nos veio lembrar que o nosso parlamento é a casa-mãe da autonomia de que não abdicamos; e graças a Deus que ele nos veio recordar que descredibilizar a casa-mãe equivale a fazer a mesmíssima coisa ao sistema de auto-governo que tanto prezamos e que tanto nos custou a conseguir. Bem haja por isso, senhor presidente. Os madeirenses em geral e os autonomistas em particular hão-de ficar-lhe eternamente gratos por verem que as preocupações de vossa excelência são as de um verdadeiro paladino da defesa da nossa assembleia.
É claro que uns e outros vêm observado algumas intermitências nessas suas preocupações. Pior. Os madeirenses em geral e os autonomistas em particular têm vindo a constatar que a chicana do relógio do deputado Coelho é quase nada quando comparada com algumas das atitudes de vossa excelência. Sem pretender ser exaustivo, recordo que é vossa excelência que diz que tem mais que fazer do que ir à Assembleia prestar contas ao povo cá da terra. É também vossa excelência quem brinda os eleitos do povo, em cujo voto se legitima, com o mimoso epíteto de "bando de loucos". E é igualmente vossa excelência quem governamentaliza e partidariza aquele que é, conforme vem agora jurar que reconhece, o órgão primeiro da nossa Autonomia.
É claro que compreendo a veemência dos seus públicos incómodos. Ninguém, a não ser vossa excelência, tem o direito de achincalhar o parlamento. Porque ele é seu, tal como é sua a autonomia, tal como é sua a Madeira, tal como é sua a vontade dos madeirenses. Terá sido por isso, aliás, que vossa excelência deu ordens para que se procurasse criminalizar a tal indigente chicana do relógio de cozinha do deputado Coelho. Não pelo conteúdo mais ou menos rasca da coisa. Mas pelo atrevimento que lhe esteve na origem.
Porém, admita: neste particular, v.exa cometeu um notório exagero. Porque certamente há-de saber que censura política é uma coisa, e criminalização de condutas políticas é outra completamente diferente. O que é que as distingue? Nem mais nem menos que a diferença que separa a democracia do fascismo puro e duro. Mas isso, claro, sabe vossa excelência melhor que ninguém. Até (não levará com certeza a mal que o recorde) por educação.
Aliás (e retomando a questão da casa-mãe da autonomia), v.exa é tão versado nessas matérias que até sabe que, nos tempos idos da ditadura, o presidente da Assembleia Nacional era escolhido por sua excelência o presidente do partido (AN) e do Conselho. E era-lhe, por isso, obediente e obrigado. Então, que fez vossa excelência com a nossa Assembleia? Está claro: a mesmíssima coisa. Só que, como a democracia tem outras regras, todos fazemos de conta que acreditamos que o presidente do parlamento madeirense é eleito pelos seus pares e não simplesmente escolhido por si. E todos fingimos que não há qualquer problema no facto de o dito presidente ser escolhido para uma sessão legislativa (isto é, para um ano) e não para toda a legislatura (ou seja, para os quatro anos entre as eleições legislativas) como no início acontecia. E na verdade até parece que não há. Porque assim é a soberana vontade de vossa excelência que se cumpre e prevalece. Mesmo que isso revele uma subordinação e uma obrigação política que atropela a democracia e devia sobressaltar a Autonomia.
Mas, o problema, como é evidente, é o relógio de cozinha do deputado Coelho. Se ao menos fosse de sala...
Bernardino da Purificação

