Do discurso que Cavaco Silva teve que proferir antes do banquete da Assembleia Legislativa houve uma passagem que me agradou particularmente. Terá sido a única, devo dizer, já que a restante arenga praticamente se limitou a percorrer, sem rasgo nem variações, a escala das palavras que são de circunstância.
Ora, disse Sua Excelência o seguinte: "Da parte dos poderes regionais deve ser cultivada a dignidade que justamente reclamam para si próprios". Na mouche. Só foi pena que o presidente tivesse reduzido a questão da dignidade a oitenta e sete caracteres (podem contá-los à vontade), num discurso de alguns milhares, quando, afinal, era sobre ela que os madeirenses esperavam que se falasse.
É claro que pode sempre alegar-se que o chefe de Estado não estava nada à espera que Jardim não resistisse a armadilhar-lhe a visita. Conceda-se: muito provavelmente, os seus assessores tinham apontado para um discurso mais ou menos neutro e cheio de lugares comuns - um discurso, em suma, adequado a um ambiente normal ou próximo da normalidade. Confiaram em Jardim, os ingénuos. Só que com Jardim nunca é de fiar. Como toda a gente sabe. E como Cavaco e os seus assessores tinham a obrigação de saber. Conclusão: apanhados de surpresa (!), os escribas da Presidência só terão tido tempo para uma pequena adenda. E lá arranjaram maneira de enxertar no discurso de circunstância as tais supracitadas oitenta e sete letrinhas, correspondentes a uma sentença com um total de dezasseis palavras. E a coisa ficou assim a saber a pouco, quase nada.
Digamos, pois, que Cavaco se limitou a cumprir os serviços mínimos. E foi pena. Porque se o preocupasse, de facto, a dignidade das instituições autonómicas, não se teria ficado por um acrescento de dezena e meia de vocábulos a um discurso cheio de coisa nenhuma. Teria com certeza ido mais longe. Só que, pelos vistos, teve medo de despertar a truculência malcriada do senhor da ilha. Mas esse, claro, já não é um problema de Jardim. É do Palácio de Belém, onde mora um presidente que, no mais completo descaso da dignidade das instituições autonómicas que diz defender, aceitou vir à Madeira para, entre outras coisas, ir a um banquete à casa da nossa democracia.
Carradas de razão têm, pois, todos os que dizem que o Presidente não deveria ter aceite que, no âmbito da sua visita, se tivesse entendido dispensar a realização de uma sessão solene da Assembleia Legislativa da Madeira. É evidente que não tinha, nem tem, poderes para impô-la. Mas tinha, ao menos, o direito e a capacidade de recusar o papel de comparsa maior de uma deliberada desconsideração do parlamento madeirense, entretanto ampliada pela atoarda de Jardim. Reduzir a casa da nossa democracia a mera casa de pasto, não é coisa que um presidente da República possa ou deva aceitar. Porque, se não, fica a faltar-lhe a legitimidade para falar da dignidade das instituições autonómicas. Mesmo descontando o facto nada singelo de a sua exortação lhe ter ocupado menos do que dúzia e meia de palavras.
Bernardino da Purificação
Um comentário:
Aqui na Madeira não é tradição colocar as bestas a comer no pasto. Cá, onde as bestas cagam, comem e dormem chama-mos de palheiro!Casa de pasto não é um termo tipicamente madeirense...
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