Nem de propósito. Era minha intenção aflorar, ainda que necessariamente ao de leve, a questão da representação dos povos insulares na Europa dos cidadãos que se pretende construir. Na sequência dos dois últimos textos aqui publicados era o que fazia sentido. E nem me passava pela cabeça que um deputado do PS iria tornar ainda mais pertinente a abordagem do tema. Acontece, com efeito, que Jacinto Serrão manifesta hoje a sua incomodidade pelo facto de a Assembleia da República se esquecer reiteradamente do dever constitucional de auscultar a Assembleia Legislativa da Madeira sempre que está em causa a introdução de directivas comunitárias na nossa ordem jurídica interna. Serrão vê nessa omissão, e faz muito bem em dizê-lo, uma conduta de desrespeito pelas autonomias insulares. E, em conformidade com esse entendimento, assegura a intenção de não deixar morrer o assunto.
Não tenho qualquer dúvida em reconhecer que é politicamente pertinente a denúncia de Serrão. Considero, no entanto, que o deputado socialista se fica apenas pela espuma das coisas.Vejamos. O que está em causa, no fundo, é saber como é que a Madeira deve relacionar-se com a Europa sempre que seja justo e politicamente necessário ter os interesses regionais como elemento de ponderação. Mas nisso Serrão não toca. Ao contrário, e como é norma dos partidos do sistema, o deputado socialista reduz o problema a um mero episódio da tensão ou da relação dialéctica que se sabe existir entre os órgãos de soberania e os órgãos de governo próprio da Madeira. E a sua análise fica assim a perder, mesmo que possa parecer politicamente luzidia.
Parece-me, com efeito, que quem quiser ir um pouco mais fundo não pode ignorar que as regiões europeias apresentam uma grande diversidade e multiplicidade de estatutos políticos. Do mesmo modo, não deve igualmente passar ao lado do facto dessa diversidade ter uma relação directa com os princípios constitucionais que enformam o quadro institucional (tenha ele uma estrutura federal, descentralizada ou autónoma) do país a que as regiões pertencem. E não pode nem deve passar ao lado de nada do que atrás ficou dito por uma razão simples e cristalina: é que, na decorrência directa dessa diversidade de estatutos, os cidadãos das regiões acabam por participar de forma desigual nas decisões comunitárias. Mesmo a despeito do já longínquo Maastricht ter dado existência institucional a um órgão de carácter consultivo (o comité das Regiões) representativo dos interesses sub-nacionais.
Importa notar, com efeito, que, em consequência dos particulares estatutos que têm, os lander alemães e austríacos, assim como as comunidades e regiões belgas, conseguem uma representação simlultânea no Comité das Regiões e no Conselho Europeu sempre que os seus interesses estão em jogo. As comunidades autónomas espanholas gozam de um estatuto muito similar ao dos seus homólogos dos estados federais no que diz respeito à problemática europeia. As regiões italianas têm poder consultivo quando os seus interesses estão em discussão no Conselho. E nos países organizados sob a forma de estados unitários, independentemente de terem ou não regiões dotadas de autonomia política, o primeiro interlocutor das instituições europeias é sempre o governo central. Ou seja, nestas últimas, as regiões não podem, na generalidade, exercer uma influência decisiva sobre matérias que lhes digam directamente respeito, a não ser sob o controlo directo ou indirecto do centro de decisão nacional. E é aqui, a meu ver, que reside a verdadeira essência do problema.
É claro que a situação se agrava sempre que os órgãos dos estados centrais deixam de cumprir as obrigações constitucionais que têm no que respeita à relação que deve ser mantida com os órgãos políticos das regiões. Porém, insisto, o problema de fundo é outro: é o de saber como é que se pretende construir uma Europa de cidadãos livres e iguais sem uniformizar as formas de participação democrática desses cidadãos nos processos de decisão da União.
Não ignoro que colocar assim o problema equivale a defender uma alteração constitucional que acabe com esta fantasia de continuarmos com um estado unitário que a dinâmica europeia torna cada vez mais anacrónico. Mas equivale também a defender que às regiões autónomas seja conferido um direito tão elementar em termos democráticos quanto este: o de serem dotadas de um círculo eleitoral próprio para as eleições ao Parlamento Europeu. Dessa forma veriam ser-lhes reconhecido o direito de uma representação própria no órgão legislativo da União Europeia. E deixariam de estar à mercê dos caprichos das direcções nacionais dos partidos do sistema para, como vem acontecendo, obterem a esmola de um lugarzito em posição mais ou menos elegível. Mas nisso Serrão não toca. E ele lá saberá porquê.
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