sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Para memória futura

É oficial: o dr. Jardim virou (politicamente falando, entenda-se). O social-democrata que afirma ser acaba de renegar a social-democracia. O estrénuo defensor do asfixiante Estado máximo (em pensamentos, palavras e obras) anda rendido agora ao magnífico esplendor do Estado mínimo. O político de ideias próprias e costumes liberais resolveu emprestar o nome, a vozearia e as mãos aos próceres anacrónicos do beatismo conservador. O intrépido porta-bandeira da Autonomia em que se arvora aceita sem um pio o descaso a que a dita é votada pela direcção nacional do seu partido. E, para cúmulo dos cúmulos, o denunciante que sempre foi de projectos políticos pessoais (dos outros, já se vê, que tudo tem o seu limite) acaba de converter-se ao depurativo plano de salvação da pátria que o cavaquismo urde a partir dos esconsos gabinetes de Belém.
Em suma, o cavalheiro mudou de campo. Seduzido eventualmente pela saborosa promessa de um prato de lentilhas qualquer. Ou, se calhar, derrotado pelo beco sem saída a que nos conduziu a sua política. Seja lá o que for, a cambalhota é vistosa. Ao ponto, imagine-se, de o vermos agora de mãos dadas com o liberalíssimo Pacheco Pereira, entretanto promovido a guru do garboso tandem que Cavaco e Manuela airosamente montam...!
É claro que sei que o dr. Jardim é um artista da pirueta. Do mesmo modo que não ignoro que, para sua excelência, as ideologias não passam de uma espécie de pronto-a-vestir a que cinicamente vai ao ritmo das conveniências do momento ou à medida das imposições sazonais. Ainda assim, confesso: arrepia-me o descaro. Assinar por baixo, ainda por cima sem rir, um programa político situado nas antípodas da prática governativa de que se orgulha e defende só pode ser obra da falta de pudor. E mandar às urtigas todos os textos pretensamente doutrinários que usa dar à estampa não pode ser senão decorrência em linha directa da falta de vergonha na cara. Ou do desespero, vá lá a gente saber. Ou do maquiavelismo à moda da ilha, vá lá a gente adivinhar...
Ok. Sabe-se que, em geral, os políticos têm uma relação atribulada com a rectidão das linhas direitas da coerência e dos princípios. Ainda assim, impressiona ver o dr. Jardim rendido à pacóvia sonsice cavaquista que sempre execrou; custa admitir que o súbito apoiante do endividamento tendencialmente zero e do orçamentalismo puro e duro que agora pretende ser é o despesista sem critério nem medida que sempre foi; faz duvidar que o nacionalista impenitente que faz de conta que é seja o mesmo indivíduo que tem como principal arma de combate a ameaça separatista; e faz lamentar que o autonomista estridente que sempre quis ser tenha publicamente aceite (sem uma nota de distanciamento ou reserva) partilhar o colo central-cavaquista com quem sempre viu na Autonomia uma excentricidade ou um luxo (já repararam que, ao contrário do que diz o dr. Jardim, a dra. Manuela não proferiu uma única palavra de compromisso com o aprofundamento autonómico na próxima revisão constitucional?).
Rejubilemos, no entanto. A partir de agora, é-nos ainda mais legítimo exigir ao novo dr. Jardim que deixe de asfixiar a nossa cada vez mais engasgada democracia. E que aceite diminuir o peso tentacular do estado, em cujas alturas se senta, em benefício das empresas, dos indivíduos, dos cidadãos. Isto, claro, se a coerência do dito cujo não passar de uma batata.
Bernardino da Purificação