segunda-feira, 2 de junho de 2008

Social-democracia combustível

Parece que é obrigatório voltar à questão dos combustíveis. A ideia, asseguro desde já, não é chover no molhado. Deixo essa meritória tarefa a outros por certo mais abalizados do que eu. O objectivo é outro. Consiste em colocar três ou quatro questões que me parecem pertinentes e que não vi ainda colocadas. Sem outra pretensão, acreditem, que não seja a de contribuir para um debate que não podemos deixar que se extinga no silêncio ou nas meias-verdades.
Depois de passar os olhos por tudo o que até agora foi dito ou escrito sobre a matéria avulta uma constatação imediata: ninguém tem já quaisquer dúvidas de que os combustíveis na Madeira são mais caros do que deveriam ser, e bastante mais elevados do que poderiam ser. O facto de esses preços não reflectirem (com a óbvia anuência do governo) o IVA mais baixo que temos na Região, é o culpado da primeira destas duas situações. A circunstância de o governo regional se recusar a intervir na formação dos preços, por via da redução do ISP, é a responsável pela segunda. De maneira que, estando tudo isto mais ou menos constatado e plenamente adquirido, podemos ser levados a pensar que estaremos mais ou menos conversados quanto às linhas gerais de diagnóstico de uma situação que tão fortemente nos penaliza. Não creio, no entanto, que isso seja exactamente assim.
Na verdade, creio ter verificado uma lacuna essencial na informação que até agora nos tem sido disponibilizada sobre a matéria. Ela tem que ver com aspectos de natureza quantitativa. E constitui uma omissão que, a meu ver, inviabiliza uma apreensão de todas as dimensões do problema económico e político com que estamos confrontados.
Se porventura estiver enganado, peço que me corrijam. Mas acontece que não vi ainda escrito quanto é que custa, por litro, o transporte marítimo dos combustíveis. Nem vi ainda em lado nenhum qualquer informação sobre quanto é que os consumidores poderiam poupar, em cada litro de combustível comprado, caso os preços reflectissem, como deviam, o IVA a menos que muito justamente pagamos. Considero que essas contas devem ser urgentemente feitas e publicamente divulgadas. Para percebermos qual a dimensão do subsídio escondido efectivamente concedido aos distribuidores por nosso intermédio. Para percebermos, em suma, os verdadeiros contornos de uma política de preços que, bem vistas as contas, aceita penalizar toda a gente em benefício de três ou quatro gasolineiros.
Eu sei, ou julgo saber, que a Direcção Regional de Comércio e Indústria tem essas contas feitas há já alguns anos. E sei também, ou pelo menos penso que sei, que quando essas contas foram feitas a ideia era a de acabar com o tal subsídio escondido de que vinham beneficiando (e continuam a beneficiar) os distribuidores de combustíveis. Não em favor dos consumidores, como seria justo que acontecesse. Mas em benefício do orçamento da RAM, para o que se chegou a admitir um aumento do ISP que fosse capaz de absorver a receita adicional que os gasolineiros conseguem por via da não aplicação da nossa taxa de IVA. Mais. Estou pessoalmente convencido de que tal plano estava de novo em cima da mesa. E o raciocínio é simples: quem veio a terreiro arremeter contra a imoralidade da não aplicação da nossa taxa mais reduzida de IVA foi o secretário regional de Finanças, ou seja, o membro do governo que tem o encargo de tratar da receita da RAM, e não quem tem a responsabilidade de monitorizar a evolução dos preços dos combustíveis, isto é, o vice-presidente do Governo. Acreditem: se a ideia fosse a de fazer descer os preços, o dr. Carlos Cunha e Silva nunca permitiria que os louros da coisa pudessem ser creditados a outrem. Só quem não o conhece é que poderia admitir hipótese diferente.
Tudo isto dito, permito-me deixar um desafio a políticos e jornalistas: procurem obter os dados referentes às duas questões atrás referidas. Vão ver que o problema dos combustíveis na Madeira passará a ser discutido sem a possibilidade de mais fugas ou subterfúgios. Mas enquanto isso não acontece, deixo-vos com os elementos não oficiais de que disponho: em cada litro de gasolina vendida, os distribuidores obtêm um lucro ilegítimo de cerca de seis cêntimos (esse montante corresponde ao diferencial do IVA que se pratica); e em cada litro transportado para o Funchal pagam cerca de dois cêntimos e meio. Ora, faça-se as contas e veja-se quanto é que o governo regional aceita doar aos gasolineiros (o tal subsídio escondido de que atrás falei) por via do esforço que continua a exigir-se aos consumidores madeirenses. E depois dê-se um grande viva a esta social-democracia combustível e comburente que subsidia os distribuidores com a bolsa dos consumidores.
Bernardino da Purificação

