A estratégia resultou. Cristiano jogou para a equipa. Refreou grande parte da sua exuberância. E o resultado viu-se: a equipa sobressaiu; os protagonistas mais visíveis foram os improváveis Pepe e Raul Meireles; e os turcos, pasmados, estão agora a remoer a falta de visão que tiveram quando destacaram três ou quatro dos seus (quase um terço da equipa!) para a marcação a Ronaldo.
À medida que o jogo ia decorrendo, percebi que os turcos iam passar os noventa minutos no fio da navalha. Se ficassem, o bicho havia de comê-los. Se fugissem, o bicho havia de pegá-los. E então dei-me conta da injustiça com que se diz que a estratégia, para Scolari, é assim uma espécie de ciência mais ou menos oculta, onde se misturam os fervorosos apelos a Nossa Senhora do Caravaggio, se cruzam uns padre-nossos rezados no balneário em modos de cadeia de união (querem ver que o homem usa avental e a gente não sabe); e se reduzem as orientações futebolísticas a umas indigentes, embora galvanizantes, referências a umas cá-cê-ta-das na bola (juro que foi isso que vi e ouvi com estes que a terra há-de comer em recente reportagem televisiva) em direcção à baliza adversária. Tudo, é claro, devidamente polvilhado com umas velas ao altíssimo, umas promessas a Nossa Senhora de Fátima e umas preces aos anjos-da-guarda dos seus (nossos) valorosos mininos.
Não sei se Scolari contou com os profundos dilemas do técnico adversário: dar rédea solta ao talento de Ronaldo, ou apertá-lo num colete de forças a ver se o jogo português engasgava? Mas isso agora de pouco importa. De resto, não é o facto de poder nem ter pensado nas tormentosas dúvidas adversárias que os seus créditos sem medida de mago das tácticas e estratégias místico-futebolísticas ficaram comprometidos. Bem pelo contrário. Até porque quem se entrega ao Além, com a verdadeira fé dos crentes, acredita com certeza que, sendo Ele a totalidade, tudo acabará por prever, tudo acabará por resolver.
Ora ontem, o que vi na euro-estreia portuguesa foi uma verdadeira manifestação da transcendência: os outros com medo de Cristiano; este, porque respira e intui os andamentos do jogo como ninguém, percebeu que esse medo havia de nos dar jeito; e, felizmente para ele, para nós, para Scolari, para o improvável Murtosa, para o inefável Madaíl, e para glória suprema dos deuses futebolísticos das cá-cê-ta-das e dos livres que fazem assim e assim (referência scolariana ao sobe e desce dos remates do Cristiano), os turcos deixaram-se ir no engano e nós ganhámos com uma exibição a preceito.
Dito isto, ficaria mal a um blogue que se ocupa de política que não se politizasse o tema. Até porque a vitória de ontem, e os mais que certos êxitos vindouros, são mérito também de José Sócrates, que tanto se empenhou (conforme notícia convenientemente há dias revelada) em evitar o despedimento de Scolari, na sequência da cá-cê-ta-da aplicada na tromba de um ex-jugoslavo qualquer. Assim como hão-de ser mérito do nosso AJJ que, seguramente, muito se empenhou também em outra coisa qualquer que, por modéstia, a Quinta Vigia ainda não revelou.
E a política (peço desculpa pela interrupção) há-de seguir dentro de momentos. Pelo menos, é o que espero. Porque o desemprego ameaça. Os preços aumentam. E o espectro da pobreza para muitos, mesmo na Madeira, está mesmo aí ao virar da esquina. Entretanto, valha-nos Nossa Senhora de Fátima e do Caravaggio. E valha-nos também o senhor Scolari que nos lembra que o Além existe. Até na aleatoriedade de um jogo de bola.
Bernardino da Purificação
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