Apesar da chuva que nos entope as sarjetas e inunda de passeantes os centros comerciais, tenho andado a cismar na coragem física e política dos senhores doutores Albuquerque e Jardim. E já não tenho dúvidas: somos um povo com mais sorte que juízo. Porque temos ao leme um timoneiro que não vacila. E porque atrás dele há-de vir alguém da mesma igualha.
Conservo na retina as gratas imagens que me ofereceu o jornal televisivo de sexta-feira. Recordo, por exemplo, que uma simpática e solícita menina nos informou que a população havia rechaçado as manobras provocadoras de uma horda apostada em maçar a paciência dos senhores doutores atrás citados. Retenho igualmente a imagem impressiva do edil funchalense, qual Guevara da nossa celebrada modernidade, jurando intrepidamente que nunca se deixaria intimidar. Mas visualizo, sobretudo, o garbo do nosso presidente quando, num píncaro de galhardia, e depois de temerariamente dispensar a protecção policial, resolveu fazer frente à terrível provação que o ameaçava. Senti orgulho, podem crer. E não pude deixar de pensar que, com líderes assim, o futuro só pode ser bom.
Imagino que os maldizentes do costume começaram já a fazer pouco. E como lhes conheço a propensão para a maldade, até lhes consigo adivinhar os argumentos. Vale uma aposta? Então tomem nota. Em primeiro lugar, hão-de dizer que o nosso senhor presidente estava muito bem acompanhado por uma turba ululante de mais de uma centena de pessoas previamente arregimentada. Depois, vão jurar que, apesar da ordem dada, a polícia não arredou pé, não fosse o desvario colectivo descambar em guerra civil. E hão-de garantir finalmente, com óbvios requintes de contradita, que não houve ameaça nenhuma. Como se quatro cavalheiros empunhando uma tarja com uns dizeres oportunos pudesse algum dia ser coisa pouca. Ou como se a câmara de vídeo que um deles agitava não devesse ser considerada uma arma perigosa, estratégica, letal.
Receio bem que a nossa política de trazer por casa tenha resvalado de vez para o plano inclinado da confrontação física. Quando um exército de quatro (sublinho, quatro!) agentes subversivos decide perturbar a paz morna em que vivemos, acompanhando um acto público em espaço igualmente público, só podemos recear o pior. E se esse formidável exército de quatro belicosos samurais resolve juntar à expressão numérica que tem a utilização de tarjas e câmaras de vídeo (meu Deus, que refinada exibição de malvadez!), só podemos esperar que o terror se instale.
Felizmente, é com genuíno alívio que o digo, não foi isso que aconteceu. A pronta, democrática e tolerante acção popular (como quase nos disse a solícita menina do telejornal) conseguiu conter as primeiras arremetidas dos meliantes. Os senhores doutores no início referidos acabaram por fazer o resto. E se uns deram expressão física à ira legítima que os possuiu, os outros recorreram à contundência da coragem, da expressão e do verbo. O que vale, porém, é que todos se irmanaram na mesma histérica reacção. Unidos em fraterno abraço de preservação da ordem estabelecida. Abraçados no mesmo inflamado espírito de tolerância democrática. E os intrusos ficaram assim a saber que podem vir com quatro, com três, com dois ou com um. Nada conseguirá derrotar o ânimo desta singular aliança entre uma centena de dependentes arregimentados e o autocrático poder que temos. Nem tarjas. Nem câmaras de vídeo. Nem presenças impertinentes em actos públicos.
Bernardino da Purificação