domingo, 1 de junho de 2008

O dever de informar

A notícia é, como se verá, mais uma vez o silêncio de Jardim. Ninguém sabe dele. Como sempre acontece nas suas cada vez mais frequentes ausências, há-de ter chegado uma breve nota à comunicação social com a informação de que sua excelência se ausentou a fim de participar numa reunião qualquer de um daqueles organismos europeus que reflectem sobre a política regional da UE. E como invariavelmente sucede, a comunicação dita social absorve a informação, divulga-a numa pequeníssima nota de dois parágrafos, assim como quem cumpre uma espécie de ritual de desobriga, e considera com isso o assunto encerrado. Alguns dias depois, sua excelência volta (ele ainda consegue a proeza de voltar!). Não obstante, ninguém lhe arranca uma sílaba sequer sobre o objecto virtuoso da sua inadiável deslocação. E nós, claro, vamos ficando sem saber o que é que afinal anda o nosso presidente a fazer em Bruxelas, em Estrasburgo, ou sabe-se lá onde mais.
Dir-se-á: a culpa não é dele. A tal comunicação supostamente social é que, pelos vistos, não quer saber que candentes problemas anda a tratar o dr. Jardim lá nas lonjuras das capitais europeias. E eu, crédulo, até sou capaz de acreditar: se calhar, com efeito, a culpa é da redutora confusão há muito estabelecida entre notícia e sound byte. Ou seja, pelos vistos só é jornalisticamente relevante o que pode dar um título mais ou menos apelativo, ou uma frase mesmo a calhar para abrir os noticiários da rádio ou da TV. O resto conta pouco ou nem chega sequer a contar. E como aqueles senhores mais ou menos reformados com quem o dr. Jardim diz que periodicamente se reúne não dizem nem fazem nada de verdadeiramente interessante, a rapaziada dos jornais e dos outros meios nem sequer se lembra de incomodar as meninges de sua excelência com perguntas que não levariam com certeza a lado nenhum.
Pode ser. Até posso compreender o fenómeno, mas não deixo de achar mal. Até porque não creio que a eventual ausência de perguntas possa isentar o dr. Jardim da responsabilidade de esclarecer o seu povo quanto ao que em seu nome possa andar a tratar. Aliás, desde quando é que sua excelência alguma vez necessitou de perguntas para se fazer ouvir sempre que tal lhe apeteceu? Nunca, como todos sabemos. De maneira que não lhe ficava mal que periodicamente nos informasse sobre os superiores desígnios das suas cansativas deslocações. Quanto mais não seja, para lhe podermos agradecer o esforço quinzenal, ou perto disso, a que despojadamente se entrega.
É verdade que mergulhei nesta reflexão ao dar conta que o dr. Jardim é o único dirigente de peso (salvo seja) que ainda nada disse a propósito da esperada vitória de Manuela Ferreira Leite nas eleições internas do PSD. Até parece que, inconscientemente, eu próprio estarei à espera de um sound byte qualquer. Mas é verdade também que esta reflexão já me levou a verificar que o dr. Jardim é igualmente o único político e governante cá da terra que ainda nada disse sobre a liberalização das rotas entre a Madeira e o continente, ou sobre a escalada dos preços dos produtos petrolíferos. Ora, convenhamos, já começam a ser omissões a mais.
O essencial, no entanto, não é isso. O essencial é que todos temos o democrático direito de saber o que é que o presidente do governo anda afinal a fazer nas suas andanças quinzenais. Não em virtude de qualquer curiosidade mais ou menos voyeurista. Mas porque ao nosso democrático direito de saber que passos dão em nosso nome aqueles que nos governam, corresponde o dever igualmente democrático desses governantes nos prestarem contas. Seja por sua vontade expressa, seja por intervenção e iniciativa dos media. De maneira que, não havendo explicações, teremos de concluir que sua excelência andará certamente a passear, posto que nada de relevante tem para nos dizer depois das suas cada vez mais frequentes saídas. A menos que prefira que pensemos que se está positivamente nas tintas para nós. Entre uma e outra hipótese venha o diabo (cruzes, canhoto, t'arrenego) e escolha.
Bernardino da Purificação