quinta-feira, 5 de junho de 2008

O representante revisor

Pronto. Agora é que a imagem da nossa Assembleia se afundou em definitivo. Num escassíssimo lapso de um mês e picos, passou de bando de loucos a cambada de analfabetos. E a generosidade dos qualificativos terá rebentado assim a escala do possível.
Corrijo. Em bom rigor ninguém chamou literalmente cambada de analfabetos aos senhores deputados regionais. A coisa, reconheça-se, foi mais subtil, mais elegante, mais insinuada. Assim: o ex-senhor ministro da República, entretanto reduzido à mera condição de representante (não tarda nada, ainda o havemos de ver cônsul), devolveu uma proposta de diploma regional ao parlamento madeirense. E, como sempre acontece em circunstâncias semelhantes, entendeu sublinhar o acto com uma educada cartita. Conta o DN de hoje que a missiva do senhor conselheiro é pródiga em explicações, conselhos jurídicos e lições de técnica legislativa, o que os deputados, se não forem ingratos, certamente terão agradecido. Mas relata também o dito diário que a mensagem do Palácio contém igualmente dois ou três reparos acerca da qualidade gramatical (ou da ausência dela) dos documentos elaborados na casa-mãe da nossa democracia. Confesso que ignoro a severidade dos reparos. Ainda assim, tenho muitas dúvidas de que os senhores deputados os tenham recebido com igual sentimento de gratidão.
É claro que sei que as competências do ex-senhor ministro se esgotam actualmente nessa por certo indispensável e patriótica tarefa de fiscalizar a produção legislativa do nosso parlamento. E, nessa conformidade, não julgo descortês (bem pelo contrário) que o senhor representante se dê à maçada de dar sugestões de natureza técnica e legal, até porque de constituição e de leis sabe ele bastante. Posso até achar correcto que, no âmbito das suas competências, e no quadro da cordialidade institucional que é sempre bom cultivar, o conselheiro Monteiro Diniz se permita fazer sugestões de natureza terminológica ou até mesmo gramatical. Até porque, embora leigo na matéria, julgo saber que uma vírgula deslocada ou uma palavra descuidada podem modificar o sentido de um projecto de diploma, ou então torná-lo desnecessariamente ambíguo e perigosamente controverso. Mas a preocupação face a essa eventualidade é, a meu ver, o limite admissível para a expressão ostensiva da cordialidade do senhor representante. Pelo menos, na forma escrita de um documento oficial. A não ser assim, há o risco de se entrar no domínio do acinte. O que não combina de todo com a cortesia institucional que em muitos casos justifica a latitude com que o senhor conselheiro interpreta as suas funções.
Escreve-se mal no nosso parlamento? Não custa admitir que sim. Nenhum deputado é escolhido em concurso público. Assim como nenhum é previamente submetido a provas de língua materna. Em democracia, como se sabe, o critério de escolha é outro, por muito que isso possa ferir a sensibilidade apurada do senhor representante. De maneira que é absolutamente normal que um parlamento, qualquer que ele seja, constitua o espelho da comunidade que o elege. Ora, imagine-se o que seria se, no continente, o presidente da República se armasse também em revisor gramatical e ortográfico da Assembleia da República. Não acham que era capaz de cair o Carmo e a Trindade? Então por que razão considera o ex-senhor ministro que aqui pode fazer aquilo que o bom senso de todo recusa ao presidente da República?
Ele lá saberá das razões que levam o seu zelo ao ponto do absurdo ou do ridículo. Mas não me espantava nada que o conselheiro Diniz se estivesse a deixar ir na onda anti-parlamentar que declarações como as que tem feito o dr. Jardim alimentam e mantêm viva. E isto para ser benévolo. Porque uma visão menos psicanalítica e politicamente mais radical do episódio levaria com certeza a considerações de outra ordem.
Bernardino da Purificação



2 comentários:

amsf disse...

Arrisco-me a dizer que o referido diploma não foi produzido na ALRM mas pela mão dos próprios interessados! Teve muita sorte o representante da República não receber o referido documento em "linguagem" de SMS. O diploma legislava sobre o associativismo juvenil e os privilégios a serem concedidos às respectivas lideranças! Os erros atingiram as dezenas e não meia dúzia!

Anônimo disse...

Emplastro dixit.
amsf