Tenho andado a cismar com a descoberta do Tribunal de Contas sobre as viagens do dr. Jardim. Sabem. Pesa-me na alma a ideia de que o nosso venerando líder possa andar confrontado com uma ameaça terrorista. Ao ponto de me sentir quase culpado. Nós aqui no bem-bom do conforto dos nossos lares, enquanto ele se obriga a passar a vida em aeroportos, quartos de hotel, automóveis com motorista e reuniões importantes de conclusões secretas. Tenhamos vergonha. Ninguém tem o direito de pedir a um governante o seu sacrifício pessoal. E nenhum de nós merece que alguém em nosso nome se imole na fogueira do desconforto, no ardume da solidão, no negrume que esconde o perigo.
Chamem-me tremendista. Mas em parte nenhuma do mundo um presidente mantém em segredo, depois de fazê-las, as viagens que faz. É verdade que o dr. Jardim não é um presidente qualquer. Ele é, digamos, um presidente-viajante. Que se ausenta semana-sim-semana-não. Que estoicamente se obriga a procurar o sustento da terra que ama nas lonjuras esconsas dos corredores da Europa. Que dá literalmente o corpo ao manifesto em benefício da região que representa. Os outros, os presidentes não-viajantes, podem dar-se ao luxo da imprudência. Refiro-me aos obamas deste mundo, aos sarkozys que por aí andam, aos browns e às merkels que também nos mandam, bem como a outros demais líderes de estirpe semelhante. Esses, como sabemos, permitem-se divulgar com quem e onde estiveram. E vão até ao ponto, imprudentes e vaidosos que são, de nos revelarem os resultados concretos das escassas viagens que fazem. Como se não tivessem, também eles, o direito ao segredo. Como se as ameaças que certamente também enfrentam pudessem ser negligenciadas. Ou como se andassem todos a reboque de um impulso imprudente e louco de prestação de contas. Deviam olhar para o nosso dr. Jardim, é o que é. E assim ficariam a saber como deve actuar um presidente no mundo de ameaças várias em que os governantes, desgraçadamente para eles, têm de movimentar-se.
É claro que eu próprio gostava de saber o que faz o dr. Jardim nas constantes viagens que em nosso benefício efectua. Compreendo, no entanto, que sua excelência nada nos diga. Segredos são segredos. E se o homem decidiu não mexer nem remexer nos nossos sentimentos de culpa é porque sabe que nos sentiríamos esmagados pela monumentalidade das coisas a que se vem sujeitando em nosso nome e para nosso proveito. Respeitemos, pois, a opção de sua excelência. E, sobretudo, sintamo-nos gratos. É este o apelo sentido que daqui me atrevo a lançar. A jornais e jornalistas agora histéricos depois de anos cúmplices de descaso e silêncio. E a partidos e políticos da oposição que, pelos vistos, adiaram até agora a indignação a que sempre tiveram direito. E olhem que quem vos fala (este vosso humilde criado) é alguém arrependido. Vai fazer a 1 de Junho precisamente um ano que, com manifesta insensatez, deixei aqui no Terreiro as seguintes palavras:
"...todos temos o democrático direito de saber o que é que o presidente do governo anda afinal a fazer nas suas andanças quinzenais. Não em virtude de qualquer curiosidade mais ou menos voyeurista. Mas porque ao nosso democrático direito de saber que passos dão em nosso nome aqueles que nos governam, corresponde o dever igualmente democrático desses governantes nos prestarem contas. Seja por sua vontade expressa, seja por intervenção e iniciativa dos media. De maneira que, não havendo explicações, teremos de concluir que sua excelência andará certamente a passear, posto que nada de relevante tem para nos dizer depois das suas cada vez mais frequentes saídas. A menos que prefira que pensemos que se está positivamente nas tintas para nós."
Sinto-me envergonhado, podem crer. Mas, que querem?! Há um ano não tinha percebido que os segredos presidenciais eram segredos de segurança. E lamento que tenha sido necessária a intervenção do Tribunal de Contas para finalmente conseguir enxergá-lo (não há pior cego...). É com este sentido de arrependimento que escrevo estas linhas. Mesmo sabendo que o desconforto do nosso venerando líder é mitigado pelo aconchego solidário de um assistente permanente que ninguém, todavia, tem a dita de conhecer. Para ele também a minha gratidão.
Bernardino da Purificação