O senhor dr. João Cunha e Silva passou a semana a profetizar-nos desgraças. Com a agudeza de vistas de uma verdadeira sibila, andou por aí a assegurar que, para seu manifesto desgosto, a crise que aí vem não nos vai passar ao lado. E, sem qualquer laivo de surpresa, deixou já sentenciado que a culpa das maçadas que ameaçam chegar é da responsabilidade exclusiva do governo central.
Descontando o que possa haver de contraditório no facto de o actual profeta da desgraça ser o mesmíssimo cavalheiro que, não há muito tempo, fazia gala de um despesismo sem freio, considero que o dr. Cunha e Silva tem razão. Isto é, também acho que a crise nos vai afectar. E admito que a maior ou menor capacidade de a enfrentarmos depende, em última análise, de quem governa. Porém, a meu ver, é aqui que reside o busílis da questão.
Passo a explicar. Trinta e alguns anos depois de instituído o regime autonómico, a Madeira continua a estar totalmente dependente das políticas do governo central. A lei consagra a existência de órgãos de governo próprio, mas as palavras não reflectem com rigor a realidade. Porque em boa verdade o que temos no território não passa de uma espécie de conselho de administração de uma gigantesca empresa pública (uma espécie de Madeira SA). Exagero? Parece-me bem que não. E continuarei assim a pensar enquanto não me explicarem o que é feito da autonomia financeira e fiscal que a lei nos atribui. Do mesmo modo que ainda estou à espera que me digam onde pára a nossa capacidade prática de definir uma política autónoma em matéria de economia ou de emprego.
Sejamos sérios. A verdade é que nós não temos um governo que efectivamente governe. Temos apenas um executivo que administra. Sendo que, na generalidade dos casos, as denominadas políticas sectoriais não passam de planos de fomento de empreitadas e obras públicas. É por isso que temos uma secretaria regional de Finanças que não passa de um gigantesco gabinete de contabilidade; uma secretaria do Equipamento Social que não é mais do que um enorme departamento de engenharia; uma secretaria do Turismo que se limita a promover cortejos e festarolas; uma secretaria dos Assuntos Sociais que se ficou pelo fácil caminho de convencionar tudo e mais alguma coisa; uma secretaria da Educação que é pouco mais do que um gabinete responsável por equipamentos escolares e respectivo pessoal; uma Secretaria dos Recursos Humanos que ninguém percebeu ainda para que serve; uma secretaria do Ambiente e dos Recursos Naturais que superintende um sector agrícola que fenece e uma pesca que já quase nem existe; e, na cúpula, uma vice-presidência que funciona como uma espécie de administração executiva de uma empresa gestora de obras e distribuidora de subsídios; e um presidente que não passa de um administrador não executivo cada vez mais confinado ao pelouro dos assuntos eleitorais e a funções de representação externa.
Por muito caricatural que possa parecer a descrição, é esta, nas suas linhas essenciais (e com algumas, poucas, ressalvas nas áreas da Educação e da Saúde), a nossa realidade autonómica, a despeito das competências legais que nos foram atribuídas. E é isso que explica o despudor com que essa entidade a que chamamos governo possa continuar a colher os louros das obras que lança e do dinheiro que gasta, ao mesmo tempo que é capaz de nos dizer sem rir que a nossa resposta às crises que possam vir está condicionada pelas políticas do estado central. Ora, a verdade é que, enquanto se mantiver este estado de coisas, estará sempre condicionada por essas políticas. Pelo menos até ao dia em que pudermos ter um governo que governe de facto, e não apenas este mero conselho de administração de uma sociedade nada anónima, cujos elementos se limitam a promover obras e a distribuir prebendas e subsídios, ainda que o façam com o ar sério dos políticos e dos governos de verdade. Mas isso, estou seguro, não é o que quer o dr. Cunha e Silva. Até porque exige talento, imaginação e dá trabalho. E mais: responsabiliza.
Bernardino da Purificação
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