Uma queda de enormes pedras na Ponta do Sol voltou a revelar-nos que só a sorte nos continua a separar da tragédia. Agradeçamos-lhe, pois. Pelo menos, enquanto ela durar. E, já agora, façamos figas e votos para que continue a valer-nos, pelo menos enquanto continuarmos a arriscar para além do razoável.
Tenho pouca pachorra e nenhum feitio para discursos lamechas de pendor mais ou menos moralista. E sou, por temperamento, visceralmente contra os que não resistem à tentação de cair sobre os desastres com a sofreguidão dos necrófagos. Não obstante, ao ver as imagens que as televisões nos mostraram, foi-me impossível reprimir a incómoda sensação de que a incúria de quem manda já vai longe de mais. Desta vez foram só dois carros destruídos e um susto, no mínimo, do tamanho assustador dos bocados de encosta de várias toneladas que desabaram escarpa abaixo. E da próxima, como será?
Quase mais impressionante do que as imagens televisivas foi a gaguejada mas reveladora sinceridade do presidente da Câmara da Ponta do Sol. Compreensivelmente, o homem parecia mais assustado do que consternado. Não era caso para menos. Mas, ou teve o azar de escolher mal as palavras, ou não fez mais do que deixar libertar a tensão que a esta hora deve ainda estar a sentir.
Disse em jeito de explicação o ainda trémulo autarca que a Câmara não esperava que a encosta desabasse tão cedo. Este tão cedo acordou-me. E fez-me perceber quão felizardos temos sido por termos do nosso lado um bem tão escasso como é a sorte. Então a Câmara da Ponta do Sol sabia que a falésia um dia havia de despencar lá do alto e não disse nada a ninguém? Pior do que isso. Então os responsáveis governamentais e camarários permitiram que centenas de pessoas sob ela passassem todos os dias, brincando sem o saberem com a possibilidade brutal de uma morte horrenda, só porque suas excelências acreditavam que a derrocada que sabiam certa poderia acontecer mais tarde e a horas mais convenientes? Mas desde quando é que estas coisas podem ficar à guarda das crenças desta gente? Um indivíduo fica até sem palavras. E que tal se fossem brincar à política para onde nunca pudessem fazer mal a ninguém? Mas isso, se calhar, já seria sorte de mais.
Bernardino da Purificação
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