quarta-feira, 21 de maio de 2008

Sensibilidade e bom senso

Não consegui iludir o desconforto. Através do jornal da nossa TV fiquei ontem a saber que uma empresa de construção civil se prepara para despedir cinquenta trabalhadores. O nome da empresa em causa é-me absolutamente indiferente. Não obstante, é evidente que o conheço, do mesmo modo que não ignoro as ligações político-empresariais que alegadamente tem. Interessa-me, isso sim, o facto brutal que desabou ou está em vias de desabar sobre cinquenta famílias. Assim como me interessa saber se o despedimento colectivo que agora se verifica prenuncia ou não a chegada definitiva de tempos de pesadelo para o sector da construção civil madeirense. Pode ser falha de atenção da minha parte. Mas acontece que ainda não vi nem ouvi qualquer posição sobre o assunto. Nem da parte das estruturas representativas dos trabalhadores. Nem da parte dos responsáveis da associação empresarial do sector. Nem muito menos da parte do governo regional. Se calhar, é cedo ainda para públicas tomadas de posição. Porventura, o silêncio é propositado. Provavelmente, ninguém sabe o que é que pode ser dito com verdade neste momento. Seja lá o que for, o facto é que para cinquenta famílias a vida ameaça ruir. Daí o desconforto que me provocou a notícia veiculada ontem pela nossa TV doméstica. É que, à falta de melhor adjectivo, me pareceu a todos os títulos obscena. Pela insensibilidade que revelou. Bem como pela carga opinativa (em favor do lado mais forte da relação laboral) que veiculou.
A senhora jornalista informou-nos com a maior das tranquilidades do mundo que três, quatro ou cinco dezenas de trabalhadores estavam em vias de ir para o olho da rua do desemprego porque a empresa, coitada, "não tinha outro remédio". Um pouco mais adiante, a mesma senhora jornalista, sempre no mesmo imperturbável tom, forneceu-nos a informação de que a empresa ainda terá pensado em fazer deslocar os trabalhadores para fora da região, mas que, dada a impossibilidade de fazê-lo, não conseguiria evitar o despedimento colectivo. Ou seja: a nossa TV de serviço público construiu uma notícia exclusivamente orientada no sentido da justificação da posição da empresa. E nem sequer teve o cuidado de, no texto papagueado, se distanciar (por via de citações ou de outros recursos de técnica jornalística) dos factos que nos quis relatar.
Não há muitos anos, percebia-se nas notícias que ouvíamos que havia uma escola que caracterizava a informação veiculada pelos órgãos públicos de comunicação social. Faziam parte dos recursos técnicos e estilísticos dessa escola a sobriedade, a isenção, a equidistância e a quase ausência de uma qualquer carga opinativa.
Agora, pelos vistos, não é assim. A alegre rapaziada que se entretém à noite a entrar-nos pela casa dentro com trejeitos idiotas e textos imbecis acha que tem o direito de nos falar de factos cruéis optando por justificar (sem expressamente o dizer) o lado que os desencadeia.
A coisa travestida de notícia foi de tal modo obscena que acabou por me soar assim: a AFA (é este o nome da empresa em questão) ficou de repente sem obras. De maneira que, coitada dela, se viu obrigada à profunda tristeza de ter de mandar cinquenta trabalhadores para o desemprego. Não teve outro remédio, a infeliz.
Note-se: não acho que a TV dos nossos impostos devesse crucificar a empresa que preferiu justificar. Estou seguro, aliás, que nenhum empresário digno desse nome sente qualquer leviano e criminoso prazer em brincar com o emprego das pessoas. Mas faço questão de exigir à televisão pública que seja capaz de narrar factos com objectividade. É esse o seu dever. E se porventura lhe apetecer engalanar os textos que os seus pivôs papagueiam, que tenha o bom senso de revelar alguma sensibilidade. Mesmo que seja fingida.
Bernardino da Purificação

4 comentários:

Anônimo disse...

Uma abstenção que é resposta
Qual o mistério do voto do PS na moção de censura ao Governo regional, sobretudo depois do discurso violento de Vítor Freitas sobre a pobreza que indiciava claramente uma sintonia entre PS e PCP?

Anônimo disse...

José António Cerejo
Sócrates condenado a pagar 10 mil euros a jornalista
O Tribunal da Relação de Lisboa condenou, na semana passada, o primeiro-ministro José Sócrates a pagar 10 mil euros por danos não patrimoniais causados ao jornalista do Público José António Cerejo

amsf disse...

Parece que temos aqui o sr. Luís Filipe Malheiro. O texto do 1º anónimo coincide com um publicado no seu blog. Quererá isto dizer que alguns textos "incómodos" publicados de forma anónima são sistematicamente feitos pelo próprio. Haverá uma central de comunicação do PSD cujo espaço de manobra são os comentários anónimos da blogosfera madeirense?

amsf disse...

A comunicação social é de extremos pois sabe que a análise equilibrada não capta audiência. Quanto a esta crise que não é apenas local mas é global eu próprio publiquei um post a 20 ou 21 de Janeiro a alertar para o que ai vem. Houve quem pensasse que eu estaria a encarnar o papel de profeta a anunciar o fim do mundo!!!